Localizado à margem da BR-163, o distrito de Miritituba, no município de Itaituba (PA), é um ponto estratégico na rota da soja que sai do Mato Grosso com destino ao mercado externo.
Milhares de caminhões chegam ali todos os dias, para descarregar a mercadoria nas Estações de Transbordo de Carga (ETCs), grandes áreas compostas por pátios, silos e portos, instaladas na margem do rio Tapajós. Em Miritituba, essas estações têm capacidade para movimentar até 18 milhões de toneladas de grãos por ano.
No vai e vem da soja, os moradores do distrito ficam com os prejuízos, como acidentes causados pelos caminhões, poeira, poluição sonora e impactos ambientais. “Começa com um rasgo na floresta, na beira do rio, e depois você vê as estruturas sendo montadas”, conta a professora Ivaneide Lima, moradora do distrito, sobre a chegada dos portos que servem às empresas do agronegócio.
Miritituba foi organizada na década de 1970, como uma agrovila onde os moradores se dedicavam à agricultura familiar. Naquela região, não há plantação de soja, mas os impactos causados pela logística dos grãos estão presentes no cotidiano e podem ser percebidos nas águas, nas matas e nas ruas.
"Numa travessia de Miritituba para Itaituba, tu visualizava uns 20 a 30 botos. Atravessa hoje, vê se tu vê algum?”, desafia o corretor imobiliário Josenaldo de Castro.
Os cerca de 15 mil habitantes são obrigados a conviver com o intenso fluxo de carretas, que passam perto das casas, o barulho das embarcações e as mudanças no ambiente, que vão desde a perda de vegetação até as nuvens de fumaça levantadas pelos caminhões.
Tudo isso vem acompanhado do aumento populacional desordenado, sem que o distrito tenha estrutura para absorver os impactos. “De repente, uma vila de moradores, porque aqui era vila de Miritituba, vira distrito industrial para acomodar todo esse movimento”, diz Lima.
Quase 2 mil caminhões por dia
De acordo com a Associação dos Terminais Portuários e Estações de Transbordo de Cargas da Bacia Amazônia (Amport), os principais portos da hidrovia do Tapajós são o de Santarém, comandado pela empresa Cargill, e os terminais portuários de Miritituba, das empresas Unitapajós, resultado da união entre a Bunge e a Amaggi, duas gigantes do agronegócio; a Companhia Norte de Navegação e Portos (Cianport); a Cargill e a Hidrovias do Brasil S.A.
Diariamente, cerca de 1,8 mil caminhões saem de Sinop (MT) em direção aos portos do rio Tapajós. O complexo portuário instalado na hidrovia do Tapajós faz parte do Arco Norte, um corredor logístico que integra portos e estações de transbordo dos estados do Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Maranhão.
“Você percebe que Miritituba é coberta por uma nuvem de poeira produzida por esses caminhões. E isso afeta diretamente a saúde das pessoas. Tem muitas pessoas, crianças, idosos, com problemas de saúde provenientes dessa poeira”, relata o corretor de imóveis Josenaldo de Castro.
Em 2019, as ETCs das empresas Cianport, Unitapajós e Hidrovias do Brasil movimentaram, juntas, cerca de 8 milhões de toneladas de grãos, somando milho e soja. Em 2021, com o início das operações da ETC da Cargill, não houve uma alteração muito significativa na movimentação, que alcançou 8,3 milhões de toneladas. Contudo, em 2022, a movimentação de grãos das quatro ETCs fixas em operação em Miritituba alcançou 12,9 milhões de toneladas, ou seja, um aumento de 54,9% em relação a 2021.
Os moradores do distrito concordam que a chegada das empresas aumentou a oferta de emprego formal por lá. Mas enumeram prejuízos.
“De repente, muitos trabalhadores dentro da comunidade, a ponto que casas ficaram com aluguéis muito altos aqui dentro. O morador do distrito mesmo tinha dificuldade de pagar aluguel, porque de repente as casas estavam disponíveis para as empresas”, afirma a professora. O aumento populacional é um dos impactos apontados em uma ação civil pública protocolada em 2016 pelo Ministério Público do Pará, que aponta que a instalação de grandes projetos traz “consequências de outras naturezas, como, por exemplo, aumento populacional, aumento dos limites urbanos dos municípios (...)”.
Ponto de chegada e saída das balsas que fazem a travessia de Miritituba para Itaituba / Vitor Shimomura/Brasil de Fato
Na avaliação de Lima, o crescimento desordenado é responsável pelo visível aumento da violência. “Era uma comunidade que tinha, se tinha violência, não dava para ver. Hoje não tem como esconder”, diz.
No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, o município de Itaituba aparece em quatro lugar entre as maiores taxas de estupro de vulnerável do Brasil. Em 2023, o município apareceu em 15º na lista das 50 cidades mais violentas do país.
No verão, moradores sofrem com barulho e mau cheiro
Localizado em Miritituba, na região de um lago formado pelas águas do Tapajós, o bairro Jardim do Éden parece um lugar de descanso. Há casas sem muros ou portões, redes nas varandas e mangueiras nos quintais. Em um e outro ponto, placas dão o recado, escrito à mão: vende-se açaí.
Mas basta o lago encher com a chegada do inverno, estação chuvosa na região amazônica, e a tranquilidade dos moradores é interrompida pelas balsas de petróleo que atracam perto das casas. “Chega uma balsa, sai, chega outra. É 24 horas. O inverno todo, dia e noite”, reclama uma moradora, que pede para não ser identificada.
