As atletas precisavam comprovar sua 'condição feminina' para competir em alto nível
Por Bárbara Gomes Pires*
Desde o início do século XX, o mundo esportivo foi palco de tensões sociais, culturais e políticas refletidas em suas competições e regulações. Na empreitada olímpica de competir virtuosamente entre nações, pela supremacia atlética, fomentou-se ansiedades em torno dos limites dos corpos e desempenhos esportivos. O conflito humanista e nacionalista desse período também se traduzia em controles regulatórios, especialmente com a inserção tutelada, mas cada vez mais presente, da categoria feminina em eventos internacionais.
Além do trabalho fundamental de Alice Milliat em costurar a entrada de novas modalidades para as mulheres competirem nos Jogos Olímpicos, outro momento crucial para entendermos essa necessidade de controle da feminilidade no esporte se apresentou durante o período entreguerras, culminando nos Jogos de Berlim, em 1936. Essa Olimpíada ilustrou as diferentes tensões sociais e políticas dos conflitos geopolíticos da época, entre as controvérsias esportivas, podemos remorar dois episódios, com as corredoras Helen Stephens e Stella Walsh e a competidora do salto em altura Dora Ratjen.
Nesses Jogos, a estadunidense Helen Stephens ganha a prova dos 100 metros femininos, mas sua vitória foi rapidamente contestada por um jornalista polonês que cobria o evento, acusando Stephens de não ser verdadeiramente mulher. Na época, havia um pânico muito disseminado pelo meio jornalístico que atletas homens se infiltravam na categoria feminina para fraudar e auxiliar seus países a serem vitoriosos nas competições. Com essa ansiedade geopolítica, Stephens foi uma das primeiras atletas a ser submetida a investigações físicas minuciosas para comprovar sua feminilidade. Esse episódio pode ser considerado o primeiro “teste sexual” amplamente divulgado do movimento olímpico moderno. A polonesa Stanisława Walasiewicz, também competidora da prova, enfrentou as mesmas críticas públicas por ter uma aparência considerada “pouco feminina”.
Essa obsessão com a conformidade dos corpos femininos aos padrões tradicionais de feminilidade e de heterossexualidade compulsória era refletida nas inspeções visuais rotineiras impostas a atletas como Stephens e Walasiewicz. Em casos semelhantes, outras esportistas passaram por dramas similares, como a alemã Dora Ratjen que vivenciou um escrutínio público nos mesmos Jogos Olímpicos devido às percepções sociais sobre seu corpo ser considerado ambíguo e fora dos padrões femininos aceitáveis para a época.
Atleta de salto em altura, Ratjen fica com o quarto lugar na final de sua modalidade. Logo após o evento, também acusam a atleta de ser um homem fraudando a participação na categoria feminina. Concluídas as investigações, nada foi descoberto naquele momento, mas anos depois, em 1938, Ratjen é presa em uma viagem de trem por oficiais nazistas, acusando-a novamente de não ser uma mulher. Com novos testes, identificam que ela seria uma pessoa intersexo, sendo criada como menina. Eventualmente Ratjen modifica seu nome para Heinrich, afastando-se de vez das competições esportivas. Esse episódio foi o primeiro caso documentado de uma atleta intersexo testada em competições de alto rendimento. Ratjen perde seus recordes e medalhas na categoria feminina, mas ganha novos documentos, assumindo uma identidade masculina pelo resto da vida.
Décadas depois, quando Walasiewicz – já conhecida como Stella Walsh, porque vivia radicada nos Estados Unidos desde o meio da Segunda Guerra – falece aos 69 anos, sua autópsia revela que ela, na verdade, também era uma pessoa intersexo. Ao longo do tempo, conseguimos recuperar e ilustrar muitos casos similares. Situações como de Stephens, Walsh e Ratjen revelam o desconforto social e esportivo com corporalidades e identidades que fugiam, desde o começo do século XX, com os ideais que sustentam o binarismo de sexo e gênero tradicionalmente aceitos como essenciais e imutáveis para mulheres e homens. Especialmente quando pensamos no dimorfismo sexual do esporte.
Atletas intersexo, com variações biológicas naturais em suas corporalidades, existem e participam de competições de alto nível desde que o movimento olímpico se consolidou. Mas com a inquietação sociocultural para controlar e regular a categoria feminina, diversas práticas regulatórias foram desenvolvidas para minorar e filtrar esses corpos tidos como ambíguos, que embaralhavam as classificações esportivas e causavam confusão com os gestores, nas coberturas midiáticas e muitas vezes eram fomentadas pelos próprios atletas.
A partir de Berlim 1936, cresce a ansiedade em torno da presença de atletas consideradas masculinas demais. Casos como os de Zdeněk Koubek e Mark Weston, que passaram por processos de redesignação de gênero durante a primeira metade do século XX, alimentaram a pressão por maior controle na categoria feminina. Na época, Avery Brundage, então presidente do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, solicitou ao Comitê Olímpico Internacional (COI) exames médicos para assegurar que todas as atletas fossem “100% femininas” quando competissem em Mundiais e Jogos Olímpicos. A solicitação foi prontamente aceita pelos gestores do período, tornando a federação internacional de atletismo a primeira entidade a formalizar os testes regulatórios de feminilidade.
Durante as décadas seguintes, essa regulação visual com inspeções minuciosas do corpo das atletas foi ganhando novas roupagens, como a exigência de certificados de feminilidade. As atletas precisavam comprovar sua “condição feminina” para competir em alto nível. Muitas atletas começam a publicamente lutar contra essa arbitrariedade. Mas essa crescente intervenção sobre os corpos das atletas estava intrinsecamente ligada a disputas ideológicas e geopolíticas que saíram do pós-guerra para se fortalecer com as paranoias da Guerra Fria. O retorno da União Soviética às competições internacionais em 1946 intensificou o cenário de suspeição. A questão do doping também surge como um ponto de atenção para controle regulatório. As soviéticas dominaram por muitas décadas os pódios internacionais, elevando essa ansiedade em torno do sexo e gênero das atletas, o que impulsionou testes sexuais cada vez mais rigorosos.
Contudo, mais do que um simples exame anatômico que identificaria facilmente atletas ambíguas ou viris demais, essas regulações na categoria feminina buscavam, na verdade, estabelecer padrões rígidos do que era o gênero e a feminilidade. Esses estereótipos e suspeitas em torno da condição feminina se misturavam com diversos tipos de investigações científicas e uma mistura explícita de projetos nacionalistas. O esporte se consolida como um lugar privilegiado para modular o corpo das atletas e regular a identidade de gênero dessas esportistas, refletindo as tensões sociais, as ansiedades culturais e os problemas geopolíticos de um mundo em transformação.
* Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a ONU Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.
Edição: Nathallia Fonseca