Com olhar de quem vive o cotidiano que retrata, o fotógrafo Bruno Itan, do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, mostra que a realidade das favelas cariocas vai muito além da mira do fuzil das operações policiais. Em meio ao julgamento da ADPF das Favelas, ele afirma que o enfrentamento só leva ao terror.
“A gente como morador fica desacreditado vendo essas operações que não resolvem nada. Esse enxuga gelo é necessário para quem? Para continuar com aquele terror de sempre que os moradores passam em cada operação”, disse.
Nos dias em que não há troca de tiros, nem vítimas de bala perdida, ele se dedica a capturar a beleza do morro, o colorido das paisagens, a brincadeira das crianças, o sobe e desce de moradores. Mostrar a potência das favelas é o propósito do seu trabalho há mais de 15 anos.
“Muita gente, inclusive quem mora na favela, não vê a beleza daqui. Eu tento retratar e mostrar essa beleza que existe, porque se não formos nós daqui de dentro mostrar, não vai ser ninguém de fora”, comenta Bruno.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que o olhar do morador e do fotógrafo coexistem. Embora seu trabalho priorize o lado positivo da favela, Bruno também mostra o outro lado: a presença das forças policiais e o que sobra quando o tiroteio acaba.
“Acho que as estratégias de segurança pública do Rio estão mais ineficazes e truculentas. O poderio armado de um lado e do outro está cada vez maior. E quem sente o peso da ponta do fuzil são sempre os moradores de favelas”, disse.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Seu trabalho tem a perspectiva única de quem vive a realidade que retrata. Como é documentar o cotidiano com o olhar que busca a beleza, as cores, os afetos, e não apenas a tragédia nas favelas?
Bruno Itan: Meu trabalho é focado em mostrar sempre o lado bom e positivo da favela. Mostrar a alegria, o potencial, a cultura, o lazer e as coisas boas e positivas que tem aqui dentro. Acho que se não formos nós daqui de dentro mostrar, não vai ser ninguém de fora.
Muitas das vezes os jornalistas e os fotógrafos que vem registrar coisas dentro da favela, vem para vender jornais, para criar uma narrativa crítica, mas nunca para mostrar a potência que existe aqui.
Então uso a fotografia, o meu olhar, para mostrar a beleza, os cenários incríveis, que eu acho bonito. Muita gente, inclusive quem mora na favela, não vê a beleza daqui. Eu tento retratar e mostrar essa beleza que existe, porque se não formos nós daqui de dentro mostrar, não vai ser ninguém de fora.
Os registros também escancaram o fracasso da política de segurança pública no Rio. Como você lida com esse cotidiano sendo morador?
Eu tenho o olhar do morador e o olhar do fotógrafo. Acho que as estratégias de segurança pública do Rio estão mais ineficazes e truculentas. O poderio armado de um lado e do outro está cada vez maior. E quem sente o peso da ponta do fuzil são sempre os moradores de favelas.
É hora da gente dar um olhar diferente para esses locais. A gente também precisa de moradia, saneamento básico, saúde, projetos de esporte, cultura, lazer. Quanto mais a favela tiver em paz, mais chance que tem daquele local se potencializar.
A política de segurança pública que existe há décadas sempre viu a favela através da mira do fuzil. Só o enfrentamento a gente já viu que não funciona.
A gente como morador fica desacreditado vendo essas operações que não resolvem nada. Esse enxuga gelo é necessário para quem? Para continuar com aquele terror de sempre que os moradores passam em cada operação
Sente que há um peso em retratar essa dor que muitas vezes é silenciada?
Quando eu vou fotografar operações policiais sei que é um trabalho muito perigoso, mas também é muito necessário. É difícil retratar essa realidade e tem um peso enorme.
Já tive trabalhos meus apagados, já sofri com truculência de policiais por eu não ser alguém da grande mídia. Mas isso nunca me impediu de fazer meu trabalho porque a população se vê retratada nas minhas imagens.
Então, acho que temos que continuar. Apesar de que às vezes esse peso emocional bate, sim, e não só em mim como na vida de muitos moradores que passam por essa situação.
Como enxerga o papel da fotografia na disputa de narrativas sobre as periferias?
Com esse trabalho a gente mostra a realidade com olhar de quem vive aqui dentro, de quem passa pelas truculências dessas operações policiais. Se a gente não mostrar outra narrativa, sempre vai ser a narrativa da grande mídia. E às vezes não tá acontecendo do jeito que eles mostram.
O fotógrafo e o jornalista que entram aqui para cobrir uma operação policial, ao contrário de mim, não moram aqui dentro. Eu retrato essas operações, mas não vou embora depois, continuo aqui.
Às vezes, as pessoas falam: "Bruno, você não corre risco fazendo isso?”. Realmente corro muito risco. Quando eu saio para fotografar não uso colete, capacete, nada. Faço minha oração a Jesus, peço proteção a Ele, e saio para fotografar porque sei que eu tenho que mostrar e os próprios moradores estão esperando de mim mostrar essa narrativa.
Muitas vezes as pessoas me perguntam querendo saber qual rua tá dando tiro, qual não tá, se consegue descer para trabalhar, levar o filho na escola. Mesmo durante a operação, a vida acontece. Muitos moradores se informam através da minha narrativa ao vivo na rede social.
Seu livro ‘Olhar Complexo’ (editora Senac) marcou 15 anos de trajetória no fotojornalismo. O que é esse projeto e o que gostaria de deixar como legado do seu trabalho?
“Olhar Complexo” é o nome de um projeto que eu tenho onde incentivo a cultura da fotografia nas favelas. A gente faz intercâmbio fotográfico, saídas fotográficas nas favelas com os próprios moradores, no Alemão, na Rocinha. Muita gente não tem câmera, mas usa o celular.
São moradores de várias favelas que se encontram e fazem passeios fotográficos, levantando a bandeira da fotografia dentro desses lugares, que às vezes é muito discriminada dentro da favela.
O livro para mim foi um sonho realizado. Nele eu mostro não só fotos de operações, como fotos de moradores, de pôr do sol, de raios, de chuva, de becos e vielas, tudo que existe em uma favela, eu tento mostrar através desse livro.
Imagina daqui a 50, 100 anos, as pessoas vendo as minhas fotos. Tudo vai passar, as únicas coisas que vão ficar para sempre são as fotografias. Então para mim foi a realização de um sonho, onde eu tento potencializar o lado bom e positivo das favelas.
Edição: Vivian Virissimo