Reportagem especial

Retomadas Kaiowá em Douradina (MS) completam dois meses como epicentro do conflito fundiário por demarcação: 'Estamos na guerra'

'Nós não queremos mais acordo, não. Agora nós queremos a terra já', afirma liderança indígena da TI Panambi Lagoa-Rica

Brasil de Fato | Douradina (MS) |

Ouça o áudio:

Rezadoras cantam (à esq.) e a comunidade da retomada Yvy Ajherê se reúne (à dir.); ao fundo, o acampamento de fazendeiros - Gabriela Moncau

Rio contaminado, ataques armados, jovem com bala alojada no cérebro, indígenas alvejados no pescoço e na perna, incêndios na mata e em casas de sapé. Com a indefinição do marco temporal, a recuperação de territórios ancestrais por parte do povo Guarani Kaiowá e a violenta reação de fazendeiros, a pequena cidade de Douradina (MS) se tornou um epicentro do novo capítulo do conflito fundiário brasileiro. 

Nesta sexta-feira (13), completam-se dois meses desde que indígenas retomaram três áreas da Terra Indígena (TI) Panambi Lagoa-Rica. A partir daí, a tensão escalou no Mato Grosso do Sul. A área de 12.196 hectares foi delimitada e reconhecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2011 como de ocupação tradicional do povo Guarani Kaiowá, mas o processo demarcatório está estagnado desde então. De acordo com dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), há pelo menos 26 propriedades rurais sobrepostas ao território.

Na noite do último domingo (8), rojões foram disparados, uma vez mais, do acampamento de fazendeiros contra a comunidade Guarani Kaiowá de Yvy Ajherê. Na visão dos indígenas, o ataque aconteceu em retaliação à construção de uma casa de reza na área retomada.  

Com os disparos, os Kaiowá avançaram em direção ao acampamento, a Força Nacional também e, entre mediações e gritos guerreiros, os produtores rurais abandonaram o posto pela primeira vez em 57 dias. Fugiram para perto: até a sede da fazenda de Cleto Spessatto, a alguns metros dali.

Desmontou-se, então, o acampamento de fazendeiros que, apoiado por deputados federais de extrema direita, como Marcos Pollon (PL-MS) e Rodolfo Nogueira (PL-MS), estava estruturado desde 14 de julho.

"Nunca tinha me deparado com a formação de um acampamento de produtores rurais que ficam diuturnamente em frente a retomadas indígenas", atesta Daniele Osório, da Defensoria Pública da União (DPU) no Mato Grosso do Sul. 

Com caminhonetes e faixas com dizeres como "tomar terra é invasão", as tendas se armaram horas depois de os Guarani Kaiowá retomarem as três áreas na TI Panambi Lagoa-Rica: Yvy Ajherê, Kurupa'yty e Pikyxyin. Entre 26 e 30 de agosto, o Brasil de Fato visitou todas elas. Com as três retomadas recentes, são sete áreas ocupadas no total pelos indígenas na TI - a primeira aconteceu em 2010.


Sobreposta por fazendas, boa parte dos 12.196 hectares da TI Panambi Lagoa-Rica é usado para monocultura de soja e milho / Arte: Rafael Canoba

"Isso aqui era aldeia, tudo aqui, até lá", diz Gerusa*, apontando para a terra árida ao seu redor. Com suas duas netas ao lado, a senhora Kaiowá lembra que seus avós - Pedro Henrique e Celestina - são da geração que viveu naquele chão e que, nas décadas de 1930 e 1940, foi retirada dali à força pelo governo de Getúlio Vargas.  

Foi o período da "Marcha para o Oeste", projeto desenvolvimentista de integração econômica do Norte e Centro-oeste do país. Os indígenas foram confinados em uma aldeia que leva o mesmo nome e fica às margens da terra reivindicada. Enquanto isso, o Estado brasileiro emitiu títulos para colonos agrícolas que se instalaram, então, no território dos povos originários. A não demarcação arrasta o conflito até hoje.  

"Agora o fazendeiro está querendo de novo de volta e nós não vamos dar mais para fazendeiro. Porque isso aqui é o nosso direito, por isso a gente está lutando. A gente pode morrer. Pode até morrer - que plantem nós aqui também. A gente vai lutar e vai morrer por causa da terra", garante Gerusa. 