Além do barulho incessante, os moradores convivem com o cheiro de combustível que, segundo relatos, “é muito forte, parece que você espalhou gasolina pela casa”.
Em Miritituba, a BR-163 se encontra com a BR-230, conhecida como Transamazônica, em um entroncamento que atrai restaurantes à beira da estrada e postos de combustível, onde são abastecidas a diesel as carretas que transportam as mercadorias que circulam por essa rota. Por isso, o distrito integra também uma rota de transporte de combustíveis.
No lago do Jardim do Éden, funciona uma base de carrego e descarrego de petróleo para abastecimento dos postos da região. “Se vocês viessem no tempo do inverno, vocês iam ver o tamanho das manchas de óleo que ficam aí. Nem peixe tem mais”, lamenta a moradora à reportagem do Brasil de Fato.
Com o movimento das balsas, a água do lago ficou suja. Outro morador, que também pede que seu nome permaneça em sigilo, diz que os peixes estão com sabor de óleo. “Teve uma época que tinha peixe aí boiando, tudo morto”, lembra a moradora. “Quem tem dinheiro pode, né? Essa é a realidade do Brasil”, finaliza.
Desmatamento avança mesmo com monitoramento
Município com a maior área minerada do Brasil, Itaituba vive de ciclos econômicos baseados na exploração dos recursos naturais. A degradação ambiental levou o município a entrar, em 2017, na lista dos que mais desmatam a Amazônia, mecanismo de monitoramento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Mesmo sob monitoramento, o desmatamento no município não para de aumentar. De acordo com dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), Itaituba teve, entre agosto de 2023 a julho de 2024, a taxa de desmatamento 25% maior que a registrada no período anterior.
De Miritituba a Santarém, são cerca de 360 quilômetros, pela BR-163. Nesses dois municípios, as megaestruturas empenhadas na logística da soja deixam suas marcas. São notáveis os vazios de mata, abertos para receber os milhares de caminhões.
De acordo com dados do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre os anos de 2008 e 2022, a taxa anual de desmatamento nos municípios do trecho paraense da BR-163 aumentou 79%, atingindo 1.378 km². Os números são ainda mais impressionantes quando se trata de municípios conhecidos por serem grandes produtores de soja na região do Planalto Santareno, formado pelos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos.
Em Santarém, a taxa anual de desmatamento aumentou 172%, saltando de 600 hectares em 2013 para 1,6 mil hectares em 2021. Em Belterra, o desmatamento saiu de 70 hectares em 2013 para 1,6 mil hectares em 2021, o que representa aumento de 613%. O recorde, no entanto, fica com Mojuí dos Campos, onde a taxa anual de desmatamento saiu de 400 hectares, em 2013, para 6,1 mil hectares, em 2021, representando aumento de 1443%.
Soja sem limites, comunidade vem depois
No contexto do avanço da soja na região, as megaestruturas parecem não ter limites. Um levantamento da organização Terra de Direitos identificou 41 instalações portuárias, entre públicas e privadas, vinculadas às atividades do agronegócio, previstas, em fase de construção ou em operação nos municípios de Santarém, Rurópolis e Itaituba. Essas estruturas serão destinadas ao transporte de grãos, fertilizantes, combustíveis e materiais de construção.
"A gente identificou que tem 27 portos em operação no momento e que, desses 27, apenas cinco tem documentação completa do processo de licenciamento ambiental", ressalta Bruna Balbi, assessora jurídica popular da Terra de Direitos. Sem essa documentação, não há como garantir que os empreendimentos estejam operando sem causar danos ambientais e às comunidades tradicionais das áreas afetadas.
Os portos limitam o acesso a lugares que, antes, pertenciam a toda a comunidade e as barcaças se impõem no caminho das canoas e rabetas usadas pelos moradores da região.
Para completar as megaestruturas do agronegócio na região oeste do Pará, chega a proposta da construção da ferrovia EF 170, a Ferrogrão, que irá conectar Sinop (MT) a Miritituba. "Não estão contentes com a rodovia, agora vem a ferrovia. São 933 quilômetros rasgando a floresta”, alerta o padre e ativista social Ediberto Sena, morador de Santarém.
De acordo com o estudo do Inesc, a ferrovia foi incluída no Programa de Investimento em Logística (PIL) em 2015, após pressão das empresas Bunge, Amaggi, Cargill e Louis Dreyfus. “Tais empresas formaram, então, uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) – a empresa de estruturação de negócios Estação da Luz Participações (EDLP) – e apresentaram a Proposta de Manifestação de Interesse (PMI) para a construção do trecho ferroviário”, informa a pesquisa.
Atualmente em processo de análise das propostas de potenciais investidores e financiadores do projeto pelo Tribunal de Contas da União (TCU), a Ferrogrão irá afetar ao menos seis terras indígenas, onde vivem aproximadamente 2.600 pessoas, e 17 unidades de conservação.
Um levantamento realizado por 40 entidades da sociedade civil organizada indica que a instalação da ferrovia pode desmatar 2 mil quilômetros quadrados de floresta nativa, área equivalente ao Estado de São Paulo. “A soja tem um prazo, que lamentavelmente vai deixar para nós a desgraça”, conclui Sena.
Edição: Rodrigo Chagas