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Não é possível falar de racismo sem pensar nos impactos da crise climática, defende Anielle Franco

Convidada do BdF Entrevista, ministra da Igualdade Racial falou ainda sobre o legado de Marielle e violência policial

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Anielle Franco assumiu o comando do Ministério da Igualdade Racial em 2023 - Marcello Camargo/Agência Brasil
A primeira pessoa que fica sem acesso à moradia e território é a pessoa de favela.

Chuvas torrenciais, enchentes, alagamentos e onda de calor são alguns dos eventos climáticos extremos enfrentados por moradores de cidades brasileiras com maior intensidade nestes meses de verão. No entanto, esses eventos, que têm se intensificado cada vez mais com o avanço da crise climática, não atingem todas as pessoas da mesma forma. As populações mais vulneráveis estão nas periferias, como o Jardim Pantanal, em São Paulo (SP), que ficou dias com as ruas alagadas. Tudo isso tem a ver com racismo ambiental, termo frequentemente utilizado pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, para descrever as injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis.

"A primeira pessoa que fica sem acesso à moradia e território é a pessoa de favela, por não ter tido acesso na sua casa a condições básicas. Então, é pensar como a gente pode auxiliar os quilombos, como a gente pode auxiliar as terras indígenas, como a gente faz para contribuir para preservar o nosso planeta", ressalta a ministra, que é a convidada desta semana no BdF Entrevista. Na conversa, ela fala ainda sobre o legado de Marielle Franco, a Política Nacional para Comunidades Tradicionais de Terreiro e violência policial.

Quando levantou o tema do racismo ambiental, após enchentes que atingiram o Rio de Janeiro, em 2024, Anielle Franco foi criticada por acadêmicos, que desconheciam a expressão. Franco ressalta que o termo já era utilizado exaustivamente entre lideranças negras como a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede), e a vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez.

"Estamos a poucos meses de uma COP30, em Belém, e passamos recentemente por essa enchente gigantesca no Rio Grande do Sul. Tem muita gente que nem sabia que tinha terreiro no Rio Grande do Sul. [Precisamos] pensar como a gente pode auxiliar os quilombos, como a gente pode auxiliar as terras indígenas, como a gente faz para contribuir para preservar o nosso planeta", completa a ministra.

A ministra comentou também o aumento da violência policial em todo o país, especialmente em São Paulo, onde o número de homicídios passou de 460 em 2023, para 760 mortes no ano passado. O governo federal tentou intervir na situação, com propostas de uso proporcional da força pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, mas esbarrou na recusa de governadores ligados à direita.

"A gente tem instrumentos políticos, legais e, sem dúvida nenhuma, dados que comprovam a importância de a gente barrar esse genocídio", comenta Franco. "Uma das medidas do Juventude Negra Viva é sobre as câmeras nos uniformes dos policiais. E você traz na sua pergunta que, muitas vezes, tem estados e municípios que são contrários, mas isso já é uma medida legal, isso deveria ser cada vez mais respeitado. E quando a gente faz esse apelo de falar 'parem de nos matar', 'parem de matar os jovens desse país', não é porque a gente quer defender x, a ou b, não é isso. A gente está falando de vida, a gente está falando de jovens que, infelizmente, têm seu corpo atacado, baleado, indo para a escola", diz a ministra.

No vídeo acima, acompanhe a entrevista na íntegra. Abaixo, confira alguns trechos da entrevista:

Brasil de Fato: Queria começar o nosso papo falando sobre o decreto que institui a Política Nacional para Comunidades Tradicionais de Terreiro e de Matriz Africana. O teu ministério vai ser o responsável por implementar essa política, que foi publicada no final de novembro do ano passado. A ideia é valorizar a cultura e a memória dessa população tão importante. Como é que está essa implementação, ministra?

Anielle Franco: O presidente Lula tem falado muito sobre esse ano ser de colheita. Então, foi um trabalho muito árduo, que começou em 2023 e 2024, no trabalho de reconstrução, de atualização, de aprimoramento. Eu tenho dito que toda e qualquer política pública que tenha que ser lançada e atualizada precisa ser feita com muita responsabilidade.

