Era uma vez um rei muito poderoso que tinha um belo pássaro, com asas coloridas e um canto maravilhoso, preso dentro de uma gaiola de ouro. Toda vez que o rei, cansado, precisava se animar, ele ia até a gaiola e dizia ao pássaro que abrisse suas belas asas e cantasse sua afinada música.
Certo dia, o rei, muito feliz, decidiu premiar o pássaro. “Pede o que quiser e eu te dou”, disse. O pássaro respondeu: “Meu caro rei, sei que tenho uma bela gaiola e sou muito bem tratado aqui, mas o que eu queria mesmo era poder sair e cantar livremente.” O rei rebateu: “Ora, pássaro, isso eu não posso lhe dar”.
Então, semanas depois, o rei saiu em uma viagem diplomática ao reino vizinho, onde tinha capturado seu belo pássaro. E disse a ele: “Vou até o seu reino, quer alguma coisa?” O pássaro pediu: “Vá até um vale, à direita da montanha mais alta. Vossa Majestade verá um lago com árvores frondosas em volta. É lá que estarão meus parentes, mande uma saudação a eles.”
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Eram 16h23 da tarde da última terça-feira (21) quando o ator Zé Bocca iniciou essa história diante de 28 internos da Fundação Casa, unidade 3, em Sorocaba, no interior de São Paulo. Todos uniformizados, com agasalhos em azul marinho e chinelos de dedo também azuis, ou com tênis surrados. Quase todos negros.
Sete deles já conheciam a história: eram alunos de Zé em uma das oficinas profissionalizantes oferecidas na unidade, em parceria com o Senac. A reunião com os demais jovens naquele setor (só nessa unidade são quatro, com 110 adolescentes) fazia parte de uma ação do Dia Mundial de Contar Histórias Para Mudar o Mundo, criado em 2010 por uma ONG chamada Rede Internacional de Contadores.
Durante 40 minutos, os jovens se reuniram numa roda e ouviram os causos de Zé Bocca, ator com quase 30 anos de carreira e especialista na arte da contação de histórias – mais do que simplesmente contar, significa praticamente encenar a história, sem recursos de luz, maquiagem e figurino, apenas com o gestual e as vozes.
Alguns dos alunos do curso se animaram. Como André*, 16 anos, que viu na arte da contação uma chance de ganhar a vida longe do crime – está detido por “um cinco sete”, ou seja, artigo 157 do Código Penal: roubo. “Esse curso me dá mais entendimentos sobre a vida”, explica o jovem negro, alto e magro, que contou uma história sobre o dia em que perdeu seu cachorro de estimação, reencontrado por um amigo de infância que não via há muito tempo, e arriscou um trecho de uma música de sua autoria, um hino religioso falando sobre como confiar em Deus mesmo no internato.
Palavras religiosas também saíram da boca de Pedro*, outro aluno do curso de contação de histórias, que cantou um funk próprio com letras falando de Deus e da família e do desejo de mudar de vida após deixar a Fundação, onde passou o último de seus 18 anos recém-completados. “O curso é bom, a gente aprende bastante coisa. Ele ajuda a perder a vergonha. Quando eu sair daqui e for pra uma entrevista de emprego, vou estar mais preparado.” E o funk, melódico ao melhor estilo Claudinho & Buchecha? “Eu não gosto tanto de funk, prefiro rap, hip hop, mas a inspiração veio nesse ritmo e eu fiz a música, fiquei bastante tempo pensando nela.”
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O rei atendeu ao pedido do pássaro. Depois de seu encontro com o rei vizinho, foi até o vale e lá viu dezenas de pássaros tão belos como o seu. E gritou: “Meus caros, sou o rei do reino vizinho e mando uma saudação de um de vocês, que está morando em uma gaiola em meu belo palácio.” Então, um pássaro igual ao do rei despencou do galho da árvore mais alta. Estava morto.
Assustado, o rei foi embora. De volta a seu palácio, disse ao pássaro. ”Fiz o que me pediu, meu caro pássaro, mas aconteceu algo estranho. Do alto da árvore mais alta, um outro pássaro, muito parecido com você, despencou e caiu morto.” Triste, o pássaro respondeu: “Esse pássaro, meu rei, era meu irmão.” E, em seguida, também caiu morto.
O rei então se arrependeu e tirou o pássaro da gaiola e o colocou na soleira da janela. Mas, em seguida, percebeu que ele respirava e se mexia. O pássaro, então, se levantou, livre, e disse ao rei. “Aquele era meu irmão e me mandou um recado, caro rei. Não importa a mensagem, e sim o mensageiro, que nem precisa saber que está carregando essa mensagem.” O rei, estupefato, disse: “E qual é essa mensagem?” O pássaro respondeu: “Liberdade não se pede, liberdade se conquista!” E saiu voando, livre, pelos céus.
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Foi com essa história que Zé Bocca encerrou sua apresentação, por volta das 17h. De calça branca, camisa salmão, boina preta, suspensórios e sandália branca com motivos cangaceiros, o ator nascido na vizinha cidade de Votorantim pratica a contação há 16 anos e admite, já em seu carro, no caminho de volta para casa, que oferecer o curso na Fundação Casa é um desafio a mais
“Não é um trabalho fácil. A gente tem que ensinar a rir, a chorar, a brincar, a ter emoções. E isso com gente que nunca teve a chance de ser criança. É um terreno árido. No dia da primeira aula estava passando Atlético de Madrid x Bayern de Munique [duelo pela milionária Liga dos Campeões da Europa] e não foi fácil tirar eles da frente da TV. Mas, claro, o resultado é muito legal, é gratificante dar uma chance para eles terem uma vida diferente quando saírem”, analisa o ator.
Além das aulas de contação, os internos da unidade podem ter aulas para substituir o ensino formal, além de cursos profissionalizantes, de arte e cultura e atividades esportivas. “´Foi um dia especial, porque quebra barreiras. São jovens que não tiveram esse momento quando crianças, mas a gente viu que todos participaram, se soltaram. É muito produtivo. É quando a gente vê de fato o desenvolvimento e a sociabilidade de todos”, defende Luciana Monteiro dos Santos, coordenadora pedagógica da unidade 3. É uma chance de descobrir, por si só, que é possível ser livre usando apenas o próprio talento – como o belo pássaro da história.
*Os nomes são fictícios, para preservar a identidade dos personagens
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