Coluna

Acordo Mercosul/União Europeia – um post mortem

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Presidente Lula durante a 64ª Cúpula do Mercosul, em Assunção, no Paraguai - Ricardo Stuckert / PR
Era impossível melhorar suficientemente o acordo fechado no tempo de Bolsonaro

Meus amigos, os brasileiros que procuram defender o Brasil têm vida quase sempre difícil. Alcançamos, em geral, pouco ou nenhum sucesso e raramente temos algo a comemorar. Uma razão é a tenebrosa “quinta coluna”. Não sei se o leitor conhece a origem dessa expressão. Durante a Guerra Civil Espanhola, os republicanos diziam que pior do que as quatro colunas do General Franco, que marchavam sobre Madrid, era a quinta coluna franquista que operava dentro da capital. Pois bem, a nossa quinta coluna faz sombra à madrilenha. É um numeroso exército de oportunistas e vassalos de interesses estrangeiros. Dou meu testemunho: ao longo da vida inteira, passei grande parte do tempo lutando contra esses quinta-colunistas. 

Veja-se, por exemplo, o recém-concluído acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Foi recebido com certa empolgação no Brasil. Celebraram, por um lado, os setores liberais e seus porta-vozes na mídia tradicional. E, por outro, os defensores incondicionais do governo, muitos dos quais pouco informados sobre o assunto. Os liberais querem expor a economia aos ventos da concorrência europeia. Os demais defensores do acordo simplesmente não admitem a hipótese de que o governo  possa errar em questões fundamentais. Não são da quinta coluna, claro, mas acabam colaborando com ela sem saber. 

No final do ano passado e início deste, escrevi vários artigos explicando por que este acordo, herdado do governo Bolsonaro, era uma verdadeira fria para o Brasil (Ver, por exemplo, “Vive la France!”, 8 de fevereiro de 2024). A conclusão não poderia surpreender ninguém. Afinal, o que de positivo deixou Bolsonaro?  

O governo Lula obteve modificações em alguns aspectos do acordo. Embora não sejam desprezíveis, não mudam a essência neoliberal. É essa ideologia, dominante na época em que a negociação com os europeus foi lançada há duas décadas, que estabelece a orientação do acordo. O princípio da liberalização fundamenta as suas principais partes – a eliminação de tarifas sobre importações, a proibição de impostos sobre exportações e a abertura das compras governamentais a empresas estrangeiras. O pressuposto central é que a liberalização é benéfica, tão benéfica que vale a pena consagrá-la em acordo internacional, protegendo-a de decisões nacionais. 

Ressalte-se que o neoliberalismo foi abandonado nesse meio tempo em quase toda parte, inclusive nos Estados Unidos e na Europa. Encontrou, porém, uma sobrevida entre nós. Como dizia Millôr Fernandes, quando ficam caquéticas, as ideologias vêm morar aqui no Brasil. 

Uma curiosidade: o acordo com a União Europeia fica aquém do que seria um acordo de livre comércio para bens e serviços. Mas vai além disso em diversos outros campos, como por exemplo em compras governamentais e na proibição de tributação sobre exportações de minerais críticos.  

Alterações no acordo 

As alterações obtidas pelo governo Lula foram em três áreas principais: a) certa margem de manobra em compras governamentais; b) algumas exceções à proibição de taxar exportações de minerais críticos; e c) um pequeno alongamento do cronograma de desgravação tarifária no setor automobilístico.  

Um ponto essencial, leitor. O que se conseguiu foi algum damage control (controle de prejuízos), e não propriamente vantagens. Esse ponto nem sempre é compreendido. Explico sucintamente.  

Em compras governamentais, não temos hoje qualquer restrição à sua utilização como forma de favorecer a produção e a geração de empregos em território nacional. Pelo acordo, entretanto, o grosso das nossas licitações estará totalmente exposto a concorrentes europeus. Embora o governo tenha conseguido introduzir exceções importantes, como a possibilidade de estabelecer contrapartidas comerciais, a preservação de políticas para pequenas e médias empresas, e as compras do SUS e de programas voltados à agricultura familiar, fez algo incompreensível: tirou da cartola vantagem que nem mesmo os negociadores de Bolsonaro tinham oferecido aos europeus. Abriram as compras governamentais de 21 unidades da Federação, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Ou seja, limitou-se o estrago no caso das compras do governo federal, mas a liberalização foi preservada no essencial e até ampliada para incluir as compras da maioria dos governos estaduais. .   

Sobre esse ponto, a abordagem chinesa oferece parâmetro digno de nota. Apesar da competitividade de suas exportações e do extraordinário perfil tecnológico do seu parque industrial, o país não liberaliza seu mercado de compras públicas. Nesse tema, o único tipo de cláusula a que se submete diz respeito a regras de transparência, sem aceitar condições de acesso a mercado. 

No que diz respeito a minerais críticos, essenciais para áreas estratégicas como economia digital e energia, foi definida uma pequena lista de produtos sobre os quais o governo poderá estabelecer impostos de exportação até um limite de 25%. Ora, hoje o governo pode tributar exportações desses e outros produtos sem exceção e sem pedir licença a ninguém. Isso pode ser importante para garantir o nosso acesso a esses insumos e estimular que a sua elaboração seja feita em solo nacional, no lugar de exportá-los em estado bruto. Como esses minerais são decisivos para a produção em setores de vanguarda, preservar essa margem de manobra teria sido essencial. Obteve-se a título de damage control uma pequena lista sobre a qual impostos serão admissíveis até certo teto.   

Quanto à eliminação de tarifas sobre bens industriais pelo Mercosul, adiou-se a redução a zero desse imposto para alguns tipos de veículos. No caso dos carros eletrificados, a eliminação das tarifas se dará em 18 anos.  No caso de veículos a hidrogênio, a desgravação passa para 25 anos e para os de nova tecnologia, para 30 anos. Para os demais setores industriais, permanece o prazo original de 15 anos. Depois desse período, a indústria brasileira, com as exceções mencionadas, ficará exposta à concorrência desimpedida com a indústria europeia, que conta com acesso a fontes de financiamento e economias de escala muito mais vantajosas.  

Na verdade, leitor, era impossível melhorar suficientemente o acordo fechado no tempo de Bolsonaro. Não era recomendável aceitar ponto de partida tão desfavorável para a retomada dos entendimentos com os europeus. Melhor teria sido simplesmente abandonar o acordo, como fez recentemente a Austrália em negociação semelhante com a União Europeia. E explorar outros caminhos para incrementar as relações econômicas com os europeus de forma equilibrada e mutuamente benéfica. 

O que ganhamos?  

Repito a pergunta que fiz nos meus artigos anteriores. O que exatamente ganhamos com esse acordo, mesmo modificado? Não estou falando em damage control, mas em vantagens concretas. Essa pergunta nunca foi respondida. 


Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021.  

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Nathallia Fonseca