“It's sacred to us": the water

Pikyxyn is the Guarani name for lambari, a species of fish. It used to be abundant in the rivers that cross Indigenous territory. Now, not only is it no longer abundant, but its consumption seems to be as dangerous as drinking water from nearby rivers. On August 27, a three-year-old child was hospitalized after drinking water from the river that crosses the territory and spent eleven days in the hospital. Another 10-year-old and an adult man also fell ill.

The day after the boy's mother rushed him to the University Hospital in Dourados, the Guarani Kaiowá were planting banana trees when they saw that the water in the reservoir that surrounds the Yvy Ajherê settlement was dark. On the riverbank, a dead snake made up the grim scene. 

“Water is sacred to us. We used to drink it back when it was clean water. Now it's turned to coal. This snake never dies, this jararaca [a species of snake]. It falls into the water, but it comes out again, it never dies. But now, I'm sure the agribusiness men have poured poison into the water,” says Apukay, one of the leaders of the retomada.  

On the same day, the report followed a conversation between the National Force and four men from the farmers' encampment. The security agents asked them to “avoid setting off fireworkers” against the Indigenous people. 

Without water being mentioned, one of the men pointed to the reservoir when he complained about the Indigenous people to the National Force commander. “They go and throw things in there and then film everything. Like one of the chiefs, I don't know who. He came out of there with a bottle, incriminating us. What do we do? We don't leave here,” he defended himself, without being accused.

In fact, the Indigenous community is demanding that an expert reveal which substances caused the animals to die and the children to fall ill. Water samples were collected and sent to the Central Laboratory (Lacen, in Portuguese) and the Oswaldo Cruz Foundation (Fiocruz, in Portuguese) in Rio de Janeiro. The results will probably be released in September.

In a statement, the Ministry of Health said that the Mato Grosso do Sul Special Indigenous Health District (DSEI-MS, in Portuguese) “is working with local authorities to avoid water shortages in the community”.

“We're improvising. For now, we’re bringing water from another Indigenous community. They say they're going to fix a water tank for us, bring us water in a barrel,” says Isaías. “We're digging wells in the middle of the bush, but the water isn't coming out either,” he laments. “The first time we arrived here, the river was clean. But I think the farmers threw something into the water. And it got worse. People who have drank it have had stomachaches and diarrhea. It's too bad to drink water here,” he sums up.  

It wouldn't be the first time that toxic products have been used as a chemical weapon against Indigenous peoples in Mato Grosso do Sul. Published this year in the journal Ciência e Saúde Coletiva, a Fiocruz study found 22 types of active pesticide ingredients in the waters of the Guyraroká retomada, in the city of Caarapó, in the state of Mato Grosso do Sul, and in the Jaguapiru community, in Dourados. Of all these substances, 41% of the community residents have serious health impacts and 68% are banned in the European Union.  

But one doesn't have to leave the Panambi Lagoa-Rica Indigenous Land in search of examples. Genivaldo*, the young Indigenous warrior who denounced the water situation to a delegation of jurists and human rights defenders who visited Yvy Ajherê on August 30, bears the marks of pesticides sprayed by farmer Cleto Spessatto on his body.

“Many people ask me 'why do you wear glasses?” she said, holding the collected water in one hand and the mbaraká (Indigenous sacred instrument), bow and arrow in the other: “Because of the poison. When I was a child and planes flew over us, I used to look up, because I didn't know”.

Because of the episode that damaged Genivaldo's vision, the Federal Public Prosecutor's Office (MPF, in Portuguese) filed a lawsuit against Spessatto, the airplane pilot Laurentino Zamberlan and the company Dimensão Aviação Agrícola Ltda, asking for compensation of BRL286,000 (over US$ 52,00) for the Guyra Kambi'y settlement, where the young man used to live. 

The fine was due to the aerial spraying of poison over the community on January 6, 2015. In 2019, however, the 1st Federal Court of Dourados decided that a payment was not necessary. In the decision, the use of pesticides was compared to the fight against dengue fever. “There are activities that cannot be suppressed without seriously harming the community,” the ruling said.

"Estamos na guerra": o fogo 

"Estamos reivindicando a terra que foi nossa. Estamos na guerra agora", definiu Isaías*, jovem Guarani Kaiowá. O termo não foi aleatório. Foi dito enquanto observava as águas do rio que, desde os últimos dias de agosto, ficaram cor de carvão.  

Na avaliação dos indígenas, as águas foram envenenadas propositalmente para dificultar a permanência nas retomadas. É mais um dos elementos que compõem uma espécie de guerra 'quente-fria' instalada na TI Panambi Lagoa-Rica. 

