É importante lembrar que nem todas as mulheres têm conseguido exercer o direito/desejo de ser mãe
Ueslei Solaterrar* e Tamara Vicaroni**
Novembro de 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19, município da Baixada Fluminense. Conceição, mulher cis, preta, heterossexual, 31 anos, evangélica, pobre, moradora de uma “área de risco” em frente a “uma boca de fumo” estava em sua segunda gestação. Conceição tem o diagnóstico de esquizofrenia, é lida socialmente como louca. Ela chega ao Centro de Atenção Psicossocial III (CAPS), serviço da saúde mental pertencente ao SUS, em franca crise psicótica, grávida de oito meses, encaminhada pela emergência de Nova Iguaçu, cidade vizinha, se recusando a permanecer no serviço e com atitude que oscilava entre hostilidade com a equipe, pedidos para ir embora e súplica para permanecer com seu filho após o nascimento.
Era final da tarde, a enfermeira que a recebe, mulher cis, parda, nunca havia trabalhado com saúde mental e, assim como mais da metade da equipe, tem “medo de gente maluca”. Conceição ficou uma semana no serviço, “evadiu” no dia seguinte, retornou, ficou um tempo, até “evadir” de novo e ir parar em Madureira, sem roupa, sendo motivo de chacota e gravações divulgadas nas redes sociais. Após mobilizações de órgãos da Prefeitura do Rio de Janeiro, Conceição é encaminhada para a emergência do Pinel, de onde só sai direto para a maternidade, cerca de um mês depois.
O parto se dá em um dia, ela “entra em surto” no segundo, “evade” da maternidade, vai para o CAPS III. Seu filho é encaminhado para uma Unidade de Acolhimento Infantil sem nenhuma tentativa de contato e articulação com a equipe do CAPS, que estava acompanhando todo o processo de cuidado e diálogo com a equipe da maternidade. Conceição já tinha um nome para seu filho e não para de perguntar e chamar por ele. Dessa vez, ela não quer sair, “não evade”, ela só chora e quer visitar seu filho.
Conseguimos uma única visita e encontro dela com seu filho antes de ele ser encaminhado para adoção sem ela nem ser escutada, nem a equipe e todos os relatórios e laudos enviados. Com o passar dos dias, Conceição deixa de chorar, deixa de perguntar pelo filho, deixa de desejar viver. O que se vê são fragmentos de seu corpo, seu olhar distante, suas mãos constantemente trêmulas, um corpo sem substância. Algo em Conceição morreu, ela estava vivendo o luto pela morte de um filho que estava vivo.
O relato que abre esse texto faz parte da pesquisa de doutorado do pesquisador Ueslei Solaterrar, um dos autores deste texto. Revisitar a história de destituição da maternidade de Conceição, nos faz lembrar da história de muitas outras mulheres que, como ela, tiveram o direito e o desejo de serem mães interditados. A experiência da maternidade como algo associado, cultural e socialmente, à condição de mulher é uma realidade, fomentando discursos sobre a maternidade que trazem a ideia de que a mulher/mãe que se recusa a assumir “o seu papel” estaria na posição de uma “desnaturada”, “doente”, um “monstro” que não respeita aquilo que é da sua “natureza”, como discute a filósofa francesa Elisabeth Badinter, no clássico “O mito do amor materno”.
A antropóloga Camila Fernandes afirma que a figura da "mãe abandonante" é entendida como a "última fronteira do impensável feminino". Ou seja, como o lugar da anormalidade, do patológico, do desumano, do imoral, da monstruosidade. Mas, e quando essa mulher é negra e, por ter um diagnóstico de transtorno mental, é lida socialmente como louca?
Por quais (des)caminhos, tensões e moralidades passa a inversão do apelo social no sentido de destituição e violação do direito e desejo a maternar?
O encontro com as histórias de vida de mulheres negras e “loucas”, como Conceição, nos coloca de frente com, nas palavras de Camila, “performances femininas paradoxais, provocadoras e desviantes”. “Louca”, “irresponsável”, “cracuda”, “perigosa”, “desnaturada”, “mães nervosas”, “mães novinhas”,“fábricas de marginais” são algumas das acusações usadas contra essas mulheres servindo de justificativa para a interdição do seu direito e desejo de ser mãe. Por sua vez, é como se, ao performar insistentemente o desejo de exercer essas maternidades ininteligíveis e indesejáveis, mulheres como Conceição ecoasse o questionamento de Sojourner Truth, abolicionista e ativista dos direitos das mulheres afro-americanas no contexto dos EUA no século XIX: "e eu não sou uma mulher?".