E responsabilidade se faz lidando com essas pessoas que estão ali diretamente no enfrentamento, e não pode ser diferente em nenhum âmbito, nem na saúde, educação, muito menos quando a gente fala da questão da religião, porque a gente tem visto esse aumento de falta de empatia, de respeito, contra pessoas que cultuam diferentes fés em relação à matriz africana. E, não à toa, o nosso ministério tem uma secretaria voltada para quilombos, e dentro da Secretaria tem também uma diretoria que é totalmente especializada e focada em povos de terreiro.

Sobre o decreto, primeiro que eu não consigo também não me emocionar, porque foi uma construção a várias mãos. Nós rodamos o Brasil para ouvir líderes religiosos e religiosas, para entender o que eles mais precisavam, para acolher as demandas. Nós tivemos casos muito emblemáticos, como o de uma criança que teve um fio de conta arrancado dentro de uma escola e ficou com um trauma depois de não conseguir ir para a escola. E a coordenação e direção da escola simplesmente alegaram que não podiam fazer nada. E tantos outros jovens usavam escapulários, ou outras coisas que simbolizam o que você acredita.

Então, esse decreto assinado pelo presidente Lula em novembro do ano passado, eu diria que é um compromisso nesse processo de construção para que essas pessoas sejam respeitadas. Eu entendo que é um caminho, um passo que foi dado, mas é também uma marca de legado. A gente assinou e teve o lançamento no Rio de Janeiro, na casa da Mãe Beata, que foi uma coisa linda, com pessoas que me abraçavam chorando, dizendo estarem emocionadas porque há 20 anos sonhavam com esse decreto assinado.

É um decreto que vem para reconhecer, para valorizar, para proteger, os saberes e fazeres da comunidade, para resguardar esse patrimônio material e imaterial. Na pandemia, eu estava grávida da minha segunda filha e eu me lembro perfeitamente que eram as igrejas e os terreiros que muitas vezes distribuíam cesta básica, material de higiene. E eu estava ali, mesmo com a minha filha na barriga, fazendo esse papel também, indo de um lugar pro outro, auxiliando nas favelas cariocas, onde eu nasci e cresci.

O Rio Grande do Sul é um dos locais com maior quantidade de praticantes de religiões de matriz africana. Há diversos quilombos na região e muitos deles se tornaram terreiros. Aproveitando esse gancho para falar que foi também no Rio Grande do Sul, local das enchentes do ano passado, que ficou muito evidente o racismo ambiental, como os maiores prejudicados pelas chuvas foram as populações negras do estado. É impossível falar sobre mudanças do clima e não falar sobre racismo ambiental, não é, ministra? Lembro que quando a senhora falou essa frase houve uma grande celeuma, debates acadêmicos...

É, eu sempre digo isso, tem muita gente que não aceita ver qualquer mulher negra sendo dona de conhecimento. Eu vou até generalizar mais: qualquer mulher que chegue nessa posição, muitas vezes será atacada, e todos os dias a gente vai ter que demonstrar que a gente é capaz, que a gente sabe do que está falando. Não só quando eu falei do racismo ambiental, mas quando eu falei do racismo linguístico. Tenho doutorado em linguística aplicada, sou estudiosa de linguística desde 2012 e tenho muito orgulho de falar sobre isso.

E o racismo ambiental não foi a Anielle que trouxe, pelo contrário, esse tema já leva anos e anos. Quando a gente vê uma unanimidade como a Marina Silva, que já falava disso, outros intelectuais da questão ambiental dos Estados Unidos, Colômbia. A própria Francia Marquez, a gente não precisa ir muito longe.

Acho que o racismo ambiental é, sem dúvida nenhuma, um tema da modernidade. A gente não consegue falar de nenhum tipo de racismo, de desigualdade, de gênero, de território, se a gente não pensar nesses impactos da crise climática. É por isso que eu trabalho tão perto da Sônia [Guajajara (Psol), ministra dos Povos Indígenas] e da Marina e tenho muito orgulho de dizer que são elas que estão ali.

Estamos a poucos meses de uma COP30, em Belém, e passamos recentemente por essa enchente gigantesca no Rio Grande do Sul. Como você mesmo trouxe, tem muita gente que nem sabia que tinha terreiro no Rio Grande do Sul, mas a primeira pessoa que fica sem acesso à moradia e território é a pessoa de favela, por não ter tido acesso na sua casa a condições básicas. Então, é pensar como a gente pode auxiliar os quilombos, como a gente pode auxiliar as terras indígenas, como a gente faz para contribuir para preservar o nosso planeta.