Fria porque marcada por uma tensão permanente que a qualquer momento pode explodir. Num descampado recentemente usado para monocultura de milho e soja convivem, separados por poucos metros: os indígenas da retomada Yvy Ajherê, o acampamento da Força Nacional e, antes também acampados e agora abrigados na sede dos Irmãos Spessatto, os fazendeiros. 

Os Guarani Kaiowá observam, à distância, homens que reconhecem lhes ter atacado. Pouco se dorme. Durante a noite, holofotes ou faróis de caminhonetes apontam para a retomada. Nas áreas urbanas de Douradina e de Bocajá, cidade próxima, indígenas sofrem boicote nos comércios.

E quente porque muitas vezes explode, como evidencia a grande quantidade de indígenas com cicatrizes no corpo. O calor pode ser literal, como do fogo que reduziu a pó uma casa de sapé na retomada Pikyxyn na madrugada do último 5 de setembro ou o que incendiou o entorno de Yvy Ajherê em 4 de agosto.  

O mais sangrento dos ataques armados foi em 3 de agosto, quando homens empoleirados em caminhonetes atiraram com balas letais e de borracha contra a retomada Kurupay’ty. Dez pessoas ficaram feridas. Erielton*, de 20 anos, tomou um tiro na cabeça. Para a surpresa de muitos, incluindo o médico que o atendeu, ele e seu primo de 17 anos, alvejado no pescoço, sobreviveram.  

"O rapaz dentro do carro estava soltando foguete. Aí já não soltou mais foguete. Aí já meteu bala mesmo. Quando reparei, já acertou na minha cabeça. Eu caí no chão, estava tremendo. A minha perna estava tremendo assim", Erielton gesticula com a mão ao fazer o relato para o Brasil de Fato. Contou que correu bambo pela estrada já sem conseguir enxergar, quando foi resgatado por outro indígena, de moto.  

Iluminado pela luz da fogueira e com sua mãe ao lado, Erielton se indignou ao lembrar de um vídeo postado nas redes sociais pelo candidato a vereador de Dourados (MS) pelo PL, Sargento Prates, em que acusa os indígenas de estarem "se vitimizando". Botando a mão na cabeça no exato lugar em que Erielton tomou o tiro, o bolsonarista sugere: "Vai saber se não passaram extrato de tomate ali para prejudicar os produtores rurais". 


Jovem de 20 anos mostra cicatriz do tiro que tomou na cabeça em ataque de fazendeiros / Iolanda Depizzol

A bala segue no crânio do jovem Kaiowá. "Se tirar, é perigoso", considera. Consegue falar, caminhar, fazer serviços leves. Mas sente dor, não consegue ficar exposto ao sol nem carregar peso. "Até o médico ficou admirado comigo que eu não tinha morrido", conta. "'Como você está vivo ainda?', ele falou para mim. Eu não sei. Eu não sei... Eu acho que eu estou confiando em Deus mesmo", diz. 

Poty Rendy tem 63 anos e é nhandesy (rezadora, em guarani) desde pequena. Durante a infância e juventude dela, sua avó lhe passou os ensinamentos naquela terra mesmo, para onde Poty retornou agora, na retomada de Kurupa'yty. "Meu filho me trouxe para cá para rezar, para não acontecer muita coisa feia aqui", explica.  

"Isso aqui chama yvyrai", ela aponta para um altar na sua frente. "Nós rezamos aqui, conversamos com nhanderu guasu [grande Deus] lá no céu. Ele fala conosco também. Por isso nós não podemos judiar disso aqui. Isso aqui é o mais importante para nós. Por causa disso, o karai [branco] não matou a gente", diz Poty, também conhecida como dona Yara. 


Dona Yara, rezadora Guarani Kaiowá de 63 anos, na retomada Kurupa'yty / Iolanda Depizzol

"Balearam para lá, mas não vieram para cá", Poty Rendy mostra até onde chegaram as caminhonetes no dia do ataque que feriu Erielton e outras nove pessoas. "Eu fui até lá para rezar. Depois que trouxeram meu sobrinho de moto para mim. Rezei até aqui, na beira da valeta", conta. "Grande Tupã nos abençoou para não acontecer coisas piores na nossa vida", diz. 

Francisco*, liderança da retomada de Pikyxyn, ficou praticamente sem comer e dormir depois do ataque. "É tudo guri novo", suspira. "Jovem é para ter futuro. Se eles morrerem... foi por Deus mesmo."  

