Opinião

Onze teses sobre a questão democrática no pós-golpe

"Uma nova frente política, cujo centro de gravidade esteja na esquerda, é o que deve compor as preocupações da esquerda

Porto Alegre |
"Hoje, o golpismo é um processo mais complexo, que avança no terreno da democracia política", analisou Genro
"Hoje, o golpismo é um processo mais complexo, que avança no terreno da democracia política", analisou Genro - Guilherme Santos/Sul21

Trata-se de uma contribuição ao debate, que certamente a esquerda deverá enfrentar, no próximo período.

1. A corrupção no Estado e a corrupção – na concorrência entre os capitalistas – para ampliar os seus negócios no mercado, antes de ser um problema ético-moral, é, não só uma forma de organizar as relações de poder, dentro e fora do Estado, como é, principalmente, um elemento importante do processo de acumulação. Tanto de dinheiro ou recursos conversíveis em dinheiro, como de poder político e burocrático, dentro e fora do Estado. O processo de acumulação, com maior ou menor taxa de “ilegalidades”, organiza o Estado e vai construindo – pela ação consciente dos sujeitos – as formas jurídicas que pretendem, tanto bloquear e punir as ilegalidades, como criar condições formais de igualdade. A forma de combater a corrupção é, provavelmente, o elemento mais definidor da maturidade ou precariedade do Estado de Direito na modernidade, pois nela está, no capitalismo organizado, o espaço no qual direito e política se comunicam e se interpenetram na esfera pública.

2. Dentro do Estado de Direito Democrático se enfrentam, permanentemente, forças políticas e atores burocráticos – por necessidade ou convicção – comprometidos com a ordem jurídica e os que atuam segundo as suas próprias normas, pela força e pela ilegalidade. Como a corrupção e as violações da legalidade são um modo de ser do próprio Estado, este enfrentamento – em maior ou menor grau – transita por todos os partidos, em todos os setores da sociedade e do Estado, é instrumentalizado, em momentos de crise, normalmente pelos setores que mais dependem do aparelhamento do Estado, para manter seu poder político ou para aplicar seus programas econômicos. Nenhum outro tipo de Estado pode favorecer o combate à corrupção como Estado de Direito Democrático, porque ele admite a cena pública, na política, em que pese as deformações que interferem sobre ela. Mas, de outra parte, nenhum outro Estado é tão pouco resistente à instabilização, como o Estado de Direito Democrático, hoje, pela força do capital financeiro transformado em ação política e facção organizada, que se sobrepõe aos partidos.

3. A sinalização para o golpismo institucional, que foi se aperfeiçoando no país depois das eleições de novembro de 2014, foi dada em julho de 2013. Primeiro, com a glamourização dos movimentos de rua, promovida pela mídia oligopolizada, que chamou às ruas milhares de pessoas – predominantemente das classes altas e médias, somadas a parte da população de renda baixa, descontentes com o governo Dilma; segundo, o golpismo aperfeiçoou-se com a liderança explícita do oligopólio da mídia, escrevendo a pauta dos operadores políticos do movimento, com um sentido claro: de uma parte, formulando a tese de que “o gigante acordou”, assim colocando por terra – com esta fórmula simples e de fácil apreensão popular – a memória “social” dos três governos progressistas já em crise.

4. De outra parte, a sinalização do golpismo levantou a agenda da “corrupção”, como se esta fosse inventada por aqueles governos populares, tema fundamental para a deslegitimação das eleições presidenciais. Esta agenda, principalmente, permitiu que a parte mais corrupta da oposição, se unisse com a parte mais corrupta do governo, compondo uma unidade aparentemente saneadora do Estado, mas que, na verdade, promove um bloco político que apenas pretende se proteger das investigações e processos em curso. Seu preço, para serem acolhidos pela mídia oligopolizada, como aliados conjunturais, é o aprofundamento do “ajuste” recessivo, cumprindo as ordens dos credores da dívida pública, para a “modernização” do Estado. Leia-se: abandonar qualquer veleidade de cooperação interdependente no cenário global, para transitar, novamente, para a submissão dependente, dentro dos ditames do capital financeiro.

5. A partir destas sinalizações e de um martelamento contínuo, com vazamentos seletivos, instalação de uma jurisdição nacional ilegal, prisões forçadas para promover delações premiadas, criação de um ambiente de hostilidade fascista contra o PT e os seus aliados mais próximos, abre-se um ambiente de “exceção” e os processos judiciais e seus inquéritos – devidamente direcionados – se tornam expressão de uma disputa política profunda sobre os rumos do Estado. O ambiente de “exceção” constitui, assim, o espaço político e jurídico, já exclusivo de operações políticas, que permitem movimentos aparentemente legítimos, à margem do Estado de Direito, como a derrubada de uma presidenta, sem causa legal. Esta derrubada está sendo possível, também, pela inépcia política do próprio Governo e da maioria do PT, no Parlamento, que até a última hora acreditava na generosidade fisiológica do PMDB. Nas últimas semanas, PT e governo reagiram bem, mas reagiram tarde.

