“Não existe essa coisa de mineração sustentável. O interesse econômico pelos minerais da transição [energética] prevalece sobre qualquer interesse social ou ambiental.” (Geralda Chaves Soares, militante do Cimi)
Nos primórdios da invasão do Brasil, quando não se sabia ainda da existência do ouro, Pero Vaz de Caminha, em uma carta ao rei Dom Manoel, exalta as maravilhas da terra conquistada: muito rica em águas, clima ameno, terra fértil – “Em se plantando tudo dá”. Na atualidade capitalística neoliberal, mesmo se não plantar, também dá. O minério está bem ali. No subsolo. É só escavar alguns metros abaixo da superfície. Escavação que revolve a terra, as comunidades, as ruas, as casas e o modo de vida dos habitantes locais.
Capitalismo selvagem este, que explora de modo devastador e ilimitado o que estiver pela frente. Apropria-se da terra, do ar, das águas, das tradições locais. É uma desterritorialização abrupta bem amarga com graves impactos socioambientais e geopolíticos. A população local está comendo o pão que o diabo amassou. E o diabo que acabou com o sossego daquele povo tem nome: mineradora Sigma Lithium.
Muitos defendem a extração do lítio como algo favorável à transição energética para abandonar os combustíveis fósseis. Os veículos elétricos dependem de baterias renováveis para o armazenamento de energia. Muitos eletrônicos também necessitam de baterias de íons de lítio: tablets, câmeras digitais, laptops, telefones. Com o lítio se fabrica também cerâmicas resistentes ao calor e medicações psiquiátricas. Isto tudo é inegável. Porém, não se pode explorar o lítio destruindo o meio ambiente e as condições socioculturais. Não há uma exploração responsável do lítio que beneficie a comunidade e o meio ambiente. Não há consultas aos cidadãos locais quanto à extração do lítio, o que vem violando de modo intermitente os desejos e direitos da comunidade. Uma comunidade não consultada se vê empurrada para condições abusivas que ela não escolheu para si.
Estamos no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, em um vilarejo chamado Piauí Poço Dantas. Ali se desenvolve uma situação paradigmática do que se pode chamar de extremos de uma exploração capitalística destrutiva. O mesmo ocorre em vários outros vilarejos, mas tomamos este como exemplo. A Sigma produz 270 mil toneladas de lítio por ano, a partir desta exploração em Piauí Poço Dantas. Os entulhos descartados atingiram 560 mil metros quadrados de área e já vão invadindo os quintais da vila. Essa sinistra exploração vai espalhando por toda a região o pó das minas escavadas. Uma densa poeira vai dilacerando as vias respiratórias da população local, causando-lhe incuráveis doenças físicas e graves problemas psíquicos. São muitos os efeitos devastadores da exploração do lítio: pó para todo lado, detonações frequentes que produzem rachaduras nas casas e nas almas, assoreamento dos rios com o mau uso do solo e a degradação das bacias hidrográficas. Na obtenção do lítio há um processo de evaporação que exige 2 milhões de litros de água para cada tonelada de minério extraído. Assim, as bacias aquíferas da região são afetadas por este processo, bem como a produção agrícola e o consumo de água pelos moradores e por animais domésticos e silvestres.
Conflitos fundiários se desenvolvem na disputa da terra e quilombolas e indígenas de comunidades tradicionais se veem acossados pelos neocolonizadores, agravando-se as desigualdades sociais com a perda de terras e de recursos naturais, além da degradação de áreas naturais com quilômetros e mais quilômetros de rios e riachos apresentando sedimentos de metais tóxicos. Sobre os povos indígenas, a pressão das mineradoras se faz presente porque os seus territórios também possuem lítio. Querem que vendam suas terras e, para tanto, são até mesmo ameaçados. A Sigma desrespeita e parte para a briga: seria a tentativa de imposição de um faroeste caboclo? Ou a tardia repetição de uma recolonização que invade e depreda, mas oferece penduricalhos demagógicos em troca de lítio? O reconhecimento de suas terras como terras indígenas ancestrais não ecoa por ali. De acordo com a Constituição de 1988, apenas os povos originários podem explorar seu solo. Mas há os que questionam (no Congresso Nacional, inclusive), se o subsolo também teria esta restrição. Com a prospecção de lítio feita pelas mineradoras em suas terras, os direitos dos povos ancestrais são insistentemente violados e nem sempre o poder público intervém a seu favor. E os povos indígenas vão se sentindo adoecidos, sitiados e acuados em suas próprias terras. E se perguntam: o reconhecimento governamental de suas terras como terras indígenas invioláveis, quando virá?!
