A doula exerce importante prática de cuidado centrada na pessoa gestante, parturiente ou puérpera
Janaína Teresa Gentili F. de Araújo*
Na manhã do último dia 6 de dezembro, a Federação Nacional de Doulas do Brasil (FENADOULAS BR) e a Associação de Doulas do Estado do Rio de Janeiro (ADOULAS-RJ) convocaram doulas para um ato contra a decisão da Fundação Saúde do Estado do Rio de Janeiro de não destinar verbas requisitadas por duas deputadas e um deputado estaduais, via emenda parlamentar impositiva, para implementação do programa Toda Mulher Merece uma Doula no Hospital da Mulher Heloneida Studart (HMHS), em São João de Meriti, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Isso porque estão indignadas com a justificativa oficial da entidade responsável pela gestão da saúde pública no estado do Rio de Janeiro de que as doulas não podem atuar no hospital da mulher porque a unidade é especializada no atendimento às gestantes e bebês de médio e alto risco.
Keylla dos Santos Moreira Lima, mulher negra, mãe de um casal cuja menina nasceu na Casa de Parto David Capistrano localizada em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, doula atuante e ex-diretora de relações institucionais da ADOULAS-RJ, contou no ato que considerou relevante questionar sobre o que foi feito da quantia destinada ao banco de leite e à contração de doulas.
Assim, compareceu ao protesto e juntamente com as colegas de profissão distribuíram livremente informativos, conversaram com a população, informaram sobre o papel da doula aos seguranças, pacientes, acompanhantes e recepcionistas. Ficou muito satisfeita com o tratamento recebido como oferta de água, idas ao banheiro, sendo permitida a permanência no interior do hospital para se refrescar no ar condicionado já que estava um dia muito quente, oportunizando, deste modo, a distribuição de folhetos também na sala de espera.
Ela declarou ainda, que foram bem recebidas pela diretoria, trabalhadoras e trabalhadores da instituição, ficando nítido que não há qualquer objeção da atuação das doulas na maternidade, principalmente após reunião com a diretoria com quatro representantes do grupo.
Paula Inara Rodrigues Melo, mulher negra, mãe de dois meninos que nasceram em partos normais respeitosos e transformadores, também compareceu ao protesto, principalmente porque atua como doula (2014) e educadora perinatal (2013) na Baixada Fluminense e Grande Rio. Integrante do movimento social, é uma das fundadoras ADOULASRJ, onde foi secretária executiva e atualmente exerce o cargo de tesoureira.
Ela demonstrou, durante o protesto, surpresa e indignação com a decisão da Fundação Saúde porque atua cotidianamente no hospital sendo testemunha ressaltando inclusive a percepção que suas clientes negras dificilmente são referenciadas para aquela unidade, orientando que as mulheres se organizem para parir na Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda situada no centro da cidade do Rio de Janeiro como forma de mitigar os efeitos da violência e do racismo no ambiente obstétrico.
Há impedimento para atuação da doula em situações de médio ou alto risco?
Para responder essa questão proponho um breve panorama nas pesquisas sobre o significado da palavra doula. Autoras como Giovana Acácia Tempesta, Karla Romana Ferreira de Souza, Isa Maria Nunes, Denise da Silva Santos, Thuany Bento Herculano e Talita Melgaço Fernandes apresentam o trabalho das doulas como aquela “que serve”, tal qual as mulheres que ajudavam outras a dar à luz numa sociedade anterior à institucionalização do nascimento via instituições hospitalares.
Apenas na década de 1970 a antropóloga Dana Raphael usa o termo como sinônimo para a “mulher acompanhante de parto e pós-parto” como referência aos tempos de Aristóteles sendo absorvido mesmo em nações fundadas em mão de obra de pessoas escravizadas, como o Brasil. Curiosamente, por aqui chegou a ser considerado chamá-las de “comadres” em alusão àquelas que auxiliavam no nascimento de suas/seus afilhadas/afilhados, porque historicamente, as atribuições das doulas gregas não estavam associadas aos eventos de parturição, mas somente à condição de pessoa escravizada.