6. Através destes e outros movimentos, formou-se uma grande aliança farisaica, tendo como seu “partido moderno” e centro de elaboração estratégica, a mídia oligopolizada, que vai promovendo e desfazendo alianças, manipulando e selecionado informações, ajustando os próximos passos, com partidos e setores de partidos, sempre tendo como agentes políticos implícitos, mas estáveis, o ex-presidente FHC, o presidente da Câmara Eduardo Cunha, o deputado Bolsonaro – este sempre poupado pela mídia, como permanente apologista da tortura – até o momento em que não servirão mais aos seus intentos de derrubada do governo. A grande mídia e seus agentes políticos, neste movimento estratégico, incentivaram o vice-presidente e seu grupo à traição, com a promessa implícita que eles seriam incensados para “salvar o Brasil da corrupção”: partidos e grupos internos aos partidos, vão sendo cooptados, conformando – desta maneira – um só movimento estratégico. É um movimento amarrado com setores da alta burocracia estatal da Justiça, para realizar um cerco completo ao Governo e ao Presidente Lula – principal sustentáculo político do Governo e seu mentor – sem que sejam apontados, até agora – a não ser por informações interessadas de delatores – quaisquer fatos concretos que o envolvam com a corrupção, e a Presidenta Dilma, com crime de responsabilidade. Este é o movimento estratégico do golpe, travestido de “impeachment”.

7. A discussão meramente jurídica, a respeito do processo de deposição da presidenta – se é “golpe” ou não – é uma face insignificante do debate em curso. Não se trata de comparar a situação atual, com os golpes militares, que ocorreram nas décadas de sessenta e setenta, no auge da “guerra fria”. Hoje, o golpismo é um processo mais complexo, que avança no terreno da democracia política, e cuja força organizadora não é mais uma articulação civil-militar contra o comunismo, mas uma composição de forças, dentro do aparato civil do Estado, com quaisquer forças políticas que estejam dispostas a fazer a gendarmeria do capital financeiro. Este, precisa tornar mais intensa a sua sobreposição ao Estado e aos partidos, para ajustar as economias locais à economia mundial, com vistas a um novo ciclo de acumulação, mais elitista e mais conservador. Este novo ciclo, não mais suporta, de um lado, as concessões da social-democracia aos pobres e miseráveis, e, de outro, não mais aceita a projeção de destinos nacionais, que não sejam integralmente submetidos a força “reformista” da utopia da direita: a utopia do mercado perfeito.

8. Os governos Lula e Dilma não foram suficientemente reformistas, no plano político, nem suficientemente ousados no plano econômico, para sustentar um novo ciclo de acumulação e distribuição de renda, capazes de dar apoio a um destino nacional-popular, formando um bloco social e político coeso, que se opusesse com viabilidade, à tutela do capital financeiro. Mas, seja a conjuntura pós-guerra fria, a responsável por isso, seja o sistema de alianças que foi possível nesta etapa, sejam os métodos de governo tradicionais que foram adotados, sejam todos estes fatores reunidos, o legado que melhorou a vida de mais de cinquenta milhões de brasileiros, que apostaram no segundo governo Dilma, não pode ser depreciado. É o fim de um ciclo, não é o fim da esquerda nem da democracia, que chega ao seu limite na América Latina: o “chavismo” fracassou rotundamente, a experiência Argentina está em fase de dilapidação por um governo legitimamente eleito e não serve de parâmetro para o Brasil. Os demais governos reformistas democráticos – desta nova etapa de configuração da esquerda em escala mundial – ou se rendem por vontade política, ou são obrigados a se render às coerções do “ajuste”, na nova crise do capital.

9. A destruição das grandes empreiteiras nacionais, que tem uma enorme projeção internacional (em vez de serem punidos exclusivamente os indivíduos que tem responsabilidade penal), o bombardeio permanente contra a Petrobras, a desindustrialização que é acelerada pela recessão (que será ainda mais dura), a fragilização dos programas das Forças Armadas (relacionados com as ações de proteção e controle da Amazônia e do Atlântico Sul), o aparelhamento do Estado por uma elite política que é movida apenas pelo intuito de retirar o PT do poder – que não tem nem unidade programática nem densidade moral para combater a corrupção – é o que nos espera no próximo período. E que, de certa forma, já está em curso pelas sucessivas e infrutíferas concessões feitas pelo Governo à agenda neoliberal.

10. A fragilização econômica, política e militar do país, nos entrega numa bandeja para a elite financeira que comanda os ajustes no mundo. A minimização das políticas sociais, ajustada com a redução das funções públicas do Estado abre, porém, um novo ciclo de lutas “de baixo para cima”, e uma nova possibilidade de unidade do campo da esquerda, com o centro democrático e progressista. Seus elementos de coesão, neste período, dizem respeito, não somente às lutas de resistência contra a retirada de direitos, mas, igualmente, à restauração da legitimidade do poder político, que pode ser pautada imediatamente após a realização plena do golpe: novas eleições presidenciais, novas eleições gerais, plebiscito para convocá-las, reforma política emergencial, com ou sem Constituinte, deverão estar no centro das preocupações da cidadania democrática, que apesar dos erros e omissões dos nossos governos, estiveram na agenda do país na última década.

11. Uma nova frente política, cujo centro de gravidade esteja na esquerda – não mais no centro fisiológico e oligárquico que está representado pelos que abandonaram o governo e pelos que tendem a hegemonizar o oposicionismo neoliberal – é o que deve compor as preocupações da esquerda social e política, no atual período, sob pena de que o retrocesso, que estamos enfrentando, se torne mais grave e de mais longo curso. É no terreno de “mais democracia”, mais controle público sobre o Estado, mais participação direta dos cidadãos na gestão pública, mais Estado Social de Direito, que podemos avançar para deslegitimar o golpe. Isso significa, sobretudo, apresentar um programa concreto para a retomada do crescimento e do emprego, elementos da crise que não soubemos enfrentar e que prepararam a cultura do golpismo que nos derrotou. O Partido dos Trabalhadores, com o presidente Lula à frente, deve ter a humildade e a autocrítica suficiente para, de uma parte, defender os avanços do período, que não foram poucos, mas sobretudo de compartilhar a direção política da esquerda, com outros setores organizados e partidos, que não estiveram integralmente conosco neste período.

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