“Quem tem direito a querer ter/ser mãe?”. Essa pergunta, lançada pela pesquisa da antropóloga Ariana Alves, é retomada aqui para, junto com ela, defender que nem todas as mulheres têm conseguido exercer o direito/desejo de ser mãe. A autora nos fala sobre os jogos de acusação, as denúncias e normas que vão produzindo e disputando práticas de gestão acerca de certas maternidades e populações, engendrando um contexto de guerra.
O que (des)faz uma mãe? A casa, o lar, é frequentemente acionada como condição para uma “boa maternidade”. Além disso, o lugar da razão, da sanidade, da saúde mental também tem feito diferença na garantia ou não, do direito à maternidade. Para mulheres como Conceição, o diagnóstico psiquiátrico e a questão da loucura foram decisivos na destituição da sua maternidade. A pergunta sobre quem tem o direito de querer ser mãe segue, infelizmente, sendo respondida afirmativamente apenas para algumas mulheres a partir da premissa de que algumas mulheres, por serem quem são, carregam consigo um risco constante para os seus filhos, como discute a pesquisa da Alfonsina Robles, sobre biopolítica e regulações sanitárias nas experiências de mulheres de camadas populares de Recife.
“Em nome do cuidado”: pelo melhor interesse de quem?
O princípio do “melhor interesse da criança” é acionado em inúmeras situações para justificar a destituição da guarda de crianças de suas mães e famílias por se encontrarem em situação de alguma “vulnerabilidade”. Com Conceição foi assim, o argumento do “melhor interesse da criança” era utilizado como sinônimo da “proteção do seu filho”, da “preocupação com ele”, sendo acionado a todo o tempo pelos diferentes atores em disputa, não apenas estatais, mas da própria família extensa. Como se o “melhor interesse da criança” não passasse pela possibilidade de ter o direito a estar com sua mãe garantido. Quem define, e com qual critério, o “melhor interesse da criança”?
Nos repertórios de acusação usados para lembrar a todo o tempo que por ser “louca”, “irresponsável”, “perigosa”, “infantil” e “desnaturada” estaria justificado o “sequestro” do seu filho e delegação dos cuidados para outras mulheres e famílias, em um processo de violência, invisibilização e destituição de toda uma rede mais próxima a essas mulheres que poderia assumir o lugar de cuidado junto com ela.
Portanto, o argumento de que a prioridade é proteger e salvar as crianças nestas situações, não importando muito o que será feito da vida das mulheres, suas mães, leva-nos a um questionamento: quais crianças e adolescentes são passíveis de serem salvos? Ou até quando essas crianças e adolescentes estarão salvaguardados por esse ímpeto salvacionista? Ao olharmos para a realidade nacional de constante humilhação, encarceramento e assassinato de jovens negros, por exemplo, fica nítido para quem o ímpeto salvacionista, de proteção e cuidado, vem sendo direcionados.
No caso de Conceição, apenas depois de cerca de dois meses, enfrentando as resistências dos outros dispositivos da rede intersetorial, sobretudo da própria Unidade de Acolhimento onde seu filho estava, é que foi possível fazer acontecer o primeiro encontro dela com seu filho. Resistências que se encontravam no caminho do medo, da suposta periculosidade e infantilização de Conceição, um medo revestido em uma linguagem e argumentos supostamente “técnicos, clínicos e burocráticos”. Tudo sempre“em nome do cuidado”. Um medo maquiado sob a alcunha de cuidado para Conceição e para seu filho. Talvez, aqui esteja uma nuance no caso da destituição pela loucura, que não é apenas em “nome da proteção da criança”, mas um afastamento “em nome do cuidado” com a mãe também. Cuidado este que aparece como tutela/controle do desejo e exercício da maternidade, um cuidado colonial, portanto.
Qual modelo de maternidade estamos convocando?
