As torcidas-escolas também atuam como centros comunitários e possuem uma agenda social ativa
Quando o assunto é tirar lazer, a cidade de São Paulo sabe ser múltipla e diversa, seja com iniciativas e ajuntamentos de coletivos culturais em suas quebradas, ou com atrações mais badaladas e centrais como museus, bares e parques. No entanto, dentre todas essas, uma tem roubado a cena nos finais de semana paulistanos, sobretudo para os amantes do futebol e/ou do samba: são as festas e atividades culturais nas quadras das torcidas-escolas, fenômeno bastante peculiar da cidade cinza.
A partir de experiências de pesquisas realizadas nos últimos anos dentre as Torcidas Organizadas que também são Escolas de Samba na cidade, problematizamos a visão reducionista, imposta historicamente pelos grandes meios de comunicação, de que torcida organizada é apenas um coletivo hegemônico atrelado ao futebol e às formas de sociabilidade de macheza e violência. Afinal, torcida organizada tem sido, no que vemos na prática, um conjunto bastante heterogêneo, constituído de uma agenda com diversas atividades cotidianas em suas comunidades, ampliando cada vez mais suas formas de lazer, estilo de vida e pertencimento para além do futebol e da paixão clubística.
Comecemos então pelo coração das torcidas organizadas, que são suas sedes espalhadas pela cidade, também nomeadas como quadras, justamente por sua associação direta com a sociabilidade difusa junto ao universo das Escolas de Samba. “Vai colar na sede hoje?” talvez seja a mensagem mais trocada entre amigos no final de semana, e não precisa ter jogo! Pois as sedes se tornaram também um importante ponto de encontro de lazer e convivência, seja para jovens e adolescentes, como também para famílias com crianças, e idosos. Passar o dia na sede se tornou um rolê fundamental na sociabilidade periférica do torcer, mesmo para aqueles que não torcem nos estádios e apenas se sentem em casa com a ambiência festiva e agregadora da quadra (inclusive para não associados).
Para além das práticas de lazer, a atuação em suas quebradas é bem mais espalhada e diversa do que se imagina. As torcidas-escolas também atuam como centros comunitários e possuem uma agenda social bastante ativa durante a semana, seja com aulas abertas e gratuitas de Boxe, Muay Thay, Capoeira, Futsal, Percussão e Dança, ou com atividades ainda mais direcionadas a educação e assistência social, com cursinhos populares pré-vestibular e ações pontuais de demandas comunitárias. Já os finais de semana e feriados são mais direcionados para o lazer, seja com festas temáticas, como Dia das Crianças, natal solidário, Dia da Consciência Negra, ou com as já tradicionais feijoadas e churrascos com roda de samba e shows com atrações musicais.
Diferente de qualquer outra atividade de lazer, o encontro na quadra tem um lugar de coletividade e pertencimento que dificilmente se alcança em outros rolês na cidade. Ali não precisa conhecer para se sentir parte e nem ir sempre para se sentir acolhido, a coletividade faz parte da sociabilidade. Ali o lazer não parece ser só mercadoria, e a feijoada, o churrasco, a cerveja e a roda de samba não são apenas para atrair o público para o consumo e gerar lucro, mas um ponto de encontro onde pertencer é a razão de se achegar.
Por exemplo, ao tomar o prato de feijoada das mãos da sorridente e calorosa dona Josefa (pseudônimo para preservar o nome real), aquilo facilmente pode deixar de ser um sábado em uma das maiores torcidas organizadas do Brasil. Aquele simples gesto de carinho, afeto e trabalho doméstico pode levar a memória afetiva de muitos a inúmeros momentos em que eram suas avós a mulher preta sorridente que passava o prato no quintal de casa. Ali é possível deixar de estar sozinho para se sentir parte do almoço de dona Josefa e do Gaviões da Fiel.
Por lá a feijoada com roda de samba aos sábados já virou tradição. E a expansão da sede, que hoje toma quase toda a rua Cristina Tomás, no bairro do Bom Retiro em São Paulo, fez daquele ambiente alvinegro um importante centro de lazer de sua comunidade. Sua localização ao lado do Centro de Esportes Radicais faz com que passar o dia inteiro por lá seja um baita rolê com a família e as crianças. E isso está longe de ser uma exclusividade gaviã.
Fato é que, por mais que ainda se sustente que Torcida Organizada exista em prol de seu clube e por isso é “só coisa de futebol”, é possível perceber que na atualidade elas estão cada vez mais consolidadas e enraizadas em suas comunidades, sobretudo com a dupla pertença de ser Torcida-Escola. E por que então só isso é mostrado? Por que não temos notícias sobre as quadras terem se tornado um ponto comunitário de lazer? Por que não temos imagens de donas Josefas para retratar o que também são as torcidas organizadas?
Diferente das arenas de Corinthians e Palmeiras em que a elitização do futebol tem apartado financeiramente cada vez mais pretos e pobres do torcer, as quadras das torcidas-escolas parecem seguir o caminho oposto, e os acolher como protagonistas. Tornando assim esse ambiente ainda mais demarcado como um espaço popular de sociabilidade negra e periférica, tanto para quem quase nunca consegue ir aos jogos, como também para quem nem gosta tanto de futebol assim, mas ama estar ali e se sentir parte daquela coletividade.
Apesar disso ser uma importante alternativa às formas de lazer e estilo de vida da maior parcela dos torcedores organizados no país, essa parte segue sendo completamente invisibilizada pelos grandes meios de comunicação. E por quê? Só compensa mostrar os pretos e pobres que estão na pequena parcela dos que brigam em torno do futebol? E todo o restante, a maior parte que vive cotidianamente o que é ser torcedor organizado, eles não devem também aparecer?
Para saber mais sobre:
ANDRADE, Marianna; SOUZA JUNIOR, Roberto & TOLEDO, Luiz Henrique. Pertencimento clubístico e pertencimento torcedor: materialidade e gênero numa torcida organizada de futebol. Revista Esporte e Sociedade, 2021.
SOUZA JUNIOR, Roberto. O samba em torcidas organizadas: narrativas caminhantes, (sobre) vivências imagéticas que não ganham manchetes. Fotocronografias, [S. l.], v. 10, n. 24, p. 160–179, 2024.
TOLEDO, Luiz Henrique & SOUZA JUNIOR, Roberto. Redes populares de proteção: Torcidas Organizadas de futebol no contexto da pandemia da COVID-19. Ponto Urbe, 26, 2020.
* Roberto Souza Junior é antropólogo urbano e audiovisual. Doutorando e mestre em Antropologia pela UFSCar. Pesquisador associado ao Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS-UFSCar), ao Grupo de Antropologia Visual (GRAVI-USP) e ao Pesquisas em Antropologia Musical (PAM-USP).
** Bruno Vieira Borges é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz mestrado em Sociologia. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ), ao Mobilidades: Teorias, Temas e Métodos (MTTM) e ao UrbanData-Brasil.
*** Lucca Ignacio Morais Luiz é formado em História, com Mestrado em Educação e atualmente faz Doutorado em Sociologia na Universidade de São Paulo com dupla titulação pela Universidade de Innsbruck. Integra o Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ), o Grupo de Pesquisa de Sociologia da Educação, Cultura e Conhecimento (GPSECC) e o Forschungszentrum Social Theory (FZST).
Edição: Nathallia Fonseca