saúde como espólio

Relatório aponta colapso quase irreversível na saúde por causa de ataques de Israel a Gaza

Organização Médicos sem Fronteiras denuncia cenário que impede a permanência da vida e nega chances de recuperação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Entre um corpo e outro, a maca é empurrada num trabalho incessante de transportar vítimas fatais de um hospital em Khan Yunis para serem enterrados em Rafah - Said Khatib/AFP

Um relatório lançado pela organização internacional Médicos sem Fronteiras (MSF) denuncia o colapso no sistema de saúde imposto à população da Faixa de Gaza por Israel. Em mais de um ano de ataques, praticamente toda a infraestrutura de atendimento foi perdida e a população não tem acesso a comida, água potável, esgoto tratado e remédios. 

O documento em inglês Gaza: Life in a Death Trap (Gaza: Vida em uma Armadilha Mortal) aponta o desmantelamento do sistema e a negação da assistência humanitária como processos de punição coletiva e genocídio. Com dados e relatos, o documento demonstra o impedimento de qualquer tipo de recuperação do povo palestino. 

"Em particular no norte da Faixa, a recente ofensiva militar é uma ilustração clara da guerra brutal que as forças israelenses estão travando contra Gaza, e estamos testemunhando sinais claros de limpeza étnica, à medida em que a vida palestina está sendo eliminada da área", relata o estudo. 

Impacto humano 

Embora toda a população do território viva sob condição de extrema vulnerabilidade, grupos como mulheres e crianças são ainda mais afetados no contexto. O relatório destaca o aumento da desnutrição infantil e relata sintomas de depressão, ansiedade e pensamentos suicidas entre crianças.  

A destruição da infraestrutura de saúde e a insegurança generalizada tornam o acesso a cuidados pré-natais praticamente impossível para pessoas grávidas. Elas vivem sob risco significativo em casos de complicações como eclâmpsia, hemorragia e sepse. 

Além disso, o estresse, a má nutrição e a falta de apoio médico adequado aumentam os partos prematuros. Com unidades de saúde superlotadas, gestantes recebem alta precoce e retornam a condições de vida precárias. 

Esse cenário inclui deslocamentos forçados, abrigos improvisados e sem condições sanitárias adequadas, sofrimento psicológico e perda da rede de apoio. Muitas vezes responsáveis pelos cuidados com os filhos e outros membros da família, as mulheres enfrentam desafios adicionais em um contexto de guerra

O relato de uma mulher palestina de 33 anos, concedido à MSF no último mês de setembro, é uma das amostras do sofrimento imposto pelo exército israelense. Nas palavras dela, "bastaram cinco minutos para virar todo o nosso mundo de cabeça para baixo."

Abrigada com o marido e o filho em uma zona rural, que pensava ser uma área segura, a mulher presenciou o ataque surpresa de tanques. Cabanas improvisadas com palha foram incendiadas. O homem ficou ferido e a criança perdeu uma das pernas. 

Frente à gravidade do ferimento, ela deixou o marido e saiu em busca de transporte do filho para uma unidade de atendimento. Horas depois, quando os dois já tinham sido levados ao hospital, a mulher chegou ao local e encontrou o companheiro morto e a criança em estado de trauma.  

"Cheguei ao hospital, sentindo no fundo que estava prestes a perder meu filho. Vim me despedir. Perguntei pelo meu filho e me disseram que ele estava bem, estável até. Senti-me aliviada e agradeci a Deus. Mas então eles me disseram que meu marido havia falecido. Entrei em choque novamente, culpando-me por escolher meu filho em vez de seu pai." 

Dados 

De acordo com o relatório, a Organização Mundial da Saúde (OMS) registrou 512 ataques a unidades de saúde, entre 7 de outubro de 2023 a 18 de setembro de 2024. Mais de 400 instalações e 115 ambulâncias foram afetadas. Até o momento, 19 hospitais, 126 postos médicos e 75 centros de atenção primária à saúde estão fora de serviço. 

A estrutura restante opera com danos severos, escassez de recursos e suprimentos e perdeu a capacidade de acompanhar o crescimento nos números de vítimas da guerra. Antes dos ataques, o território contava com cerca de 3,4 mil leitos hospitalares. Hoje são pouco mais de 2 mil. Todos eles estão em hospitais parcialmente funcionais ou estruturas de campanha.  

"As necessidades aumentaram exponencialmente devido ao grande número de feridos e à disseminação de doenças causadas pelas péssimas condições de vida e pelo colapso do sistema de atenção primária à saúde."

Até o início desta semana, o número de óbitos relacionados à guerra relatado pelo Ministério da Saúde de Gaza ultrapassava 45 mil. Desde que a guerra começou, a organização Médicos sem Fronteiras realizou pelo menos 27,5 mil atendimentos por violência e 7,5 mil intervenções cirúrgicas 

As equipes da entidade que atuam no território sofreram 41 incidentes classificados como críticos. Nessa lista estão ataques aéreos, ofensivas terrestres em hospitais, disparos de tanques contra abrigos onde estavam trabalhadores e trabalhadoras da organização e suas famílias, e violência contra comboios humanitários. 

Um exemplo emblemático da brutalidade israelense é o cerco ao Hospital Nasser, em Khan Younis, detalhadamente documentado no relatório da MSF.  Sobrecarregado por vítimas da guerra e milhares de pessoas refugiadas, a unidade teve a maternidade atingida há cerca de um ano.  

Nas semanas seguintes, o hospital foi repetidamente bombardeado e atacado por atiradores de elite. Em 15 de fevereiro de 2024, forças de Israel invadiram o local de maneira violenta e causaram terror por três dias. Houve ordem de evacuação da unidade.

De acordo com as equipes da organização internacional, a invasão causou a morte direta ou indireta de pacientes.  

"As pessoas foram forçadas a uma situação impossível: ficar no Hospital Nasser contra as ordens do Exército israelense e se tornar um alvo em potencial ou sair do complexo para uma paisagem apocalíptica. As pessoas nos perguntam 'onde é seguro? Para onde devemos ir?', mas não há resposta para isso", relatou Lisa Macheiner, coordenadora de projetos da MSF em Gaza, durante o ataque. 

Impossibilidade de recuperação 

Diante da destruição sistemática de uma infraestrutura essencial, do colapso do sistema de saúde, da desnutrição generalizada, do bloqueio de suprimentos essenciais e do trauma psicológico profundo, a MSF considera a recuperação de Gaza um desafio quase intransponível 

Segundo o relatório, o impacto da guerra permanecerá por gerações e condenará a população a um futuro de sofrimento e privação. "Mesmo que o ataque brutal de Israel terminasse hoje, o impacto a longo prazo de tal carnificina e destruição desafiaria qualquer tentativa de defini-lo", alerta. 

O solo e as águas estão sob contaminação generalizada e os danos ambientais impõem riscos de longo prazo para a saúde, a segurança alimentar e a resiliência do ecossistema. A conclusão é de que as ações israelenses têm um impacto devastador na capacidade da região de sustentar a vida humana e o desenvolvimento social

"Seja qual for a perspectiva considerada, seja a reconstrução física da infraestrutura, o tratamento de feridos de guerra, a restauração dos cuidados com doenças crônicas ou a necessidade de lidar com o inferno mental pelo qual muitas gerações passarão, o desafio parece sem precedentes, particularmente no contexto desta pequena faixa de terra bloqueada e densamente povoada", alerta o documento.

Edição: Thalita Pires