"É sagrada para nós": a água 

Pikyxyn é o nome guarani para lambari. O peixe era abundante nos rios que cruzam o território indígena. Agora não só não é mais, como seu consumo parece ser tão perigoso quanto beber a água de onde ele era pescado. Em 27 de agosto, uma criança de três anos foi hospitalizada depois de tomar água do rio e ficou internada por onze dias. Outra de 10 e um homem adulto também passaram mal. 

No dia seguinte em que a mãe do garoto foi às pressas com ele para o Hospital Universitário de Dourados, os Guarani Kaiowá plantavam pés de banana quando viram que a água do açude que rodeia a retomada Yvy Ajherê está escura. Na margem, uma cobra morta compunha o cenário tétrico.  


Indígenas se depararam com água suja e animais mortos / Iolanda Depizzol

"A água é sagrada para nós. Nós tomamos essa água, mas era água limpa. Agora virou carvão. Essa cobra nunca morre, essa jararaca. Cai na água, mas sai de novo, nunca morre. Mas, agora, decerto o produtor colocou o veneno aqui na água", avalia Apukay, uma das lideranças da retomada.   

Neste mesmo dia, a reportagem acompanhou um diálogo entre a Força Nacional e quatro homens do acampamento de fazendeiros. Os agentes de segurança pediam "que os senhores evitassem soltar rojões" contra os indígenas.  


Agentes da Força Nacional conversam com homens em acampamento de fazendeiros / Iolanda Depizzol

Sem que o tema da água tivesse sido mencionado, um dos homens apontou para o açude ao reclamar dos indígenas para o comandante. "Eles vão, jogam as coisas lá dentro e depois filmam tudinho. Igual um dos caciques, não sei quem, que saiu de lá com uma garrafa. Incriminando a gente. O que a gente faz? A gente não sai daqui", se defendeu, sem ter sido acusado. 

De fato, a comunidade indígena reivindica que uma perícia revele quais substâncias fizeram morrer os animais e adoecer as crianças. Amostras foram coletadas e enviadas para o Laboratório Central (Lacen) e para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro. Os resultados devem sair ainda em setembro.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que o Distrito Sanitário Especial Indígena Mato Grosso do Sul (DSEI-MS) "está em tratativas com autoridades locais para evitar o desabastecimento de água na comunidade".

"Estamos no improviso, trazendo lá da aldeia por enquanto, né? Falam que vão arrumar a caixa d'água para nós, trazer água na pipa", relata Isaías. "Nós estamos cavucando uns poços no meio do mato, a água não está saindo também", lamenta. "A primeira vez que a gente chegou era limpa. Mas acho que os produtores jogaram alguma coisa na água aqui. E foi piorando. O pessoal que tomou já sentiu dor de barriga, diarreia. Está feio aqui para tomar água", resume.   

Não seria a primeira vez que produtos tóxicos são usados como arma química contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Publicada neste ano na Revista Ciência e Saúde Coletiva, uma pesquisa da Fiocruz encontrou 22 tipos de ingredientes ativos de agrotóxicos nas águas da retomada Guyraroká, na cidade de Caarapó (MS) e na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Destes, 41% têm impactos graves à saúde e 68% são proibidos na União Europeia.   

Mas não é preciso sair da TI Panambi Lagoa-Rica atrás de exemplos. Genivaldo*, o jovem guerreiro que denunciou a situação da água para uma comitiva de juristas e defensores de direitos humanos que visitou Yvy Ajherê em 30 de agosto, carrega no corpo as marcas dos agrotóxicos pulverizados pelo fazendeiro Cleto Spessatto. 


Deborah Duprat, da Associação de Juízes para a Democracia, e outros juristas escutam Genivaldo / Gabriela Moncau

"Muitos me perguntam 'por que você usa óculos?'", relatou, segurando a água coletada em uma mão e o mbaraká (instrumento sagrado), o arco e a flecha na outra: "Por causa do veneno. Quando eu era criança e o avião passava, eu olhava para cima, porque eu não sabia". 

Por conta do episódio que prejudicou a visão de Genivaldo, o Ministério Público Federal (MPF) chegou a mover um processo contra Spessatto, o piloto de avião Laurentino Zamberlan e a empresa Dimensão Aviação Agrícola Ltda, pedindo indenização de R$ 286 mil para a retomada Guyra Kambi’y, onde o jovem cresceu.  

