Rio de Janeiro

FÉ E POLÍTICA

'Jesus não nasce no Palácio para ser herdeiro, Ele subverte a lógica de poder', afirma pastor Henrique Vieira

Henrique Vieira é deputado federal (Psol-RJ) e autor de livros que refletem sobre um Cristo "enraizado na luta popular"

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Pastor Henrique Vieira é autor dos livros "O Jesus negro: O grito antirracista da Bíblia" e "Jesus da gente: Uma leitura da Bíblia para os nossos dias" - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O Natal é uma data que inspira a generosidade, o amor ao próximo e a solidariedade. No dia 25 de dezembro é celebrado o nascimento de Jesus Cristo pelos cristãos. A celebração convida para uma reflexão sobre privilégios, ética e compaixão. Valores que acabam, muitas vezes, esquecidos pela exaltação ao consumo da sociedade capitalista.

O Brasil de Fato conversou com o pastor da Igreja Batista do Caminho, professor, escritor, ator e deputado federal Henrique Vieira (Psol-RJ) sobre a simbologia da data e a história de um Jesus “enraizado nas lutas populares”. Vieira amplia o diálogo dos textos tradicionais da Bíblia com o tempo presente, mostrando que a consciência política sobre as injustiças sociais trazidas por Jesus alcança cristãos e não cristãos.

Confira a entrevista:


Brasil de Fato: Henrique, você considera a história do nascimento de Jesus Cristo “subversiva”. Poderia explicar um pouco mais sobre este Natal que ficou esquecido para boa parte das pessoas?

Henrique Vieira: Claro. A começar pelo envio do anjo Gabriel para falar com Maria, e revelar a ela o projeto divino de nascimento do Messias: ali, Deus já subverte a lógica machista-patriarcal da época, enquanto a dirige primeiro e, prioritariamente, a uma mulher.

Poderíamos ainda falar de muita coisa, como dos “magos”, que com algum estudo histórico e teológico, vemos que se tratavam provavelmente de sacerdotes persas especialistas em astrologia. Eles seguem o direcionamento de uma estrela, e por meio dela, encontram Jesus menino, ao qual louvam e presenteiam. A Inter-religiosidade está aí expressa, no cuidado, no afeto, e mais uma vez, Deus que subverte a lógica: não foram os sumo-sacerdotes judaicos que acolheram Jesus. Muito pelo contrário, estes tentaram matá-lo, anos depois.

Mas talvez o que mais me marque nesse nascimento subversivo de Jesus, é que Deus, ao se fazer carne, se faz classe: filho de família pobre e periférica, o menino Jesus cresce aos cuidados do carpinteiro José. Não nasce no Palácio para ser herdeiro do poder, nem na alta cúpula do exército romano, para ser um guerreiro com arma na mão.

Ele subverte a lógica do poder, e se faz como um de nós, para que por meio do amor, apresente uma nova forma de ser consigo, com o outro, com Deus.

No seu vídeo “A História Subversiva do Natal”, você resgata que o nascimento de Jesus celebra a luta das mulheres contra o patriarcado, o diálogo inter-religioso e a diversidade. Como esses temas se manifestam na história de Jesus?

O Ministério de Jesus é cercado e sustentado por mulheres, a todo tempo. Não somente o anjo Gabriel visita Maria para falar do nascimento de Cristo, como o próprio Cristo segue amparado por Maria e diversas outras mulheres em toda sua trajetória. Não à toa, as primeiras pessoas a verem o túmulo vazio, depois da crucificação e ressurreição de Jesus, são as mulheres que faziam parte de seu ministério.

A diversidade também é expressa no ministério de Jesus no acolhimento a quem era tratado como diferente. Àqueles que eram estigmatizados naquele período histórico, desde publicanos, leprosos, até samaritanos, são acolhidos, abraçados e empoderados por Jesus. Isso nos leva a entender que ainda hoje, Deus tem pressa para abraçar o marginalizado, cuidar do estigmatizado, empoderar quem a sociedade insiste em deslegitimar.


Em suas obras, como o livro “Jesus da gente: uma leitura da Bíblia para os nossos dias”, você propõe reflexões sobre como os valores trazidos pelo cristianismo podem ser vividos em meio as contradições do capitalismo. Como tais ensinamentos podem ser uma força de transformação social e coletiva nos tempos atuais?

Acredito que o clamor de Jesus por uma ética que nos leve a nos colocar no lugar, na pele do próximo, como Ele ensinou, nos permite olhar com firmeza para as contradições de nosso tempo e como inaceitáveis as situações de indignidade às quais vários corpos são colocados em nossa sociedade.

Digo desde o corpo LGBTQIAPN, em vários casos violentado física e mentalmente, até o corpo desnutrido, que desfalece pela fome. A Ética de Jesus de Nazaré não me deixa ficar calado e inerte frente a uma organização social que produza este tipo de maldade.

E outra coisa que não poderia deixar de falar, é que a fé é um excelente combustível quando tudo parece intransponível. Olhar para o sistema capitalista, sobre como ele torna as relações em laços líquidos, o trabalhador em mercadoria, a mercadoria em idolatria; sobre como esse sistema é adoecedor e, porque não, uma máquina de moer gente: olhar para isso tudo e crer que conseguiremos superar, que podemos alcançar outro modelo de organização social, que o capitalismo pode ser superado: isso exige teoria revolucionária, organização social e, porque não, muita fé!

A história da Palestina durante a época de Jesus é fundamental para entender o contexto histórico, social e político que moldou a vida e os ensinamentos de Cristo. Hoje, sob o comando do Estado de Israel, a região é palco de um dos mais graves genocídios da História, cujas principais vítimas são mulheres e crianças. Poderia comentar sobre as contradições desta guerra em uma Terra Santa?

Acredito que, nesse caso, sequer se aplique o debate sobre ser ou não uma Terra Santa. O próprio Jesus, em Lucas 6:44, diz que “uma árvore é conhecida pelos frutos que produz”. Quais frutos são manifestos neste território? Paz, justiça, acolhimento?

A criação do Estado Moderno de Israel, do modo violento e autoritário como foi imposto no território palestino, não é uma questão religiosa. É uma questão geopolítica, sobre justiça, ética, respeito à soberania dos povos. O modo como Israel cumpre, hoje, um lugar tático dentro da organização estratégica do imperialismo dos Estados Unidos, não é uma questão religiosa. É uma questão geopolítica séria. As várias crianças, mulheres, civis brutalmente assassinados nesta guerra, nada tem a ver com uma Terra ser Santa ou não: tem a ver com uma escolha deliberada por descartar o que é acordado na convenção internacional dos direitos humanos. Não há discurso religioso que consiga sustentar agravos sistemáticos e constantes aos Direitos Humanos, à paz coletiva e à justiça social.

Edição: Vivian Virissimo