Leila Khaled é uma militante histórica pela libertação do povo palestino. Aos 80 anos, ela segue atuante, promovendo uma articulação internacional com organizações políticas, movimentos populares e governos para denunciar a violência israelense e ampliar a luta pela formação do Estado palestino.
A Venezuela é um dos lugares que mais ecoa essa luta. A defesa do povo palestino é, desde Hugo Chávez, um dos pilares da política exterior venezuelana. Na última semana de novembro, Khaled esteve em Caracas para participar da Conferência Internacional em Solidariedade com a Palestina. Ela recebeu o Brasil de Fato no hotel em que estava hospedada na capital do país. Em uma conversa de quase 1 hora, ela falou sobre a relação do socialismo com o processo de libertação da Palestina, o papel da mulher na luta armada e a relação da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) com outras nações.
Segundo Khaled, é necessário discutir uma formação política própria em cada Estado e que se adapte à realidade de cada país. Por isso a Frente Popular entende que o marxismo-leninismo é uma ferramenta importante, por ser um instrumento de ação que pode ser incorporado em qualquer território.
Khaled nasceu em Haifa, que era parte do Mandato Britânico da Palestina, mas teve que deixar sua casa depois da fundação de Israel em 1948. Ela então cresceu no campo de refugiados de Tiro, no Líbano. Logo aos 15 anos a jovem palestina inicia sua militância e vai ampliando sua participação na luta pela formação de um Estado palestino com o tempo.
A entrada na FPLP foi determinante para a linha política que Khaled adotaria até os dias de hoje. Como uma militante comunista, ela passou a se inspirar em lideranças como Fidel Castro, Lenin, Ho Chi Minh e Kim Il Sung. É responsável por fundar uma das células da Frente Popular no Kuwait e participou de operações militares no Oriente Médio, inclusive do sequestro de dois aviões, um da Trans World Airlines e outro da companhia aérea israelensse El Al.
Khaled vê dois desafios na participação da mulher na luta armada pela libertação da Palestina: da sociedade, porque a sociedade é machista e patriarcal, e também da ocupação israelense. Segundo ela, não há meio termo para a mulher nesse contexto: “se render ou lutar”.
Confira a entrevista completa de Leila Khaled ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato: Leila, quais são as adaptações necessárias do socialismo nas lutas de libertação da Palestina?
Leila Khaled: o povo palestino esta em diferentes paises e a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) está onde o povo palestino está. Há muitas pessoas na Palestina ocupada, Gaza, Cisjordânia, e outros no Líbano, Síria, Iraque e em outros países árabes. Nosso partido está nesses países e temos um programa político. E isso é parecido com outras organizações. Em alguns países não dizemos que somos da FPLP porque é uma organização proibida em alguns territórios. Por isso, falamos em comitês da Palestina democrática, ou fazemos uma união de delegações.
O programa político é o que dirige a política da Frente Popular. Mas a política de trabalho é diferente enquanto situação objetiva de cada país. Alguns países não aceitam uma organização militante, então trocamos os nomes. Mas não deixam de ser militantes da Frente Popular. Por isso, a missão de cada grupo de militantes em cada lugar é que eles desenhem e façam a linha de trabalho própria para eles adequada ao nosso programa político.
E aí entra a discussão em torno do socialismo. Em nosso programa cultural e educativo temos a teoria. Desde o começo adotamos o pensamento marxista-leninista. Mas no quinto congresso da Frente Popular, em 1993, colocamos o marxismo-leninismo não só como uma linha política, mas como um instrumento de trabalho. Como nós somos cidadãos de terceiro mundo, falar sobre o socialismo e o marxismo-leninismo tem que ser sob adaptações para cada território e condição objetiva.
O contexto de cada país é diferente em relação a outro país. Por isso, Lênin sempre dizia que a teoria é cinza, mas a realidade é verde. Aplicamos um socialismo diferente do nosso em cada país. Essas são experiências inclusive que adotamos de outros países. Nós, enquanto organização política, construímos alianças sobre a posição política em qualquer país. E a posição de um determinado país sobre a causa Palestina é o que determina a nossa posição em relação àquele país.
E como construir uma sociedade palestina que seja socialista em um contexto de avanço dos ataques israelenses e de aumento da violência em mais de 12 meses?
É um desafio, precisamos educar a nossa militância, formar sobre o socialismo ao mesmo tempo em que estamos em um processo de libertação nacional. Nós definimos o objetivo histórico de retornar a nossa terra para construir uma nova sociedade. Em um processo de libertação você rompe todos os tabus e paradigmas, do religioso ao político. Por isso nos interessa enfrentar a guerra e o genocídio sofrido pelo nosso povo. Levantamos a nossa consigna: temos o direito de retornar e de ser um povo que tenha a sua autodeterminação respeitada.