A destituição do poder familiar é regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especificamente em seu artigo 22, inciso III, que prevê a perda do poder familiar nos casos de violação dos direitos da criança, além da omissão dos genitores. A Vara da Infância e Juventude, em conjunto com o Conselho Tutelar, avalia e decide sobre essas medidas de proteção, que são consideradas excepcionais e devem priorizar a manutenção da criança em seu ambiente familiar, ou seja, junto às suas famílias. A destituição é indicada como uma medida excepcional e não considera que a pobreza ou diagnósticos psiquiátricos são motivos suficientes para a perda do poder familiar. Porém as práticas nos sistemas de justiça muitas vezes contradizem essa normativa. Uma série de pesquisas têm chamado atenção para o caráter histórico e estrutural dos casos de destituição sobre determinadas maternidades
A pesquisa em andamento de Tamara Vicaroni, do Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), mergulha na investigação de como os profissionais de saúde mental avaliam as possibilidades de maternagem e a destituição do poder familiar frente a diferentes experiências de loucura. As entrevistas, recentemente realizadas, revelam o peso dos julgamentos sobre a incapacidade de mulheres usuárias de saúde mental na decisão sobre a permanência das mães ao lado de seus filhos.
Isso nos leva a uma questão profunda: como se mede a capacidade de uma mãe para cuidar e permanecer com seu filho?
O diagnóstico psiquiátrico, combinado com pobreza, racismo e território, muitas vezes resulta na destituição do poder familiar, determinando quem pode e quem não pode ser mãe. A pergunta que escolhemos para abrir essa sessão carrega em si um grande desafio: como garantir que mulheres usuárias de saúde mental possam exercer a maternidade sem serem deslegitimadas? Se o cuidado com as crianças deveria ser responsabilidade de todos, por que se torna mais comum retirar filhos de suas mães do que oferecer políticas públicas que respeitem suas condições?
Por muito tempo, o Brasil segregou pessoas em manicômios, submetendo-as a condições desumanas sob o pretexto de cuidado. Hoje, apesar de avanços legais que proíbem essas práticas, ainda é um desafio garantir que o cuidado não seja justificativa para violar direitos. É essencial repensar modelos de exclusão e questionar a ideia de que certas pessoas precisam ser "corrigidas", promovendo uma sociedade verdadeiramente comprometida com a luta antimanicomial. Atualmente temos como exemplo as Comunidades Terapêuticas, uma reatualização constante de práticas manicomiais.
Nesses espaços as pessoas enfrentam a privação de autonomia, violências sexuais, medicação excessiva e até restrições de expressão, como a proibição do uso de roupas femininas para mulheres trans. Esses dados são ainda mais alarmantes quando percebemos que a maioria da população nesses espaços é composta por mulheres negras, reforçando uma dupla marginalização – de gênero e racial.
E mesmo com a existência de serviços substitutivos aos manicômios, como os CAPS, fundamentais para construir um novo lugar para a loucura e promover uma saúde mental que dialoga com a cidade e o território, ainda há desafios significativos. Nossas pesquisas recentes mostram que, em nome do cuidado e da redução de riscos, mulheres que desejam ser mães frequentemente têm seus desejos limitados pelo próprio Estado. Afinal, o que está sendo exigido dessas mães para que possam exercer suas maternidades de forma plena e digna? Qual mulher/mãe pode responder ao que se pede a essas mulheres como garantia da “maternidade boa, segura e responsável”?
A pesquisadora e professora Rachel Gouveia Passos, em seu artigo intitulado “Holocausto ou Navio Negreiro? Inquietações para a reforma psiquiátrica”, argumenta que as práticas manicomiais estão mais profundamente relacionadas ao colonialismo e ao sistema escravocrata do que ao holocausto. Rachel deixa claro que o objetivo não é comparar o grau de atrocidade ou violação de direitos humanos, mas evidenciar os fundamentos raciais que estruturam a realidade social brasileira e como esses fundamentos moldaram tanto as violências manicomiais quanto a própria instituição do manicômio.
A autora também aponta que, mesmo nos serviços substitutivos de saúde mental, a maioria das pessoas atendidas ainda é composta por pessoas negras, reforçando a permanência de desigualdades raciais nesse campo. Rachel nos lembra que a luta antimanicomial vai além da crítica ao espaço físico do manicômio, abrangendo uma oposição a saberes e práticas que perpetuam a exclusão como parte das políticas de saúde mental.
