Quem esteve nas ruas nos últimos meses para barrar o golpe, defender a democracia e denunciar a corrupção de Eduardo Cunha, Michel Temer e toda a corja de traidores, torturadores e golpistas que dirigem o Congresso Nacional, pôde ver a nova cara da luta democrática do Brasil. Ela não tem medo de vestir vermelho (cor tradicional das ideologias comunistas e socialistas), usar batom roxo e dançar funk enquanto puxa gritos de ordem.
Em 1992, estudantes de todo o Brasil foram às ruas para depor Fernando Collor de Melo, um presidente privatista e corrupto que quase arruinou a economia nacional em um projeto neoliberal de desmonte de todo o patrimônio público do Estado brasileiro, com impacto direto no Tesouro Nacional e, portanto, na vida da população.
Com rostos pintados de verde e amarelo, a juventude dos anos 1990 reivindicava uma reterritorialização da identidade nacional, pois o que ocorria era uma supervalorização da cultura norte-americana e a institucionalização do tal complexo de vira-laras, cuja narrativa era de que nada no Brasil prestava ou tinha qualidade e que, portanto, era preciso importar mão-de-obra, matéria-prima, indústria, tecnologia. Era o álibi perfeito para vender o Brasil e embolsar uma bela comissão para os cofres da burguesia.
O “Fora Collor” das ruas foi um movimento unânime, pois a piora na vida das pessoas era tão grande que nem a elite teve coragem de ir à rua em massa para defender aquele projeto.
O momento atual é diferente. De um lado, a base social de uma extrema direita fascista e violenta se mobiliza para ir às ruas, reivindicando as cores do nacionalismo (de 64 e não de 92), pregando o ódio e a intolerância política, religiosa, cultural, organizando um show de horrores com práticas e valores misóginos, lesbofóbicos e racistas contra a presidenta Dilma, o ex-presidente Lula, o PT e toda a população beneficiada pelos governos democráticos e populares. Trata-se de um segmento, obviamente, contraditório, pois defendem o nacionalismo de 64, dizem-se patriotas, mas reivindicam medidas ultraliberais como saída para a crise econômica.
Do outro lado, estamos nós: artistas urbanos, trabalhadoras rurais, cyberativistas, sindicalistas, militantes sem-teto e Sem-terra, midialivristas, estudantes, funkeiros, sambistas, pixadoras, grandes personalidades, gente tímida que nem saía de casa, jovens, pretos, sapatões, transformistas de um novo mundo. Vestimos vermelho sem medo de ser feliz, pois nosso nacionalismo não é sectário e tampouco incompatível a uma luta internacional. Somos quem coloca novas cores na identidade do Brasil, cores de melanina e purpurina, cores de liberdade, cores que questionam a ordem e aquele modelo de progresso, mas nem por isso deixamos de torcer e chorar pela seleção brasileira ou reivindicar a soberania nacional.
“Roda Mundo, Roda Gigante, RodaMoinho, Roda peão, o tempo passou num instante...”
Ao lado das entidades históricas e das nossas referências de luta, sujeitos que foram torturados até vencer a ditadura, gente que participou das greves do ABC Paulista, gente que fundou os partidos da esquerda, gente que enfrentou os piores momentos de recessão político-econômica do país e que conquistou com muito suor as eleições de Lula e Dilma e todas as vitórias sociais que vieram com elas, estamos nós: uma geração forjada em um momento de conquista de direitos, uma geração não privilegiada, mas beneficiária da luta de resistência do povo brasileiro que começou há mais de 500 anos e está longe de terminar.
Nós, jovens brasileiros e brasileiras, gozamos da oportunidade histórica de acessar a universidade, mesmo vindo da classe trabalhadora; gozamos da oportunidade histórica de escolher qual conteúdo consumir, pelo advento da internet e da popularização dos smartphones; gozamos da oportunidade histórica de virarmos cidadãos do mundo, através da popularização das passagens aéreas; gozamos da oportunidade histórica de não precisar escolher entre música clássica e trap, entre Bossa Nova e Proibidão, entre nossas opções individuais e nosso impulso revolucionário pela luta coletiva; tudo isso tem a ver com cidadania, com direitos, com autonomia, com o acesso à oportunidades que nossos pais não tiveram.
Somos ainda parcela entre o todo? Somos. Mas somos representatividade, somos referência, somos um horizonte inteiro de expectativas para as crianças de nossa família, de nosso bairro, de nossa escola, para outros e outras jovens que nos seguem nas redes sociais e para quem, antes de nós, deu o sangue que nos trouxe aqui. Esta oportunidade agora virou responsabilidade.
Quero dizer que temos capacidade de cumpri-la, e já estamos fazendo bonito. A juventude tem cumprido um papel genial na luta contra o golpe e precisa ter lugar de fala cada vez mais consolidado neste momento.