A articulação de organismos internacionais pode ajudar a pôr fim ao conflito?
É a primeira vez na história de Israel desde sua fundação que há uma decisão no sentido de responsabilizar os israelenses, como foi a decisão da Corte Penal Internacional de que Netanyahu é um criminosos de guerra assim como seu ministro de Defesa.
Mas Israel se considera acima da lei. Eles não se rendem pela via internacional porque é protegido pelo ocidente colonial e o imperialismo estadunidense. Pela primeira vez Israel na guerra contra Gaza pede proteção dos EUA, isso deu medo a Israel. Mas por causa dessa proteção, eles seguem.
A participação cada vez maior da China no tabuleiro geopolítico pode mudar isso?
Claro, hoje está o Brics, que é uma aliança econômica que deve se refletir em uma aliança política para enfrentar os imperialistas. Não através das armas, mas da economia. Acho que isso vai mudar e os EUA não vão seguir protegendo Israel, são países gigantes e potentes. Na história deles há revoluções e nós aprendemos com essas revoluções. Na Guerra Fria entre URSS e EUA, os Estados Unidos venceram e hoje o mundo está mudando. E deve mudar a favor do povo. E isso dá um ambiente positivo aos povos do mundo. Especificamente da América Latina, porque está próxima do imperialismo. Isso quer dizer que todos juntos podemos romper essa regra. Esse mundo não vai seguir sendo regido pelos Estados Unidos.
Você já citou diversas vezes a atuação imperialista dos Estados Unidos em diferentes lugares, principalmente sufocando lutas revolucionárias. Qual tem sido o papel dos Estados Unidos hoje no movimento de libertação da Palestina e nos movimentos revolucionários latinoamericanos?
Nós sempre apresentamos nossa experiência e os problemas particulares que enfrentamos, mas a América Latina começou a ter experiências revolucionárias há muito tempo e Cuba é o grande exemplo. E isso se reflete em uma reação do imperialismo. Cuba sofre sanções desde quando decidiu ter um processo revolucionário próprio e isso tem um efeito enorme sobre a política da América Latina. A revolução de [Salvador] Allende no Chile e a Venezuela também foram influenciados por Cuba. Os cubanos têm um papel importante para a política na América Latina.
Em muitos outros países houveram revoluções que fracassaram e isso porque os EUA e o movimento sionista penetram nessas sociedades e tem o papel de destruir as sociedades. Para que essas sociedades vejam os Estados Unidos como o “libertador”.
Como foi a sua relação com a Venezuela ao longo do tempo e com Chávez?
Chávez foi desde o começo um apoiador da causa palestina e anunciou isso publicamente na ONU em 2003. Isso criou uma relação entre venezuelanos e palestinos que ficou marcado e segue sendo um ponto de apoio importante. Eu o vi em 2005 no Brasil, quando fui no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Nos vimos também em outras cidades. Quando eu vim para Venezuela pela primeira vez, ele já estava se tratando do câncer.
Como as lutas políticas em outros países servem de referência para a luta de libertação da Palestina?
Nós estudamos os resultados de diferentes processos. Em qualquer processo de libertação nacional de um país, desde a revolução bolchevique, na China, no Vietnã, na Argélia, na África do Sul, é preciso educar os nossos militantes por meio das ideias. Nossa luta não é por alguns anos, é de uma geração a outra. Porque enfrentamos um inimigo comum: o movimento sionista, que tem Israel e o imperialismo estadunidense como governos. Esse é o campo dos inimigos. Nós entendemos de antemão que temos que nos sacrificar e dar a bandeira da libertação de geração em geração até libertar o território palestino e retornar a Palestina, expulsando os sionistas.
De forma pessoal e geral carregamos um pensamento científico e não é algo emocional sobre essa base. Sigo carregando essa responsabilidade quando vejo amigos no mundo. Muitos movimentos revolucionários e progressistas lutaram pela nossa causa. Desde a Europa até Tóquio e América Latina e isso dá mais esperança que vamos voltar à nossa terra.
Carlos Ilich Ramírez foi um militante venezuelano que desde cedo militou na luta do povo palestino. Patricio Argüello, nicaraguense, que virou mártir quando sequestraram um avião. Também temos militantes e companheiros e camaradas no Japão. Se foram a uma operação militar na Palestina ocupada e foram assassinados lá. Há muitos internacionalistas que lutaram conosco e essa não é a única forma de apoiar. Fomos a cursos de formação em vários países do mundo: China, URSS, países socialistas. E também recebemos educação universitária através de bolsas universitárias desses países. Então estamos rodeados de amigos no mundo e essas relações agora vemos com o que está acontecendo em Gaza, com todo o mundo expressando solidariedade com o povo palestino, incluindo nos Estados Unidos e Europa.