O cuidado, ao invés de ser um espaço de acolhimento, muitas vezes reforça narrativas de inadequação.
As mães diagnosticadas com transtornos mentais são colocadas em oposição aos seus filhos, vistos como inocentes a serem protegidos de suas “loucuras”. Assim, o cuidado e o trabalho reprodutivo são vistos como responsabilidade exclusiva das mulheres. Isso deixa mães vulneráveis, sem políticas públicas que garantam o cuidado com seus filhos. Ao mesmo tempo, exige-se delas "sanidade mental" e "capacidade" para cumprir seus papeis sociais, sem oferecer as condições necessárias para isso.
Desde a origem da Psiquiatria, mulheres foram tratadas como predispostas a desordens, reforçando a ideia de que, se fugissem de padrões esperados, seriam consideradas loucas, como demonstra a pesquisadora Melissa Oliveira em sua tese intitulada como “Mulheres e Reforma Psiquiátrica: experiências e agir político”. Essa visão, baseada em uma moralidade rígida sobre a maternidade, ignora as diferentes realidades sociais e culturais, tratando a maternidade sob um modelo único, excludente e neoliberal. A saúde mental, nesse cenário, torna-se um pretexto para a exclusão, ao invés de uma ferramenta de inclusão e suporte.
Romper com o paradigma manicomial significa enxergar os sujeitos da loucura como pessoas com desejos, possibilidades e perspectivas. O cuidado, mais do que um saber técnico, deve ser construído com base em um compromisso ético com a vida e a dignidade. É preciso abandonar a visão de que a loucura é uma sentença de afastamento da vida e construir caminhos que integrem essas mulheres à sociedade, permitindo-lhes cuidar e serem cuidadas. Isso implica repensar políticas públicas e formas de assistência que respeitem a complexidade de suas existências.
A pergunta “quem vai cuidar de quem precisa ser cuidada?”, não é apenas uma reflexão pessoal, mas uma provocação coletiva e política de nossas pesquisas. Ela nos desafia a reconstruir sistemas de justiça e saúde mental que rompam com as lógicas de exclusão e racismo. O cuidado deve ser uma responsabilidade compartilhada, que reconheça as necessidades de todas as mulheres, especialmente aquelas historicamente marginalizadas. Garantir isso não é apenas um ato de justiça, mas um passo essencial para construir uma sociedade que valorize a vida em todas as suas formas e possibilidades.
Quem vai pagar a conta?
Chegamos ao final desse texto revisitando um momento muito difícil e importante da história de Conceição: o dia em que ficou sabendo da perda da guarda de seu filho. Após muitos receios e hesitações da equipe sobre como comunicar a ela, o assistente social que a acompanhava banca contar para ela sobre a adoção de seu filho a partir do encaminhamento para a “família substituta” e a consequente “destituição do poder familiar”. Em meio a toda dificuldade do momento, Conceição para, tenta assimilar o que escutou e diz: “se é para felicidade dele e vontade de Deus, que seja”. Começa a chorar e continua: “se Deus quer assim, eu também quero”.
Como é para uma mãe enterrar um filho vivo? A imagem de Conceição após a destituição da sua maternidade é a imagem de fragmentos de seu corpo: o olhar perdido, o caminhar lentificado, as mãos constantemente trêmulas. Como aponta a pesquisa de Ueslei Solaterrar apresentada no início deste texto, ao apresentar e discutir a história de vida de Conceição, são histórias que apontam para os (des) encontros entre raça, maternidade e loucura, por um lado, e a destituição dos direitos e desejos de mulheres negras, pobres e loucas, por outro.
Afinal, toda política reprodutiva é racializada.
Quando, além de ser mulher, negra e pobre, essa mulher é lida socialmente como louca, temos outras camadas de questões a serem refletidas sobre a destituição. Entende-se que o enquadramento na "loucura" pode ser mais propício para a constituição da “vítima/doente” que pode reivindicar direitos e cuidado do que o enquadramento das drogas/crack/rua/cracuda, que costuma ser mais moralizante. Entretanto, ainda que por diferentes caminhos, o ponto de chegada tem sido o mesmo: a destituição da maternidade, o desfazer dos direitos e desejos dessas mulheres.