Na década de 1980, os pesquisadores Marshall Klaus, John Kennell, Steven Robertson e Roberto Sosa iniciaram estudos com 465 gestantes no início do trabalho de parto no Hospital da Previdência Social na Guatemala, “identificando a doula como uma mulher experiente em parto, que proporciona suporte físico, emocional e informacional à mãe durante todo ciclo gravídico puerperal”. Atendendo mais de cinquenta partos por dia, o hospital definia, em seu protocolo, que no início de trabalho de parto as parturientes deveriam permanecer em uma grande sala de espera sem qualquer tipo de acompanhante da sua escolha. Ao entrar em trabalho de parto ativo eram reorganizadas em grupos, sozinhas, sendo transferidas para outra sala.
Assim, 279 ficaram num grupo, sem acompanhamento de doulas, chamado “controle” e 186 foram para o grupo “experimental” com atuação de doulas. Estas ofereceram suporte através de: frases encorajadoras, massagens nas costas, além de atos de cuidado como segurar as mãos.
Com isso, observou-se que a atuação das doulas contribuiu para um parto menos prolongado, pois no grupo controle o trabalho de parto durou em média 15,5 horas, quando o grupo experimental pontuou 7,7 horas. Os resultados também demonstraram que 59% das gestantes no grupo controle tiveram problemas durante o parto contra apenas 27% do grupo experimental. Das situações encontradas estão o uso de hormônios sintéticos para acelerar o processo de parto, o uso de cesárea devido ao sofrimento fetal e um baixo índice de Apgar infantil.
Vale destacar que 17% das mulheres no grupo de controle tiveram sua prole via cesárea, ao passo que somente 7% foram submetidas ao procedimento cirúrgico no grupo experimental. Ademais, 7% dos bebês nascidos das participantes do grupo de controle foram admitidos na unidade de terapia intensiva neonatal ou na UTI por complicações quando ínfimos 2% dos bebês nascidos de integrantes do grupo experimental precisaram ser encaminhados para a UTI neonatal, considerando que a presença de doulas foi benéfica para o binômio mãe-bebê. Os pesquisadores ficaram tão impactados que em 1991, cofundaram a organização DONA International, uma agência de treinamento para doulas, baseada em evidência científica, promovendo educação continuada com o objetivo de espraiar e promover esse tipo de cuidado aos quatro cantos do mundo.
Em 1996, o Guia de assistência ao parto normal, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), incluiu a doula como prestadora de serviços informando que é formada por um treinamento básico sobre parto.
Mas em nosso país, somente em 2013 a doula foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o nº 322135. Três anos depois, o estado do Rio de Janeiro, através da Lei nº 7.314/2016, obriga maternidades e congêneres a permitir o acesso de doulas elencando regras para que possa exercer seu ofício, incluindo na Lei que determina os pisos salariais de inúmeras categorias.
Assim lanço mão da seguinte indagação: como podemos definir o exercício da doulagem brasileira já que estamos a duas fases para a regulamentação desta profissão com a tramitação do Projeto de Lei nº 3.946/2021 na Câmara dos Deputados.
Defendi em minha dissertação que temos elementos suficientes para definir a doula brasileira como uma profissional de nível médio, formada através de curso técnico de qualificação profissional específica em doulagem, com diploma expedido em território nacional ou por instituições estrangeiras e revalidadas no Brasil, atuante em sua grande maioria como autônomas na área da saúde e serviços sociais, oferecendo apoio físico, informacional e emocional à pessoa durante o seu ciclo gravídico-puerperal e, especialmente, durante o parto, visando à melhor evolução desse processo e ao bem-estar da gestante, parturiente e puérpera.
