Priscila Novaes: "Cozinhando no candomblé recuperei minha ancestralidade"

Pesquisadora e produtora cultural descobriu que na religião de matriz africana, cozinheiras são guardiãs do saber

Artes: Karina Ramos

Reportagem: Juliana Gonçalves

Conta a mitologia dos orixás que apenas Oxum sabia preparar o acarajé, um dos pratos preferidos de Xângo. Na língua iorubá, "àkàrà" significa "bola de fogo" e "je" é o verbo comer. Pelas mãos de Oxum, o rei do fogo se alimentava.

A presença da comida na mitologia dos orixás é vasta. No culto aos deuses africanos, o alimento se configura como a principal ligação entre o mundo material, o ayê, e o mundo espiritual, o órun.

Filha de Oxum, Priscila Novaes, 33 anos, herdou de sua ancestralidade africana o gosto por cozinhar: "Sempre gostei muito de cozinhar e decidi tentar trabalhar com isso", conta.

Priscila montou uma barraca de café da manhã na estação Guaianases da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) , região extremo leste da cidade de São Paulo, e começou a oferecer seus quitutes. "Aos poucos percebi que aquilo não me representava e fui pesquisar a história dos alimentos que sempre tive em casa, como o frango ao molho pardo, o acarajé, ou seja, a cozinha afro", lembra.

Ancestralidade

A busca por suas raízes levou Priscila a conhecer o terreiro de candomblé Ilê Asé Obá Oshe Boiadeiro Sete Montanha e Bara Toco Preto. "Aqui recuperei minha ancestralidade e conheci a cozinha ritualística do candomblé", conta Priscila que também é produtora cultural e membro do coletivo Mulheres de Ori.

"Hoje sou Dafona de Oxum, sou Iaô iniciada nessa casa que é um candomblé de nação efon", se apresenta, com palavras pouco comuns para os não iniciados nos cultos afro. Ao nascer no candomblé, além de pai e mãe, você herda uma família. Dafona é a pessoa que foi iniciada primeiro ou sozinha no dia de seu nascimento. Iaô é nome que se leva assim que se inicia e nasce para os orixás.

Foi ali, no espaço sagrado, que Priscila percebeu o valor das mulheres que cozinham. "Percebi que a mulher que cozinha numa casa de axé tem um significado muito importante, todo o axé vem da cozinha", afirma.

A sociedade eurocêntrica relega às cozinheiras um lugar de menor valor. "Somos escondidas, colocadas nos bastidores, nos fundos da casa. Porém, no candomblé é diferente, as cozinheiras são fundamentais para a manutenção do axé", ressalta.

Da oralidade à escrita

O saber ancestral que Priscila vivência há mais de um ano dentro do terreiro é passado pela fala. "Numa casa de candomblé você aprende ouvindo, observando como as pessoas se portam, como tal alimento é preparado, o que é dito e em qual momento", observa.

Transpor esse saber para a materialização da escrita foi um exercício que Priscila aprendeu a fazer. "Queria dar visibilidade para a cultura alimentar negra, os hábitos de consumo, o fato de comerem com as mãos, o que significa partilhar o momento da alimentação, o que pode se comer", exemplifica. "Há ainda muitas particularidades desconhecidas", comenta ao apontar que enquanto a gastronomia ocidental foi amplamente difundida e estudada, os saberes africanos estão ainda muito restritos.

"Ao mesmo tempo, essa mulher cozinheira foi a grande responsável pela manutenção e transmissão desse saber que vem desde África", considera.

O livro Ajeum - O Sabor das Deusas, nasce para Priscila como uma tarefa para dar continuidade a sua pesquisa.

Santo também come

"Ajeum" significa comer junto. É o momento sagrado que se faz no coletivo, onde juntos uma comunidade alimenta o corpo e o espírito. É o que explica Priscila enquanto inicia o preparo do acaçá branco, feito de milho branco que é servido enrolado numa folha de bananeira.

"Esse alimento é essencial para uma casa de axé, é uma das comidas de Oxalá , então está presente em tudo. Outra comida importante é o feijão fradinho. Com ele você faz alimento para vários orixás, como o omolocum de Oxum, o abará de Obá e o acarajé de Iansã", explica.

O livro publicado neste ano pela Editora Ciclo Contínuo reúne sete textos sobre a relação das mulheres negras com a comida, com o sagrado e com as esferas políticas. Entre as autoras estão Adriana Rodrigues, Sueli Carneiro, Tais Teles e a própria Priscila. Os textos falam do poder feminino dos orixás, do processo que rendeu o registro do Ofício das baianas de acarajé pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), das especificidades da nação efon e sobre a auto-organização feminina em torno da venda de alimentos.

Rotas de resistência

Nos textos assinados por Priscila, ela ressalta como as quituteiras de rua, chamadas de herdeiras do ganho cumpriram papel na luta pela libertação dos negros no período da escravidão. Uma das mulheres citadas no texto é Luiza Mahin.

Nascida no início do século XIX, Mahin ganhava a vida vendendo comida nos tabuleiros de rua e com isso conseguia mover uma ampla rede de comunicação em prol dos homens e mulheres escravizados que queriam fugir do açoite, saber a localização dos quilombos e dos pontos que deveriam evitar nas rotas para não serem pegos.

O artigo "Herdeiras do ganho" fala como as memórias de luta e resistência foram preservadas na passagem transatlântica por meio dessas mulheres que cozinhavam e vendiam seus alimentos. "Essas mulheres foram muito importantes nas esferas políticos e sociais e mais tarde fundaram as primeiras casas de axé que até hoje são verdadeiros quilombos", finaliza Priscila.

Edição: Vanessa Martina Silva

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