CELEBRAÇÃO

ENFF: espaço de formação do MST celebra 20 anos com papel estratégico de pensar outra sociedade

Escola foi inaugurada em 2005 para ser a 'casa da classe trabalhadora brasileira latino-americana e internacional'

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mística de militantes do MST na Escola Nacional Florestan Fernandes - ©Júnior Lima/MST

Nesta quinta-feira (23), a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) completa 20 anos de história. Desde a inauguração, 70 mil pessoas participaram dos cursos e atividades oferecidas pela instituição, referência na formação política dos movimentos populares e da classe trabalhadora do Brasil e do mundo.

A escola foi construída em formato de mutirão na cidade de Guararema, a 80 km de São Paulo (SP), por mais de 1.200  militantes de 112 assentamentos e 230 acampamentos do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST).

O esforço coletivo rendeu frutos e uma linda história de resistência. Hoje, o espaço oferece cursos superiores e de especialização em convênio com 35 universidades. A escola também dispõe de um curso de mestrado e doutorado em desenvolvimento territorial na América Latina e Caribe, uma parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Integrante da direção nacional do MST e ex-coordenadora pedagógica da ENFF (2014-2024), Rosana Fernandes celebra o aniversário da “casa da classe trabalhadora brasileira latino-americana e internacional", que ela ajudou a construir, e destaca o papel da escola como espaço onde “o projeto estratégico de se pensar outra sociedade, numa perspectiva socialista, vai se conformando”. 

“É uma experiência concreta, podemos dizer assim, de possibilitar um outro jeito de enxergar a realidade, de pensar mudanças para essa realidade, ao mesmo tempo que vai transformando os sujeitos que participam, que estão presente nesse território formativo”, enaltece Fernandes.

“Espero que essa casa, que é uma casa de todos e todas, possa seguir vigorosa, seguir aprofundando e construindo o conhecimento, e relacionando com a prática de cada um e cada uma”, completa. 

O MST e a ENFF

A ENFF tem hoje o apoio de mais de 500 professores voluntários. Para o MST, o espaço é uma representação prática de como a formação político-ideológica e o processo educativo é tão importante para o movimento quanto conquistar a terra para trabalhar e produzir alimentos. 

Geraldo Gasparin atua no setor de formação política e ideológica desde sua entrada no MST, em 1998, ajudando nos processos de formação de base dos acampamentos, principalmente no Rio Grande do Sul. A partir de 2004, passou a voltar sua militância especificamente para a construção dos cursos da ENFF, que seria inaugurada no ano seguinte. 

Para a liderança histórica do setor educacional do movimento, uma organização que não preza pela formação política tem enormes dificuldades de existir e responder a seus desafios. “Não é a burguesia, não é a classe dominante dos nossos inimigos que vão preparar nossos quadros, somos nós”, explica.

“A escola é fruto, resultado do esforço do MST em projetar, planejar e construir os processos de formação. Na verdade, a formação política é um princípio do movimento. Desde os primeiros passos da nossa organização, a formação política acontecia nos nossos acampamentos e a escola surge para fortalecer essa estratégia, para construir de forma mais estrutural os nossos processos formativos, sobretudo no campo da formação de quadros”, complementa Gasparin.  

A batalha contra a extrema direita

Ao longo dos dez últimos anos, a escola teve desafios ampliados com a mudança da conjuntura política no país, principalmente a partir do golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff e a ascensão da extrema direita ao poder, com a eleição de Jair Bolsonaro. Também precisou enfrentar e ser um espaço de acolhimento e reflexão para o campo progressista em um dos períodos mais difíceis da história mundial: a pandemia da covid-19.

Mas para a ex-coordenadora pedagógica da ENFF, a lógica da formação política que a escola desenvolve  é atrelada justamente à ação prática e concreta dos militantes diante de desafios e das “mudanças da estrutura da sociedade”, como as colocadas neste período. 

