Análise

Transnacionais dos EUA acabaram com a soberania alimentar mexicana

Sem recursos substanciais e outra política rural, nossa autossuficiência alimentar ficará cada vez mais longe

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Combinação da falta de apoio à produção com a crise climática reduziu as margens de autossuficiência alimentar - Sérgio Lima/AFP

Os Estados Unidos são a maior potência agrícola do mundo. E o abastecimento alimentar do México depende, em grande medida, dos cereais, das oleaginosas e da carne que o país nos vende. Somos o principal destino das exportações estadunidenses de milho, carne de porco e produtos à base de carne de porco, laticínios, carne e produtos à base de carne de aves, trigo e açúcar.

Estamos em segundo lugar em farelo de soja e alimentos preparados e o terceiro em soja. Em termos de produtos alimentares, estamos subordinados ao nosso vizinho do Norte. Quase três quartos dos gêneros alimentícios que importamos vêm de lá.

Não se trata apenas de bens de luxo. São sobretudo alimentos de que necessitamos e que consumimos diariamente. Imaginem por um momento o que aconteceria se, por qualquer razão, esse fornecimento cessasse. O Tio Sam é também o mais importante comprador dos nossos produtos agrícolas: adquire 92% das nossas vendas externas neste domínio. Em 2023, estas vendas atingiram mais de US$ 41,9 bilhões (R$ 256,4 bilhões).

Temos quase todos os ovos no mesmo cesto. O que faria o México se, de um dia para o outro, se deparasse com milhares de litros de cerveja e de tequila e toneladas de abacates e tomates que não podia colocar nos mercados estadunidenses como fazia anteriormente? Muitas destas empresas estão nas mãos de conglomerados transnacionais. Só as vendas de cerveja para os EUA representam 13% das nossas exportações agrícolas para o país vizinho. No entanto, as duas mais importantes cervejeiras mexicanas fazem parte de carteiras internacionais.

A Cuauhtémoc-Moctezuma pertence à Heineken. A Modelo é uma filial da AB-InBev, o maior fabricante de cerveja do mundo. Além disso, compramos cereais, cevada e amido de milho do próprio Estados Unidos para fabricar a bebida. As exportações de tequila para o nosso vizinho representam 10% das nossas vendas agrícolas a esse país. Mas essa riqueza não para por aí.

Muitas das principais empresas produtoras de tequila foram adquiridas por multinacionais. Em 2002, a Cazadores foi engolida pela Bacardi, a Sauza foi comprada pela Beam Future Brands, a Viuda de Romero pela Pernod Ricard e a Herradura pela Brown Forman Corporation. As compras estadunidenses de morangos, framboesas, amoras e mirtilos ao México representaram 6% das suas importações agrícolas provenientes do México em 2023.

É interessante notar que os principais embaladores ou agro-exportadores são empresas de propriedade gringa. Cerca de metade da indústria está nas mãos da Driscoll's. O mesmo acontece com outras transações de frutas e legumes. Essa preponderância de grandes tubarões corporativos na agroexportação também é uma constante em outras cadeias de produtos no mercado interno.

Entre muitos exemplos, pequenos cafeicultores enfrentam a Nestlé e a Andatti-Femsa; médios produtores de grãos enfrentam farinheiras como a Minsa e a Maseca; agricultores familiares enfrentam fábricas de suínos como a Smithfield; e pequenos avicultores enfrentam gigantes como a Bachoco e a JBS. Enfrentando os tubarões, cerca de 5,3 milhões de ejidatários, agricultores comunais e suas famílias lutam pela sobrevivência e para permanecerem camponeses.

A sua subsistência passa pela combinação de uma produção para autoconsumo, em que semeiam para colher alimentos, e não dinheiro, de pequenas culturas de rendimento, de remessas dos seus familiares nos Estados Unidos, de apoios oficiais diretos, de trabalho diário e de trabalho assalariado na construção civil ou nos serviços nas cidades.

A migração, temporária ou permanente, para as cidades, para os campos agrícolas ou para os EUA faz parte do seu horizonte de vida. Este modelo agrícola exportador, dominado pelo agronegócio, que foi posto em marcha com a entrada do México no GATT em 1986, consolidado com a contra-reforma agrária da 27ª Constituição em 1992, e que foi fechado a cadeado com o Nafta em 1994, a assinatura de acordos de livre comércio com 40 países e o T-MEC, permanece intacto.

Esta reforma foi acompanhada da compra e do arrendamento das melhores terras do setor social, da apropriação das concessões de água, do controle das sementes e da proletarização dos camponeses.

Nos últimos anos, o modelo agro-exportador manteve-se intacto, embora a maioria dos subsídios à agricultura comercial produtora de produtos de base tenha desaparecido e tenha sido substituída por subsídios diretos destinados a prestar assistência econômica a setores vulneráveis da população.

A combinação de falta de apoio à produção com a crise climática provocou a erosão da rentabilidade do setor e reduziu as margens de autossuficiência alimentar. Faltam recursos para a promoção, o financiamento, os seguros agrícolas e a comercialização. Os programas (alguns deles questionáveis) que davam segurança à comercialização foram eliminados. Atualmente, quem planta como negócio não quer correr riscos. E não há provas de que a produção em sequeiros tenha aumentado.

Para além de aprofundar a dependência alimentar, o modelo agrícola dominante tem um viés anti-camponês. Por mais importantes que sejam, as transferências diretas concedidas aos agricultores não lhes permitem enfrentar a concorrência desleal das importações altamente subsidiadas dos EUA, nem a exploração selvagem do trabalho nos campos de culturas hortícolas de exportação, nem a intervenção abusiva dos grandes tubarões agro-industriais na comercialização de produtos essenciais, nem a monopolização das melhores terras, águas e sementes. Sem recursos substanciais e outra política rural, a nossa autossuficiência alimentar ficará cada vez mais longe. De resto, corremos o risco de ficar com um mundo rural sem camponeses.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.