E, por outro lado, ao mesmo tempo que a gente tem um governo federal com Marina e Sônia, guiadas pelo presidente Lula, a gente tem agora um retrocesso em outros países, dizendo que isso não existe. Tanto quilombolas quanto indígenas são agentes de conservação natural para o nosso planeta, para a nossa terra, nosso território, para o nosso mundo. É imprescindível que a gente se articule enquanto governo federal e mobilize a sociedade para entender, de uma vez por todas, que a gente tem que cuidar dos terreiros, dos povos indígenas, dos quilombos e cuidar para que todos nós possamos estar vivos.

A violência policial disparou nos últimos dois anos, principalmente em 2024, e o principal alvo são os jovens negros. Houve tentativas, principalmente do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para dar limites à atuação policial, mas muitos governadores se opuseram a essa ideia. A gente tem instrumentos legais para barrar esse genocídio?

Olha, eu diria que a gente tem instrumentos políticos, legais e, sem dúvida nenhuma, dados que comprovam a importância de a gente barrar esse genocídio. Eu sempre gosto de misturar o conhecimento e a expertise atual com o que eu vivi na minha própria vida. Eu me lembro perfeitamente de acordar na [Favela da] Maré e muitas vezes, infelizmente, ter que pular corpo morto para poder ir para a escola. Ou para ver meus pais irem trabalhar e eu ia acompanhando.

E isso não tem mudado nos últimos anos. Não à toa, quando a gente fala de um jovem negro sendo assassinado ou violentado a cada 23 e 25 minutos, não é a Anielle que fala isso, é o Fórum de Segurança Pública que traz esses dados à tona, é o aplicativo do Fogo Cruzado e vários outros, isso não é normal. Nós tivemos uma reunião muito específica para falar sobre isso e é quando a gente recria – atualiza, na verdade – o Juventude Negra Viva, que era Juventude Viva.

Enquanto moradora de favela que fui, até meus quase 20 anos, eu sempre pensava que não era possível que ninguém nunca entendesse que não é somente diminuir a letalidade, não é somente fazer com que [a polícia] não entre em determinados horários. É fazer com que as pessoas entendam que tem muitas pessoas trabalhadoras, honestas, que saem para trabalhar todos os dias, que sustentam esse país.

Mas não é só isso. É também levar acesso para o que as pessoas precisam, levar educação, ter uma escola de tempo integral, como o presidente Lula recriou, é imprescindível. Ter um Pé de Meia, outro para licenciatura, isso é primordial. Pensar também como a gente vai conseguir trazer alimentação, empregabilidade, enfim.

Uma das medidas do Juventude Negra Viva é sobre as câmeras nos uniformes dos policiais. E você traz na sua pergunta que, muitas vezes, tem estados e municípios que são contrários, mas isso já é uma medida legal, isso deveria ser cada vez mais respeitado. E quando a gente faz esse apelo de falar "parem de nos matar", "parem de matar os jovens desse país", não é porque a gente quer defender x, a ou b, não é isso. A gente está falando de vida, a gente está falando de jovens que, infelizmente, têm seu corpo atacado, baleado, indo para escola.

Ministra, aumentaram significativamente as denúncias e processos de racismo, injúria e intolerância racial em 2024. São mais de 4.200 registros. Você acha que as pessoas se deram conta de que não é mais possível tolerar esse tipo de crime e estão denunciando mais, ou é um aumento, de fato, nos casos de racismo? O que esses números nos mostram?

Acho que é um pouco de cada. A gente sabe que a nossa sociedade, há séculos, vem lutando para sobreviver a esses casos de racismo, dos mais diversos que acontecem, mas a gente também sabe que agora, como tudo é muito rápido na internet, tem uma geração que está ali não para salvar ninguém, mas tipo "estou vendo uma coisa errada, quero ser o primeiro a falar, quero ser a primeira pessoa a postar".

Óbvio que ter uma lei assinada pelo presidente, que demonstra o que é injúria racial é crime – que, inclusive, nós assinamos no dia da minha posse com a ministra Sônia Guajajara, e que eu nunca vou esquecer – é importante. Mas eu sempre digo que isso não deveria ser a regra e sim ser a exceção. Eu sei que muitas vezes as pessoas olham e falam: "Aí, não aguento mais esse mimimi de falar que tudo é racismo". Mas é importante a gente trazer que o número de intolerância religiosa, racismo nas escolas, racismo no trabalho, racismo no esporte, não pode ser naturalizado.