“Isso vale para a nossa sociedade brasileira, mas também vale para tantas outras sociedades que têm o modo de produção capitalista como o grande idealizador dessa sociedade”, coloca Fernandes.

“Esse período, mesmo as atividades virtuais e como resultado já do processo de formação que a escola vinha desencadeando desde a sua inauguração em 2005, é que as direções das organizações populares da esquerda brasileira tiveram condições de garantir, de resistir e de manter o nível elevado no debate sobre projetos de país, projetos de sociedade”, completa. 


Em sua visita, Angela Davis plantou uma muda de ypê, simbolizando seu apoio ao MST e à Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) / Foto: José Eduardo Bernardes/Brasil de Fato

Fernandes destaca, no período, a ampliação das atividades formativas e a contribuição nas articulações internacionais do MST, com destaque para a parceria com a Assembleia Internacional dos Povos (AIP), ampliando os intercâmbios e a organização das brigadas internacionalistas do movimento. 

Foi na ENFF que aconteceu a primeira edição da Conferência Dilemas da Humanidade, realizada em agosto de 2015, reunindo lideranças de organizações populares de 32 países e a presença do geógrafo britânico David Harvey, uma das figuras mais importantes do marxismo contemporâneo. 

De visitas internacionais de renome nos últimos dez anos, a ENFF também foi agraciada com a presença do ator e ativista estadunidense Danny Glover e da professora e filósofa estadunidense Angela Davis, referencia no ativismo feminista negro e contra o sistema prisional. 

Davis participou de um encontro com organizações do movimento negro brasileiro. "O direito à vida é um direito básico, e isso deve incluir a terra", disse ela em entrevista ao Brasil de Fato durante a vista. 

Já Gasparin destaca a estratégia de “resistência ativa” da escola e o importante papel de abordar temáticas estratégicas para entender a correlação de forças no Brasil no período. 

A liderança do MST relembra como momento simbólico a inauguração do Campo Doutor Sócrates, em dezembro de 2017, um dia de festa que reuniu militantes e lideranças do movimento de todo o país e contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do cantor Chico Buarque. 

“Ao inaugurar o campo, nós fortalecemos o pensamento da luta pela democracia, um importante momento político e de homenagem a um esportista que sempre lutou pela democracia”, relembra, em referência ao célebre jogador do Corinthians, um dos principais idealizadores da Democracia Corinthiana.


Lula e Chico Buarque durante a inauguração do Campo Dr. Sócrates Brasileiro, na Escola Nacional Florestán Fernandes, em dezembro de 2017 / Foto: Paulo Pinto/Fotos Públicas

Novos espaços

O projeto da construção da escola foi elaborado em 1996 e contou com uma campanha expressiva de arrecadação de fundos para sua execução. O processo também envolveu comitês internacionais, sindicatos e organizações populares de toda a América Latina.

Mas a maior parte dos recursos vieram das vendas do livro Terra, uma coleção com imagens de Sebastião Salgado, texto do escritor português José Saramago e músicas de Chico Buarque. Todos doaram os direitos autorais ao movimento. "Esse foi um pequeno grãozinho que ajudou a criar a escola", celebrou Buarque durante sua passagem pela ENFF, em 2017.

Com a verba arrecadada, a construção coletiva da estrutura física da escola iniciou em 2000 e durou cerca de 3 anos. “Foi um longo processo de trabalho voluntário. Mas também se destaca a técnica com que foi utilizada aqui na escola, de solo cimento. É uma técnica que não agride o meio ambiente”, relembra Geraldo Gasparin.

Hoje, a ENFF conta com auditório, anfiteatros, uma biblioteca com cerca de 44 mil títulos, espaço de leitura, a Casa de Artes Frida Kahlo, e uma ilha de edição onde funciona a rádio da ENFF. Também há quatro blocos de alojamentos, refeitório, lavanderia, uma estação de tratamento de esgotos própria e uma horta que produz para o consumo local.