O piso salarial no estado do Rio de Janeiro é de R$ 1.375,01, exercendo suas funções em ambiente fechado, através de procedimentos terapêuticos manipulativos, energéticos e vibracionais avaliando disfunções fisiológicas, sistêmicas, energéticas e vibracionais através de métodos das medicinas oriental e convencional recomendando às suas doulandas/pacientes/clientes a prática de exercícios, o uso de essências florais fitoterápicos com o objetivo de reconduzir ao equilíbrio energético, fisiológico e psico-orgânico.
Em 2017, o grupo editorial Cochrane Pregnancy and Childbirth Group publicou revisão sistemática de estudos realizados em todo o mundo (26 estudos com mais de 15.000 mulheres com dados de 17 países) revelando que o apoio contínuo prestado pela doula é benéfico para uma maior probabilidade de parto fisiológico, redução de medicamentos para alívio da dor, do tempo de duração do trabalho de parto, da depressão pós-parto ou de ser submetida à cirurgia.
Contudo, de acordo com Giovana Acácia Tempesta, em nosso território o acesso às doulas está majoritariamente concentrado num grupo de mulheres escolarizadas e integrantes das classes médias urbanas.
Assim, proponho uma reflexão acerca dos trabalhos de Natália Helou Fazzioni e Giovana Acácia Tempesta, entendendo essa profissional como uma das atrizes responsáveis por um cuidado perinatal através da constituição de bons vínculos de curta ou média duração quando comparada ao companheiro ou acompanhante da sua escolha qual o motivo para a Fundação Saúde decidir dar outro destino ao numerário se em nenhum estudo ou norma há orientação de que a doula deverá atuar apenas em gestações de risco habitual?
Para melhor compreensão do ofício das doulas no cenário obstétrico brasileiro a FENADOULAS BR lançou no ano passado um concurso denominado “doula em cena” onde profissionais de todo o Brasil deveriam enviar fotos que ilustrasse seu ofício. A fotografia enviada por Thaís Bandeira, doula atuante no estado da Bahia, foi uma das selecionadas. O ato retratado demonstra como atrizes e atores entendem o cuidado perinatal destinado ao sexo feminino e ao recém-nascido ao passo que a doula exerce uma prática de cuidado centrada na pessoa gestante, parturiente e/ou puérpera.
Após um conjunto robusto de evidencias científicas o Ministério da Saúde emitiu a nota técnica nº 13/2024 sobre a atuação e a contribuição da doula no âmbito da Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil, na gestação, no trabalho de parto, no parto e após o parto “considerando-a relevante para o fomento de políticas de cuidado e humanização da atenção à gestação, ao parto e ao nascimento, o que contribui também para o enfrentamento à mortalidade materna e neonatal do país”.
Para além da atuação profissional
Desta forma, refletindo sobre o papel da doula em nossa sociedade é que em minha dissertação busquei também entender sobre o ofício das doulas analisando suas práticas de cuidado e testemunho das violências e do racismo no ambiente obstétrico brasileiro através das experiências de doulas negras que atenderam mulheres negras usuárias que mais sofrem no período de reprodutivo. A pesquisa dialoga com e contribui para os debates políticos e acadêmicos sobre a humanização do parto, o trabalho de cuidado, por meio de uma perspectiva feminista negra decolonial.
As entrevistas demonstraram que o maior legado da doulagem está no conhecimento venenoso categoria analítica da indiana Veena Das pois muitas delas foram/são ao mesmo tempo vítima e testemunha das violências e dos racismos no ambiente obstétrico.
Ao longo da trajetória como uma doula-pesquisadora entendi que depois de amealharem experiências traumatizantes, as doulas lançaram mão de um conhecimento venenoso para orientar, denunciar, divulgar através de uma educação popular em saúde como é o cenário obstétrico, inovando em estratégias de cuidado e resistência com a finalidade de promover uma experiência de parto o mais satisfatória possível para suas clientes e/ou assistidas, sendo uma conquista indelével a destinação de verba para implementação do Programa em todo o estado do Rio de Janeiro.
*Janaína Teresa Gentili F. de Araújo, advogada, doula, mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ e contadora de histórias.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Jaqueline Deister