A multa seria pela pulverização aérea de veneno sobre a comunidade, em 6 de janeiro de 2015. Em 2019, no entanto, a 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados decidiu que o pagamento não era necessário. Na decisão, o uso de agrotóxicos foi comparado ao combate à dengue. "Há atividades que não podem ser suprimidas sem grave prejuízo à coletividade", afirmava a sentença.

"Como vamos invadir o que é nosso?": a terra 

"A gente tem que vencer esses fazendeiros porque é o nosso direito", destaca Gerusa. "Há quantos anos que nós estamos lutando? Várias pessoas que estavam esperando a demarcação de terra já morreram tudo já. Quem ficou foi o filho, o neto, a neta. E agora está guerreando, o povo está guerreando", afirma.  

"O fazendeiro pegou essa terra aqui e está dando lucro para ele. Comprando o carro, não sei o que mais, está rico, casa boa. E os índios passando sacrifício, passando sem nada. O fazendeiro não enxerga, eles estão ricos na custa dos índios", aponta a senhora Kaiowá.  

"Nós não queremos mais acordo, não. Agora nós queremos a terra já", diz Gerusa. E o "já", no caso da TI Panambi Lagoa-Rica, como evidenciam as idas e vindas sobre o marco temporal em Brasília (DF), só tem sido possível com indígenas retomando, por conta própria, seus territórios.


Tekoha é "lugar onde se é" em guarani; Yvy Ajherê significa "terra redonda" / Gabriela Moncau

A tese ruralista do marco temporal, segundo a qual indígenas só podem ter demarcadas as terras que estivessem ocupando em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, já foi considerada inconstitucional pelo STF em setembro de 2023.  

Em reação quase simultânea, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/23 que, entre outros ataques aos direitos indígenas, institui o marco temporal. O movimento indígena acionou o STF para a derrubada da lei e, enquanto o imbróglio judicial não se resolve, ela está em vigor. 

Além disso, a não resolução do tema paralisa todos os processos judiciais e demarcatórios que seriam afetados pela tese do marco temporal. A TI Panambi Lagoa-Rica é uma delas.  


Retomada Kurupa'yty, em meio ao território desmatado por décadas de monocultura / Iolanda Depizzol

"Infelizmente, essa falta de resposta fará com que haja um agravamento da violência no campo", avalia a defensora pública Daniele Osório. "Em Douradina, os indígenas estão esperando há pelo menos 60 anos essa demarcação. Quantas gerações já viveram e já morreram nessa luta e não tiveram a resposta definitiva?", constata. 

"Tudo isso acontece aqui pelos produtores rurais quererem ser os donos de tudo", opina Joselino*, liderança de Yvy Ajherê. "Eles falam que essa terra é deles, mas, desde os nossos ancestrais, já morávamos aqui em cima. Há centenas de anos. Eu nasci aqui, meu pai nasceu aqui, meus avós nasceram tudo nessa área aqui", elenca.  

"Nós conhecemos essa terra porque é nossa", ressalta Joselino. "Nós não viemos de outro lugar. Os fazendeiros falam que nós estamos invadindo as propriedades deles, mas isso é muita loucura. Como é que vamos invadir o que é nosso?", questiona. "Essa terra é nosso sangue, nosso respiro, nossa alegria", define.  

Francisco* titubeou quando o chamaram para participar das retomadas em 13 de julho. Vive, em suas palavras, "num cantinho" da aldeia que abriga cerca de mil indígenas em 362 hectares. O espaço é apertado e cheio de pedra, descreve.  

"Eu não ia vir. Mas aí eu falei com a minha esposa, a gente não tem nada mesmo aqui, por que vai ficar? E o que a gente vai comer? Aí eu falei para ela 'se você me der força, eu vou'", narra Francisco. "Como tem meus filhos, né? Aí eles têm filho também, né? E vai gerando. E onde que eles vão morar? Tem que ter alguma coisa na vida um pouco, né?", argumenta. "A coragem quem me deu foi o povo", diz. 

"Queremos que a Justiça trabalhe rápido. Tem que demarcar mesmo essa terra. Porque a gente esperou muitos anos", argumenta. "À toa, a gente não está aqui, não. Nós queremos o que é nosso. Nossas avós, nossas bisavós foram expulsas daqui", destaca o Guarani Kaiowá: "E agora nós resolvemos: vamos querer nossas terras. Tem que demarcar. Antes que seja tarde". 

*Nomes alterados para a preservação das fontes. 

Edição: Martina Medina