A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, referência internacional de espaço de formação política / Arquivo e Memória MST

“Os espaços construídos, os espaços pedagógicos que nós denominamos, todos tem uma mística. A homenagem ao professor Florestan Fernandes, ele é uma grande referência, mas a Escola Nacional Florestan Fernandes tem dentro dela muitas outras homenagens através da nomeação dos espaços. Patativa do Assaré, Rosa Luxemburgo, Antônio Cândido”, enumera Rosana Fernandes. 

O espaço “Germinal” foi um dos últimos espaços criado na ENFF. Inaugurado em maio de 2022, o lugar é um convite às pessoas para prestarem homenagem a importantes apoiadores que contribuíram com o MST durante suas vidas. Por lá, estão depositadas as cinzas de dezenas de companheiros e companheiras da luta pela terra. 

A exposição de pedras históricas também compõe o ambiente sagrado do novo espaço da ENFF e reverencia a memória e conjunto de lutas populares no país. As pedras vieram de cada estado de onde o MST está organizado. 

“As pessoas, enquanto elas estão em vida, elas ajudam a germinar, a construir ou fortalecer outras pessoas. Então, todos os educadores que estão aqui ajudaram a germinar muitas outras pessoas, muitas outras vidas”, explica ao Brasil de Fato a educadora popular Vanessa Ribeiro de Souza. 

Souza é filha de assentados de Rio Bonito do Iguaçu, no Paraná, e já nasceu dentro do movimento. Hoje atuando na biblioteca da ENFF, ela mora na escola desde 2018, enquanto ainda cursava a graduação em pedagogia pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). 

"Não é uma sociedade perfeita, porque acho que isso nunca vai existir. Sempre vai ter contradições, como todos os outros espaços. Mas viver na escola é um pouco do espelho da sociedade que a gente quer construir", revela.

Calendário 2025

Em 2025, a 10ª Turma do Curso Nacional de Pedagogia do Movimento inaugura o calendário de processos formativos da ENFF. O curso tem parceria com a Universidade Federal Fronteira Sul (UFFS) e apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e Programa de Apoio a Eventos no País para a Educação Básica (Capes PAEP-EB). 

Composta por 110 educadoras, educadores, gestoras e gestores da educação básica do campo e militância do campo e da cidade, vindos de 18 estados, a turma tem a representação das cinco regiões do Brasil, constituindo-se um espaço educativo rico e diverso.

Valter de Jesus Leite, coordenador do setor de educação do MST, destaca o simbolismo da realização da décima edição do curso na ENFF, no contexto de celebração dos 20 anos do espaço. A primeira edição do curso ocorreu em Veranópolis (RS), no Instituto de Educação Josué de Castro, outro ambiente de formação de quadros e de escolarização da juventude e dos adultos sem terra.

“É muito simbólico, porque nós encaramos a formação política como desafio permanente e o curso nacional de pedagogia do movimento tem o propósito de ir constituindo um segundo círculo de educadores militantes que atuam nas áreas de reforma agrária, com a educação infantil, nas nossas cirandas, nas escolas de educação básica, de jovens e adultos. Então, esse curso, ao longo desses 13 anos de existência, ele vem projetando, formando esses educadores que conduzem a práxis educativa do MST nas áreas de reforma agrária”, explica. 

Leite foi indicado pelo MST para cursar sociologia rural na ENFF em 2005, após dois anos acampado na região de Cascavel (PR). Foi a partir desta vivência na escola que ele começou a entender os desafios políticos e organizativos que o movimento enfrenta, sobretudo, no tema da educação. 

“A ENFF seguirá prosperando, desenvolvendo seu papel político, formativo, organizativo, pedagógico, desde a pedagogia do movimento, permanentemente. Nesse contexto de celebração dos seus 20 anos, sem dúvida ela vai reafirmando suas raízes, a sua origem estratégica vinculada à luta pela reforma agrária popular, a sua origem estratégica de seguir rompendo as cercas, do latifúndio do saber combinado ao rompimento das cercas do latifúndio da terra”, finaliza.

Edição: Martina Medina