Somamo-nos a Mariana Carteado,Vládia Jucá, Adilane Barbosa, Brena Carvalho e diversas outras pesquisadoras do campo para reafirmar que o caminho e aposta escolhida aqui foi o de colocar em suspensão as diversas questões moralizantes sobre a capacidade dessas mulheres de serem mães, travestidas de preocupações técnicas e clínicas. Pegando outra rota, defende-se ser fundamental visibilizar as narrativas, história e experiências dessas mulheres/mães. Não deveria caber aos profissionais do campo da justiça, saúde ou assistência social decidir sobre a vida dessas mulheres quando ao direito e desejo à maternidade. Parte-se, portanto, da premissa ética apontada por Flávia Souza em sua tese: “somente é possível falarmos de maternidade quando a mãe está em primeira pessoa” (2020, p.114).
O sofrimento de Conceição após a destituição da sua maternidade não se tratava apenas do sofrimento gestado como transtorno mental e sofrimento psíquico, era o sofrimento produzido pela sociogênese, nos termos fanoniano. Um sofrimento que a fez habitar a “zona de quase-morte”, segundo Solaterrar. “O nosso adoecimento começa de uma forma lenta, dando sinais não muito claros e, quando percebemos, já estamos com depressão, síndrome do pânico, perda de memória”. Essas são as palavras de Mônica Cunha, mãe que perdeu um filho pela violência de Estado, idealizadora do Movimento Moleque e vereadora da cidade do Rio de Janeiro.
“Quem pagará a conta, quem catará os cacos dos corações? Quem vai apagar as recordações?”. São com essas frases que a cantora baiana Luedji Luna, na música “Cabô”, denuncia sobre o tema. Num contexto de destituição, há reparação possível? Se sim, como? Por quais caminhos?
A lógica manicolonial, nos termos do Emiliano David, não cansa de se reatualizar. A história de Conceição nos ensina, entre outras coisas, sobre a fundamental importância da confluência entre a luta antimanicomial e a justiça reprodutiva, no sentido de entender que o manicômio pode se expressar como uma lógica que censura, viola e destitui o direito de mulheres negras e loucas exercerem a maternidade por diferentes caminhos, inclusive ao fortalecer a lógica de feminilização e familiarização do cuidado na Reforma Psiquiátrica, como aponta a pesquisa de Vanessa Andrade, e na nossa sociedade, de uma forma mais geral.
Conceição causou bastante. Seja por seu gesto de fuga, de saída e recusa a permanecer no acolhimento noturno do CAPS, seja por sua hostilidade e posição ativa frente a equipe e instituições que a ameaçavam, por seus atos literais de quebrar a banca de drogas próximo a sua casa e confrontar o chefe do tráfico, por sua insistência para ir para casa, mesmo esta estando vazia, sem nenhum móvel e a equipe fortemente preocupada com a sua sobrevivência nesta casa e pelo luto que estava vivendo; enfim, por seus exercícios de atrevivência, suas estripulias, causações e rebeldias na tentativa, em princípio, de fazer valer o seu desejo/direito de ser mãe e, posteriormente, de seguir (sobre)vivendo.
Não por acaso, Conceição passou de mais um caso para uma causa para equipe do CAPS. Finalizar olhando para tais gestos e não para os sinais e sintomas da loucura, transtorno e patologia que poderia apresentar é uma forma de fazer um pouco de justiça a essa e tantas outras mulheres e suas histórias.
Há um provérbio africano que diz ser preciso uma aldeia para criar uma criança. Logo, que possamos engendrar arranjos de cuidado operados também a partir da tarefa de reparação. Que essa seja uma tarefa coletiva, um compromisso ético, político, clínico e estético de todes e de cada um, e não apenas para as mulheres/mães.
*Ueslei Solaterrar é doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Tem Residência em Saúde Mental (IPUB/UFRJ). Supervisor clínico-institucional da RAPS de Queimados-RJ e pesquisador da REMA.
**Tamara Vicaroni é psicóloga, mestranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social (UERJ) e pesquisadora da REMA.
***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse