Mineração

Acidentes, controle de sindicatos e processos trabalhistas marcam a política da Vale

Reportagem mostra o cotidiano dos trabalhadores da maior província mineral de ferro do mundo em Carajás

Especial para o Brasil de Fato |
“A Vale me abandonou. Tudo que eu tenho eu consegui na justiça. Os R$ 3 mil que gasto com medicação por mês vem da ajuda da minha família e do meu marido. Tomo um coquetel de remédios de seis em seis horas que inclui andidepressivos. Foi isso que ganhei em trabalhar na maior mineradora do mundo”
“A Vale me abandonou. Tudo que eu tenho eu consegui na justiça. Os R$ 3 mil que gasto com medicação por mês vem da ajuda da minha família e do meu marido. Tomo um coquetel de remédios de seis em seis horas que inclui andidepressivos. Foi isso que ganhei em trabalhar na maior mineradora do mundo” - Marcelo Cruz

Passava da meia noite do dia três de março de 2012. Depois de mais uma troca de turno cansativo na mineradora Vale, os funcionários foram adentrando o ônibus que desceria a Serra de Carajás, no Pará.

Logo procuraram se ajeitar nas poltronas para dormir. Alguns percorreriam um caminho de até duas horas e meia para chegarem às suas casas no município de Parauapebas. No entanto, não contavam que uma árvore gigantesca despencaria sobre o veículo no trajeto de volta.

A partir daí foram doze horas de um resgate interminável repleto de falhas e com final mortífero. Apenas um trabalhador morreu esmagado no momento do acidente.

Muitos outros ficaram lúcidos, mas impossibilitados de saírem do ônibus, por terem suas pernas presas às ferragens, esperando angustiados todas as tentativas de salvamento sem sucesso.

Durante esse tempo duas pessoas morreram por choque hipovolêmico por causa a grande quantidade de sangue perdido. Para piorar, um dos que se salvariam, um rapaz chamado Chicão, foi derrubado da maca pelos socorristas quando desembarcava no hospital. Não resistiu a queda e morreu.

Um dos sobreviventes desse acidente, quatro anos depois ainda sofre com as sequelas. Márcio, que passou por diversas intervenções cirúrgicas, ainda tem muitas dores nas pernas e convive com a dificuldade de andar.

“A poltrona que estava a minha frente no ônibus com o acidente veio para trás e esmagou minha perna por nove horas seguidas. Por conta disso perdi parte dos nervos da perna, perdi a sensibilidade, meus pés deformaram, e eu não consigo ficar mais de duas horas com calçado fechado, além de não conseguir andar por muito tempo”, conta.

Um bombeiro que esteve naquela noite no local do acidente e que prefere não se identificar, levanta uma séria de fatores que a Vale deveria levar em conta na segurança do trajeto de seus trabalhadores na Serra de Carajás.  

“Inexiste comunicação nesses pontos da estrada, não tem sinal de telefonia e demora muito pra acionar o resgate. A equipe de bombeiro não tem equipamentos apropriados de imediato para acidentes daquela magnitude, pois a motosserra que levaram era pequeno de mais pra cortar aquela árvore enorme, e por fim, ao perceberem o insucesso da máquina, só 8 horas depois conseguiram chegar com o guindaste de capacidade 160 toneladas pra erguer o tronco que restou sobre os feridos”, explica.

Depois dos quinze dias de coma, Márcio diz que nas primeiras conversas com os médicos, todos foram taxativos em afirmar: “Você só está assim porque houve muita demora para ser retirado dos escombros do ônibus. Se tivessem te tirado rápido, hoje provavelmente você teria uma vida normal”, lamenta o jovem trabalhador que vê seu futuro incerto.

“Para o INSS estou em processo de reabilitação. Para mim, eu não tenho condições nunca mais de voltar a trabalhar, ainda mais numa empresa como a Vale, que o trabalho é intenso”, conta.

Juventude sucumbindo

Uma leva da juventude de trabalhadores da mineração em Carajás, com menos de 40 anos de idade, vai sucumbindo ao ritmo acelerado de trabalho na mineradora Vale.

Aos 36 anos, Avanilde Carvalho Cerqueira Rodrigues se diz inapta para viver. “Não tenho mais uma vida cotidiana normal e minha vida se resume a remédios, dores, ficar sentada e pedir ajuda para os outros para andar ou fazer qualquer coisa”, resume.

No auge de sua carreira, em outubro de 2008, Avanilde trabalhava como eletricista de alta tensão na Vale e sofreu uma queda. Para não prejudicar sua equipe que não poderia ter acidentes, pois ficariam sem a participação de lucros repartida pela empresa, trabalhou dois meses com conhecimento de sua chefia na Vale, adoentada e sem o registro da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).

“Naquele ano a Vale tinha batido o recorde de exportação de minério de ferro, e para não prejudicar minha equipe e a empresa, eu fiquei trabalhando por dois meses sem registrar o acidente. A mineradora vinha, me pegava, me levava até a empresa, eu batia o ponto e ficava lá trabalhado sem condições”, recorda

Em 15 de dezembro de 2008, Avanilde não aguentou mais as dores e não conseguiu mais trabalhar. “Eu tive que fazer uma cirurgia urgente, pois no acidente desloquei minha bexiga e já estava com uma infecção se alastrando para todo o corpo”.  

A partir daí, aos 26 anos de idade, a rotina hospitalar de cirurgias, consultas e uma medicação intensiva marcou a vida de Avanilde nestes últimos dez anos.

“A Vale me abandonou. Tudo que eu tenho eu consegui na justiça. Os R$ 3 mil que gasto com medicação por mês vem da ajuda da minha família e do meu marido. Tomo um coquetel de remédios de seis em seis horas que inclui andidepressivos. Foi isso que ganhei em trabalhar na maior mineradora do mundo”, esbraveja.

 

Mortes constantes

Na madrugada de 19 de fevereiro de 2007, Paulo Pimentel estava dormindo quando recebeu um chamado de outro funcionário da Vale para averiguar uma anormalidade funcional no pátio de estocagem, onde era responsável. Ao chegar ao local de forma sonolenta, foi atropelado por um trem de carga que decepou sua perna na hora. Pimentel morreu a caminho do hospital.

Por conta desse acidente em 2009, depois de seguidas mortes em vários locais de trabalho ao longo da Estrada de Ferro de Carajás e de áreas do Complexo Mineral de Carajás, o Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou uma Ação Civil Pública por dano moral coletivo, denunciando várias irregularidades, desrespeitos às normas de segurança do trabalho e na forma com a qual os trabalhadores da mineradora e de suas terceirizadas eram submetidos durante as longas jornadas de trabalho.

Depois de seis anos, em decorrência do processo, em julho de 2015, o juiz da 8ª Vara  Federal de Trabalho de Marabá, Jonatas Andrade dos Santos, multou a mineradora Vale em R$ 800 milhões.  

Para o médico auditor do MPT, Mário Parreira, as principais causas de mortes e acidentes nas mineradoras que atuam no Brasil advém do “controle de produtividade, como excesso e exigência exorbitante de produção, trabalho excessivo, monotonia e repetitividade. Quase todos os acidentes que tenho analisado são por consequência de jornadas de trabalhos prolongadas de 12, 13, 14 horas”, expõe.

Procurada pela reportagem, a Vale disse possuir “um procedimento que padroniza o processo de análise de incidentes de saúde, segurança e meio ambiente” (…) e “enquanto organização, nosso papel é compreender profundamente as falhas para evitar que elas recorram”.

A mineradora ainda afirma que estes “relatos não têm relação com o que vem acontecendo de fato. A taxa de acidentes de trabalho com afastamento na Vale vem caindo ano a ano desde 2011. Em 2013, o número de acidentes com afastamento foi de 6,9 para cada 10 milhões de horas-homem trabalhadas. Em 2014, o número foi de 6 para cada milhões de horas-homem trabalhadas. E, em 2015, o número de acidentes com afastamento foi de 5,8 para cada milhões de horas-homem trabalhadas”.

 

Vinte anos sem democracia sindical

Outro agravante em Carajás é que há 20 anos não existem eleições para disputar o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Ferro e Metais Básicos (Metabase de Carajpas), que envolve as cidades de Eldorado dos Carajás, Marabá, Parauapebas e Curionópolis.