Dezenas de máquinas revolvendo o solo causam, também, uma grande poluição sonora que atravessa madrugadas afora e abocanha o sono e o sossego da população local e de animais domésticos e silvestres. Caminhões e mais caminhões se unem a tratores para amontoar toneladas de pedras e resíduos descartáveis nesta guerra mortífera contra a terra e o povo. Que povos e pedras não sirvam de empecilhos para este desmonte da natureza e das comunidades, visando a extração do lítio! Estamos falando do corpo biológico e psíquico dos moradores, do corpo hídrico, do corpo dos animais, do corpo ambiental e sociocultural. Todos estes corpos deveriam ser protegidos, no mínimo, por órgãos estatais que, muitas vezes, os ignoram e alguns deles até são coniventes com tal exploração. Spinoza nos fala do que pode um corpo, no seu poder de afetar e ser afetado. Um bom encontro se dá quando na relação ou na mistura de corpos, ocorre um aumento na potência de ambos. No Vale do Jequitinhonha, no entanto, o encontro com a Sigma produziu um mau encontro, um massacrante encontro para todos os corpos locais. Os sismógrafos podem até detectar as vibrações das explosões nas minas, mas detectariam, também, os profundos abalos produzidos nos corpos violados por esta exploração desmedida?!
O povoado de 70 casas – Piauí Poço Dantas, em Itinga – estremece com os estrondos e com a insensatez capitalística que só visa auferir maiores lucros. Este povoado foi criado há 150 anos, às margens de um afluente do rio Jequitinhonha – o riacho Piauí. Em Piauí Poço Dantas a pilha de estéril avançou 550 metros já beirando o riacho Piauí, as casas locais e a Escola Municipal Nuno Murta. Do lítio ao lixo, nada mais importa aos exploradores do que o tilintar das ricas moedas enchendo seus cofres. Não importa que esse dinheiro sujo venha do sofrimento descabido de seres humanos, animais e vegetais. Só o minério importa. É o mineral elevado à categoria de rei do pedaço. Esta é a maior mina de lítio de nosso país. Sem ignorarmos que se processa, ainda, um aumento significativo do custo de vida na região. A inflação vem junto com os forasteiros que buscam trabalho e disputam empregos com os moradores locais.
O lixo, composto de materiais não aproveitáveis, jaz ali com 20 metros de altura e 560.000 m² de área, assoreando o riacho, as casas e os residentes daquele lugar. Para a Sigma, este é só o começo da história, pois expandir-se mais se faz necessário para satisfazer sua ganância insaciável por mais lucro. A mineradora acaba de receber um financiamento de R$500 milhões do Fundo Clima. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o gestor deste fundo criado para financiar medidas de combate a mudanças climáticas. Como assim?! Não deu para entender. As licenças para a operação da Sigma, passam por um aumento gigantesco dos empilhamentos de resíduos. Em Minas, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) parece não ver problema nenhum em tal situação. Liberou, com muito gosto, uma nova licença de 2 milhões de m² para a área de empilhamento.
O mercado internacional de lítio dita as regras: China, Japão, Europa e Estados Unidos precisam do metal para a fabricação de carros elétricos. E amplia-se, também, a sede de lucros: outras mineradoras querem participar no Vale do Jequitinhonha da caça frenética ao tesouro: o lítio. A Atlas, empresa norte-americana, está perto de obter sua licença para explorar lítio em Araçuaí (cidade do Vale); a australiana Pilbara Mineralis está de olho em Salinas (cidade também do Vale) para lá explorar o minério e a CBL – Companhia Brasileira de Lítio explora uma mina próxima da área devastada pela Sigma. Quando as minas não mais interessarem, pela extinção do lítio, e as empresas se forem com todo o seu arsenal empresarial, deixarão um rastro de destruição e calamidade pública de difícil reconstrução, no sentido de uma vida sustentável, após esses desastres ambientais e socioculturais.
