*Atualizado em 17/12/2024 às 9h55
“Renato estava indo pro trabalho e ia fazer o café da manhã. Ele estava com refrigerante e mortadela na bolsa. Aí, falou assim: 'Adonias, eu vou dar um cochilo aqui'. Eu respondi: ‘vai lá, quando chegar próximo, eu te aviso’. Agora, meu amigo não acorda”. A fala de Adonias dos Santos, amigo Renato Oliveira, morto num tiroteio no dia 24 de outubro na Avenida Brasil enquanto cochilava no ônibus a caminho do trabalho, estampou os noticiários e ressaltou, mais uma vez, a crise na área de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.
O caso de Renato é um exemplo entre as 623 pessoas mortas por disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio entre janeiro e outubro deste ano, segundo levantamento do Instituto Fogo Cruzado. Os números apresentam uma redução de cerca de 5% em comparação ao mesmo período do ano passado, mas, ainda assim, seguem altos e em crescimento. As vítimas mais recentes da violência armada foram a contadora Alessa Vitorino, de 30 anos, baleada na Vila João, no Conjunto de Favelas da Maré, durante uma operação policial e a médica Gisele Mello, de 55 anos, atingida na cabeça enquanto participava de um evento dentro do Hospital Marcílio Dias, no Lins de Vasconcelos. A localidade também era alvo de uma operação policial, segundo a Polícia Militar.
O questionamento à eficiência das operações policiais é cada vez mais frequente. As incursões de forças policiais em favelas também foram destaque no relatório da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Alerj divulgado na última terça-feira (10). De janeiro a novembro deste ano, a Comissão recebeu 385 denúncias de violações, mais da metade, 51,1%, tinham como agravante a violência de Estado. Segundo o levantamento, a maior parte das violações ocorreu em residências. De acordo com a deputada estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos, Dani Monteiro (Psol), as violências em residências estão diretamente relacionadas às operações policiais nas favelas.
“Isso não acontece na Gávea, em Ipanema, no Pepê. A ausência de mandados de busca e a brutalidade policial resultam em abusos, tortura e até execuções. Isso é um reflexo da impunidade e da lógica de guerra aplicada pelo Estado, ao invés de dar proteção e respeito à vida dos cidadãos. Essas operações, em sua maioria, não têm um caráter de busca por justiça, bem longe de ser garantista de direitos, mas sim de repressão à classe trabalhadora e aos mais pobres”, enfatiza a parlamentar.
Para Monteiro, as falhas graves na política de segurança pública do estado do Rio exigem mudanças efetivas que incidem, principalmente, sobre as polícias. “É urgente um processo de reciclagem dessas polícias, repensando seus modelos, especialmente a militarização, e a implementação de políticas públicas que priorizem educação, cultura popular e inclusão social, afastando a lógica de repressão e investindo em prevenção”, ressalta.
Conexão Rio-São Paulo
A violência e a letalidade policial estão no centro do debate da opinião pública nas últimas semanas, principalmente após os episódios ocorridos no estado de São Paulo. Dados do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial, do Ministério Público de São Paulo, apontam que as mortes cometidas por policiais militares no estado aumentaram 46% até 17 de novembro deste ano, se comparado a 2023.
Além de números preocupantes na área da segurança pública, os estados do Rio e São Paulo compartilham da mesma ideologia política. Cláudio Castro (PL) e Tarcísio de Freitas (Republicanos), respectivos governadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, se identificam com o bolsonarismo. Para o professor do Departamento de Segurança Pública e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lenin Pires, governos de extrema direita, no Brasil, “apostam as fichas na repressão máxima, em que são desprezadas políticas públicas de prevenção e uso de inteligência embasada cientificamente”.
“A política do confronto acaba fazendo com que as organizações policiais pensem possuir discricionaridade máxima e todo poder. Contudo, a maneira como os territórios da pobreza são segregados, enquanto as áreas mais nobres das regiões metropolitanas são protegidas e guardadas, mostram que a política calçada no uso da força é seletiva e voltada para proteger os interesses dos mais poderosos”, afirma o antropólogo destacando que hoje a polícia “performatiza uma espécie de estado de exceção sobre os mais vulneráveis”.
Outro lado
O Brasil de Fato RJ procurou as assessorias dos governos Cláudio Castro e Tarcísio de Freitas. Por meio de nota, o governo de São Paulo informou que "as polícias do estado não compactuam com desvios de conduta de seus agentes, punindo àqueles que infringem a lei e desobedecem aos estritos protocolos estabelecidos pelas instituições":
"Todos os casos de confrontos, incluindo as ocorrências de morte e lesão corporal em decorrência de intervenção policial, são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário. A Polícia Militar mantém um programa de formação continuada para todo efetivo. Os policiais são submetidos a capacitações teóricas e práticas para atualizar e aprimorar as atividades de policiamento e o relacionamento com a sociedade. A Pasta investe ainda na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas visando também à redução das mortes e lesões de policiais em serviço".
O governo do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Edição: Vivian Virissimo