Quem de nós não se emocionou com a grandiosidade e potência reunidas na 3ª Conferência Nacional de Juventude? Quem de nós não chorou quando a Kizomba indicou uma mulher negra para a Vice-Presidência da UNE? Quem de nós não se arrepia quando vê os black power’s do enegrecer reacendendo as chamas da luta negra no Brasil? Quem de nós não ficou enlouquecida de orgulho com os dólares do Levante Popular da Juventude na cabeça do Eduardo Cunha? Quem de nós não admirou a coragem dos e das militantes que romperam com as estruturas burocráticas de um congresso para fundar nas ruas o Movimento da Juventude Petista? Quem não se emocionou com a saída triunfal do bloco da UJS mesmo depois derrota que sofremos na Câmara Federal no último dia 18? Quem de nós não se impressiona com a dedicação dos midialivristas do Mídia Ninja e quase todo dia chora com seus vídeos? Quem de nós não se empolgou com a capacidade de aglutinação do coletivo Arrua no #ocupeademocracia que levou milhares de pessoas para compartilhar valores e afetos no largo do Batata em São Paulo?
Isso sem falar no som unívoco das latas da batucada da Marcha Mundial da Mulheres e na Primavera Feminista, como um incrível sinal da disseminação do feminismo enquanto alternativa de vida para mulheres de todo o Brasil. Isso sem falar na União Nacional dos e das Estudantes, que realizou o maior encontro de mulheres da América Latina, e é a entidade que mais oxigena a esquerda brasileira e movimenta a juventude do nosso país. Viva a Une!
Somos ainda mais. Somos maiores e muito plurais. Vamos do “Porta dos Fundos” ao “Batekoo”, das iniciações científicas às lâminas laboratoriais das ruas, da tática black block ao “mais amor, por favor”, da programação de softwares ao pixo – desprogramação das bulas urbanas. A cidade é o palco deste novo momento, mas o campo continua sendo um motor de resistência, sendo o MST um ator imprescindível em nosso momento político.
Ultrapassamos a fronteira das organizações tradicionais, nos desenrolamos em novas coletividades, unimos o velho e o novo com afetividade, criamos zonas de interculturalidade: solidárias, tolerantes, respeitosas. Estamos dia a dia erguendo o monumento da democracia brasileira e lutando contra os tratores das empreiteiras, igrejas e conglomerados comunicacionais que insistem em derrubá-lo. Resistimos, resistiremos.
Precisamos da confiança, solidariedade e ensinamentos dos mais velhos para encarar este momento histórico. Temos a capacidade de traduzir nossas experiências históricas na linguagem das ruas e redes, de contaminar as novas gerações para este projeto libertário de Brasil, livre das desigualdades, do ódio e do monopólio da informação. A palavra de ordem não é mais cooptação e sim conurbação. A juventude não quer ser ganha para qualquer projeto acabado, ela quer construí-lo, protagonizar.
Autoritarismo, centralização, dirigismo são fórmulas falidas para esta geração: queremos relações horizontais de empoderamento coletivo, disputas mais solidárias, modelos mais leves de lutar contra as opressões barra-pesada. Acreditem, dá certo. Vem dando certo, somos fruto disso.
“Unido a gente fica em pé, dividido a gente cai, quem falha cai”
Não estamos no momento de travar disputas internas em torno da hegemonia. Paz entre nós, guerra aos senhores. A luta que está dada vai para além da luta contra o golpe no Senado ou no STF. É uma luta de futuro, de valores: contra o fundamentalismo, contra o fascismo, contra a misoginia e o racismo. Contra a barbárie. O que está em jogo é a consciência coletiva do povo brasileiro, sobre quais os sentidos da democracia queremos construir, e mais do que isso: nossas vidas. Conquistamos muito nos últimos anos e ainda assim estamos à beira do abismo, a um passo da Ponte para o Passado* e não podemos cair.
Não nos cabe sermos arrogantes neste momento. Não podemos nos dar ao luxo de afastar nenhum sujeito progressista, muito menos se for jovem. Precisamos ter humildade de entender que cada pessoa que vamos dialogar tem sua trajetória, sua consciência (pode não ter tanta informação quanto nós – o que chamamos de consciência de classe/raça/gênero, mas tem autonomia e capacidade de reflexão) e quer ser tratado com respeito. O processo de convencimento precisar ser em si mesmo libertador, para quem convence e para quem é convencido. Cada jovem negro, branco, hetero, gay, cis, trans, homem, mulher, urbano, rural, muito ou pouco escolarizado, muito ou pouco descolado, muito ou pouco antenado, religioso ou cético, precisa estar no centro de nossa disputa por uma nova cultura política. Somos bons e somos muito, mas, para vencer esta guerra, vamos precisar de todo mundo!
*Ironia ao Ponte para o Futuro - programa de governo do traidor Michel Temer que, caso o golpe se concretize, prevê o desmonte dos direitos trabalhistas, das poíticas sociais e da soberania nacional, com vistas à privatização do Estado brasileiro.
(*) Bruna Rocha é diretora de Mulheres da UNE e militante do Coletivo Enegrecer
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