Neste período, os pleitos foram marcados pelo discurso da Vale e do próprio sindicato, que sempre alegaram a inexistência de um grupo de trabalhadores na oposição.

Porém, em agosto de 2014, a chapa 2, assim como ficou conhecida a chapa da oposição, conseguiu se inscrever sem ser banida antes pela mineradora. Segundo os trabalhadores,

demissões, retaliações e assédio moral dentro da empresa são práticas constantes para quem tenta formar uma chapa de oposição.

Há dois anos tramita na justiça uma briga judicial entre a diretoria do Metabase de Carajás e a oposição na tentativa de viabilizar a legalidade da Chapa 2, que foi colocada em suspeita pela comissão eleitoral, composta pelos membros que dominam o sindicato há duas décadas.

Mas, em caso de vitória favorável à Chapa 2 para poder disputar as eleições, a Vale já usou outra artimanha para barrar o processo. Oitenta por cento da chapa opositora foi demitida.

“Quando viu que tinha a possibilidade da chapa que domina o sindicato há anos perder na justiça e realizarmos as eleições, a Vale não pensou duas vezes: praticamente demitiu todo mundo da nossa chapa para não ter eleições. Só no ano passado foram dez”, denuncia o vice-presidente Maurício Matos, um dos demitidos.

Segundo a minerado, “a Vale não interfere na montagem de chapas para eleições sindicais”, e diz respeitar “a liberdade sindical, em conformidade com as legislações locais aplicáveis, e esclarecemos que os eventuais processos de desligamentos na empresa, quando não são voluntários, são feitos de acordo com a performance de seus empregados ou desrespeito aos valores da empresa, observando sempre as necessidades dos negócios. A empresa nega qualquer vínculo entre eventuais desligamentos e a atuação sindical de seus empregados".

 

Campeãs de processos trabalhistas

Na lista do Tribunal Superior do Trabalho (TST) divulgada no dia 20 de abril de 2015, a Vale está na 14ª colocação no ranking geral entre as empresas que mais estão envolvidas em processos.

A mineradora possui um total de 2.415 processos, sendo 1.360 ativos e 1.055 passivos. No ranking das dez maiores litigantes por região, a mineradora aparece na primeira posição do TRT 3ª região em Belo Horizonte (MG). A empresa tem 2.544 processos de primeiro grau e 62 de segundo grau, totalizando 2.606.

No ranking do TRT 8ª região, que diz respeito a Belém (PA), a Vale está em segundo lugar, com 1.956 processos, sendo 1.795 de primeiro grau e 161 de segundo grau. A empresa também aparece no terceiro lugar do TRT 16ª região, de São Luís (MA), com 405 processos. Conforme a lista, 318 são de primeiro grau e 87 de segundo grau.
A Vale também aparece em primeiro lugar no ranking das dez maiores litigantes de Vitória (ES), com 942 processos, que se dividem em 857 de primeiro grau e 85 de segundo grau.

 

Novo código pode piorar

Desde 2013, o Projeto de Lei 0037/11, que trata da atualização do marco regulatório da mineração - visto que a legislação vigente é datada do ano de 1967 - está em tramitação na Câmara dos Deputados.

Porém, as prerrogativas dentro da Lei sobre a Saúde, Segurança e Direito dos Trabalhadores seriam mínimas. O novo texto não levaria em consideração estudos científicos realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado em 2015, onde coloca “a indústria extrativa como a que mais oferece risco de acidente e até mesmo de vida, por ser a que menos oferece medidas de segurança aos trabalhadores”, menciona o documento.

Para Jarbas Vieira, membro do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), que acompanha a tramitação do PL em Brasília, se o PL fosse aprovado hoje no Congresso Nacional, o novo código da mineração seria um ataque aos trabalhadores desse setor no Brasil.

“Ficaríamos mais 49 anos atrasados em relação à saúde, à segurança e aos direitos dos trabalhadores. Para se ter ideia, segundo dados do IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração), entre 2001 e 2011, a produção mineral no Brasil cresceu 550%, partindo de US$ 7,7 bilhões para US$ 50 bilhões. Esse crescimento traz mais doenças, mutilações e mortes”, alerta.

 

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