Vamos agora aos adoecimentos produzidos pela malignidade capitalística: asma, pneumonia e silicose. Os humanos que fazem parte da comunidade de Piauí Poço Dantas passaram a ter problemas respiratórios, não conseguem mais dormir bem e veem a muralha de pedregulhos se aproximando cada vez mais de suas casas. Antes da Sigma chegar, era tudo mais sossegado: ouviam-se passarinhos cantando, bebiam água do riacho, as crianças não adoeciam tanto. Nos dias atuais, ninguém mais tem paz. Não podem mais beber água do riacho, agora totalmente poluído. Têm que se submeter ao fornecimento de água pela empresa, via caminhões-pipa. A poeira é incessante: penetra nas águas do rio, nos vãos das casas, nos poros dos adultos e das crianças. E chega, pau-la-ti-na-men-te, a levá-los a uma condição mortífera: é a silicose.
A silicose é uma praga que faz desenvolver uma tosse incessante, que se desdobra em asma e pneumonia. A demoníaca Sigma continua a espalhar poeira, doença e morte. A comunidade tenta manter sua vida ativa como era antes da Sigma invadir tudo: as crianças às 8h vão para a escola, os pais vão colher bananas na roça, as mulheres lavam roupas no riacho. Os moradores locais, ensaiando uma resistência cidadã, procuram não aceitar os empregos que a mineradora, por vezes, lhes oferece. Quiçá os despropósitos antidemocráticos da Sigma pelo menos transformem esses povoados em laboratórios de resistência, com ensaios de exercícios de cidadania. A Sigma inscreve novas relações sociais e espaciais e territorializa como seu o que é do outro. Coloniza e quer, como diz Frantz Fanon, que a cidade do colonizado se torne uma vila agachada, uma cidade ajoelhada. Quer destruir não somente a natureza como, igualmente, o modo de ser e estar no mundo da comunidade. Ou seja, a sua subjetividade.
Situações de pânico também os atingem. São explosões tão fortes que as crianças ficam muito amedrontadas e a um passo de um ataque de pânico. Os adultos, ao não conseguirem dormir, apelam para calmantes e antidepressivos. Os problemas respiratórios os levam ao único hospital da região em Araçuaí, que está sempre lotado. Muitas vezes são 12h de espera na fila. É uma tosse daqui outra d’acolá que não para e acaba evoluindo para pneumonia.
Este capitalismo desenfreado, como popularmente é dito, não tem dó nem piedade. É desumano, desumano, desumano! Espalha aos quatro cantos do Vale do Jequitinhonha, além do pó das minas, os sintomas mortíferos de uma síndrome de desumanização. Não está nem aí para o povo, sua terra e seu sofrimento. O capitalismo só tem sede de lucros, mais lucros, cada vez mais lucros. Não tem sede de justiça e de direitos cidadãos. Liga o “não estou nem aí para vocês!” Para além das explosões nas minas, parece desejar que as comunidades locais também se explodam!
Referências Bibliográficas:
MENDES DE SOUZA, Valdemiro; et al. A mineração de lítio no vale do Jequitinhonha: impactos econômicos, socioambientais e geopolíticos.
GUATELLI, Caio. Mineração de Lítio adoece comunidades do Vale do Jequitinhonha.
KOOP, Fermín. ‘Em nome do lítio’: um filme sobre os conflitos da mineração na Argentina.
*Doralina Rodrigues Carvalho é militante política sob o regime da ditadura militar: presidente da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE MG), vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), participante da organização política Ação Popular Marxista Leninista (APML). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Professora do Centro de Filosofia do Instituto Sedes Sapientiae. Terapeuta e Covisora Clínica. Coordenadora do Instituto Candeias.
**Agradeço a Heitor de Pedra Azul, compositor, intérprete e poeta, a sugestão para que eu fizesse esse artigo e a indicação das referências bibliográficas.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
****Artigo publicado originalmente em Terapia Política.
Edição: Martina Medina