Mesmo que a gente tenha agora mais acesso, ou dê mais visibilidade, tem que funcionar. Tem que fazer com que as pessoas tenham vergonha de serem racistas nesse país. Tem que fazer com que as pessoas não achem que é ok, como já aconteceu comigo, por exemplo, de sentar numa sala e ter várias pessoas do governo federal e a pessoa que entra dizer assim: "você pode pegar água pra mim, por favor?". Ou, "todos os ministros chegaram, você pode confirmar pra mim, por favor?". E ainda acontece de entrar em algum lugar e falarem: "não, a gente tá esperando a ministra". E ter que ter um outro ministro homem branco pra falar: "ela é a ministra".

Não é normal esse tipo de situação, que toda vez que eu falo, me embrulha um pouco o estômago. Eu penso mesmo nas minhas filhas, eu penso nas futuras gerações, porque hoje a gente está aqui tendo conhecimento de que injúria racial é crime, vamos lutar contra isso, vamos criar, cada vez mais, educação antirracista, vamos escrever, vamos fazer doutorado, mas tem um outro lado que está remando contra a maré, dizendo: "pra quê isso, isso é besteira".

Eu diria que tem muito trabalho para ser feito, não só nesse governo, mas nos próximos também. Eu digo até que é um trabalho de formiguinha muitas vezes, porque a gente precisa repetir o óbvio. E quantas vezes aqui na nossa entrevista eu já repeti o óbvio que é: não normalize o racismo, em hipótese nenhuma. E eu vou seguir falando isso porque, enquanto a gente não tiver mulheres, homens, pessoas negras sendo livres e cada vez mais comprovando que a gente está pronta para chegar e permanecer, a gente precisa repetir o óbvio.

Sobre a denúncia de assédio contra o [ex-ministro dos Direitos Humanos] Sílvio Almeida, a senhora acompanha como anda o processo? No final do ano passado a senhora prestou depoimento à Polícia Federal…

Assim que a denúncia veio à tona, e eu acho que é sempre bom trazer esse ponto, que não foi consensual comigo e tive meu nome exposto – dentre várias vítimas, eu fui uma das únicas vítimas expostas da maneira que fui – eu me posicionei e disse que eu ia agir de acordo com as investigações.

Então, já dei meu depoimento. Eu não acompanho porque não cabe a mim, não sou eu que estou sendo acusada, então não tem necessidade de estar acompanhando. Mas fiz a minha parte e o que tinha que falar, o que tinha que fazer em relação a isso, eu fiz. Agora, procuro nem pensar mais nessa situação.

Teve também um episódio recente com o vice-presidente do PT, Washington Quaquá, que defendeu os irmãos Brazão, acusados de serem os mandantes do assassinato da Marielle [Franco] e do Anderson Gomes. A senhora o denunciou ao Conselho de Ética do partido. Como anda esse processo?

E fiz, já está lá. Fiz a denúncia e vou fazer sempre, porque não admito que ninguém abra a boca para falar da minha irmã, principalmente pessoas que não a conheceram, que não respeitam sua história, pessoas que não têm o mínimo de moral, eu diria, para falar da Marielle.

Se a Marielle estivesse aqui hoje, a gente não sabe qual cargo, onde ela estaria, mas ela era uma mulher incrível, era gigante. Infelizmente as pessoas só conheceram o legado da Mari, o tamanho da Mari, quando ela foi assassinada. Então, não vai ser fulano a ou b que vai falar da minha irmã e eu vou ficar calada, independente de onde eu esteja.

Eu falei e eu repito: as pessoas precisam lavar muito a boca para falarem da Marielle, pessoas que não a conheceram e outras pessoas que tripudiaram, usaram do seu legado, usaram da sua morte, infelizmente, para galgarem espaços, para terem lugares e serem reconhecidas.

A denúncia foi feita, agora está na Comissão de Ética do PT, e não é isso que vai parar ou fazer com que a gente diminua o legado dela, pelo contrário. Tem muito legado que não é só da Marielle, que é de muita gente, mas enquanto irmã e familiar legítima, eu vou sempre defender e vou sempre dizer que as pessoas precisam respeitar sim. Por mais que gostem ou não, vou seguir falando.

 

Edição: Nicolau Soares