Depois de ser alvo de uma operação da Polícia Civil que em outubro de 2024 matou dois sem-terra, o acampamento de trabalhadores rurais sobreposto à Fazenda Mutamba, em Marabá (PA), agora está na iminência de sofrer um despejo.
A defesa das 115 famílias das associações rurais Terra Prometida e Agricultores do Balão entrou com três recursos de apelação, que ainda não foram julgados. O juiz da Vara Agrária da 3ª Região de Marabá, Amarildo José Mazutti, determinou, no entanto, que se faça o cumprimento provisório de sentença. Ou seja, que se execute a reintegração de posse pedida pela pecuarista Maria de Nazaré Monteiro Mutran mesmo antes de julgados os recursos.
"Já tem guarda armado andando em volta da fazenda. Fica aquele suspense, aquele medo", relata Rose*, uma das acampadas. "Fora que ficou acordado que, onde tem plantação nossa, os fazendeiros não iam botar gado. Mas a gente fecha ao redor, eles vão lá e abrem. O meu mesmo, tinha pé de couve, de acerola. A gente planta as coisas, o gado vai lá e come. É uma angústia que gente está passando", diz.
"Algumas pessoas foram embora depois do ataque, com medo. Mas ainda tem muita gente aqui", afirma Rose. Ela se refere ao trauma do dia 11 de outubro do ano passado. Por volta das 4h daquela sexta-feira, dezenas de policiais civis da Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá acompanhados de dois helicópteros entraram no acampamento, assassinaram dois homens e prenderam outros quatro - segundo os acampados, depois de serem torturados por horas.
A versão da Secretaria de Segurança Pública do governo paraense de Helder Barbalho (MDB), pertencente ao mesmo partido que membros da família Mutran, é de que houve troca de tiros. Os acampados, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Instituto José Cláudio e Maria (IZM) e outras entidades afirmam que os sem-terra foram executados. Um deles na rede, enquanto dormia.
Comandada pelo delegado Antônio Mororó, a operação policial "Fortis Status" (Estado forte, em latim) deixou feridos com tiros na mão, na perna e com a costela quebrada. Menos de quatro meses depois, a comunidade recebeu a visita de um oficial de justiça, que lhes informou ter 15 dias para a saída voluntária da área.
No fim de janeiro o prazo expira e, caso as famílias permaneçam - como pretendem fazer -, a Justiça marcará uma audiência para comunicar a data da remoção forçada.
Há duas alternativas para que a área de 12.229 hectares da Fazenda Mutamba seja destinada às famílias sem-terra que a ocupam: que o imóvel seja desapropriado por interesse social ou adquirido por meio de compra pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Esta segunda opção, no entanto, depende da concordância da família Mutran com a venda, o que até o momento não ocorreu.
Procurado, o Incra informou que enviou um ofício ao espólio de Aziz Mutran Neto manifestando interesse no Complexo Mutamba e questionando se há oferta de venda "deste imóvel rural, na sua totalidade ou em parte".
Já sobre a possibilidade da "aquisição através da desapropriação por interesse social (desapropriação comum) nos termos da Lei 4.132/1962, conforme estabelecido no Decreto nº 11.995/2024 (Terra da Gente), está sendo realizada consulta à Procuradoria Federal Especializada - PFE, quanto a possibilidade de enquadramento", afirmou a autarquia.
Terras públicas
"Os Mutran foram beneficiados com milhares de hectares de áreas de castanhais nessa região, mas suas fazendas foram quase todos ocupadas nas décadas de 1980, 1990, 2000. Essa é a última das fazendas dos Mutran na região de Marabá", contextualiza José Batista, advogado da CPT no sudeste do Pará.
Antes de virar pastagem para gado, a região era de floresta e castanhais. "Eram terras públicas do estado do Pará, que nas décadas de 1950 e 1960 foram cedidas na forma de contrato de aforamento para os fazendeiros da região, com a condição de que explorariam a castanha do Pará e preservariam a floresta", conta Batista.
Com o golpe empresarial-militar de 1964, houve uma corrida para transformar a região em área de pecuária extensiva. "A economia deixou de ser da castanha do Pará e passou a ser do capim, do boi gordo. Todas essas áreas de castanhas foram derrubadas da floresta. Então houve uma quebra de contrato. A propriedade continuava sendo do estado do Pará, o fazendeiro tinha a posse condicionada pela preservação", argumenta o advogado da CPT.
"Os fazendeiros desmataram, destruíram. O Estado sempre fez vista grossa, não levou em consideração esse aspecto da quebra de contrato e regularizou essas terras em nome dos fazendeiros. Juridicamente falando, toda a área seria pública", observa Batista.
Em 2002 a Fazenda Mutamba foi flagrada submetendo 25 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Dois anos depois, a empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda entrou na "lista suja" do trabalho escravo e teve de pagar uma multa de R$ 1,3 milhão ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
Atualmente há três ocupações de famílias sem-terra no território em disputa. A primeira delas se constituiu em julho de 2017 e a mais recente, há cerca de dois anos. Esta última, localizada a cerca de 500 metros da sede da propriedade dos Mutran, foi alvo da operação da Polícia Civil.
"É um latifúndio ilhado entre assentamentos da reforma agrária", define Batista, citando comunidades do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Federação dos Trabalhadores Rurais de Agricultores e Agricultoras Familiares já consolidados na região. "Os Mutran resistem em não querer negociar e as famílias mantêm a pressão para que concordem com a venda da área ao Incra", resume.
*Nome alterado para preservar a segurança da fonte
Edição: Nicolau Soares