E ao mesmo tempo faz descobrir a verdadeira razão do conflito. Demonstrou a cara terrorista de Israel. Isso é o que nos dá fortaleza e motivação para seguir trabalhando.
Qual a importância da formação revolucionária e teórica para um militante e da militância para um teórico?
O conhecimento tem seu efeito nos homens e mulheres. Nós estamos vivendo em uma era de telecomunicações, por isso, a comunicação é mais fácil através da tecnologia. Nos comunicamos de maneira mais fácil e isso ajuda que vejamos que a vitória está mais próxima. Por isso, quanto mais conhecimento temos, mais fácil é o nosso processo de libertação.
Nós antes líamos livros, hoje está tudo na internet, no Google. Isso facilita que a militância saiba mais através da comunicação. Nós antes nos víamos nos fóruns e nas conferências internacionais. Hoje há muitos aplicativos que ajudam não só nos encontros por vídeo, mas na formação. Conhecer ou chegar à formação é mais fácil.
O povo palestino sofreu a Nakba em 1948 e saiu da Palestina. O contexto do povo palestino obrigou que o palestino enfrente o sionismo por meio da educação universitária e facilitou a entrada de homens e mulheres nas universidades. Nós temos só 8% de analfabetos porque ajudamos a que todas as pessoas sejam educadas e estudantes. Em comparação com outros países árabes, os palestinos são os que têm maior educação universitária e isso aumenta o número de intelectuais.
Por isso, muitos dos nossos estudantes e jovens vão estudar ciência política, filosofia, cultura para ajudar a distribuir e fazer pública a cultura da resistência.
Quais são os principais desafios para você enquanto mulher na luta armada? Há um contexto diferente dentro desse recorte de gênero?
Eu fui criada em uma família política. Eu nunca tive problema em relação a isso com minha família, mas a família sempre tem medo e preocupação. Mas esse não era um problema latente para mim. Outras mulheres tiveram dificuldade de entrar na militância por causa das famílias. E chegaram a um momento em que muitos pais obrigavam as mulheres a permanecerem nas casa, a não saírem de casa.
Com a evolução e o desenvolvimento do trabalho da militância, isso ajudou a mulher a se incorporar na militância, principalmente a partir de 1987. Foi ali a primeira Intifada e isso deu às mulheres a oportunidade de entrar em confronto direto com o sionismo. Por isso, a cara da primeira intifada foi a mulher estando na primeira linha defendendo os filhos. Muitas mulheres foram presas e seguem assim. O inimigo não imaginou que as mulheres palestinas participassem da Intifada. A mulher quando participa desse trabalho de militância organizativa e revolucionária está defendendo a sua família. A mulher nesse contexto de luta palestina sofre opressão dupla: da sociedade, porque a sociedade é machista e patriarcal, e também da ocupação israelense. Agora há muitas palestinas nas prisões de Israel.
Para a mulher há dois caminhos nesse cenário: se render ou lutar. A mulher sempre vai escolher defender sua família e assumir esse papel. Não vai levantar uma bandeira branca. Por isso eu não vivi uma opressão nem desafios nessa questão, mas é algo que está acima da diáspora, nós sofremos todos esses problemas de outra forma.
Como os movimentos populares palestinos discutem as questões particulares da vida de cada grupo?
Temos uniões populares, a união das mulheres palestinas e esse grupo adota o programa da resistência. Trabalhadores, camponeses, médicos, jornalistas, cada setor tem uma união. E isso dá apoio popular e quando Israel ataca o povo se junta à revolução para defendê-la. Hoje vemos um genocídio contra o nosso povo. E o mundo está estudando esse genocídio.
Os ataques israelense têm um impacto direto no uso da terra. Como se dá a disputa pela terra na Palestina?
Nosso problema é que os colonos estão ocupando a terra através do respaldo do grupo de Tel Aviv. Há uma decisão da Corte de Haia que diz que as colônias não são legais e agora dizem que pode haver um genocidio, mas infelizmente não se diz isso. Nós vimos esse problema nos anos 1990 porque a Intifada estava resistindo e a direção palestina firmou os acordos de Oslo e isso afetou ao movimento revolucionário palestino.
Você já foi para o Brasil e teve contato com movimentos de esquerda do país. Como você vê a organização política dos movimentos populares brasileiros que lutam para transformar a relação entre Estado, população e as terras?
O Brasil é gigante e teve muitas ditaduras que mudaram o sistema de governo. Por isso, a geografia tem um papel importante. No Brasil, o MST tem um papel importante para libertar as terras e dar aos povos. Na gestão anterior, Lula ajudou nesse processo em certa medida de uma forma ou outra. Na gestão de Lula, o MST teve um papel muito importante e começou a ter uma base social mais ampla porque essas terras foram apropriadas dos feudais.
E o MST conseguiu empurrar uma lei que determina que quem não faz um uso produtivo da terra não deve ter posse sobre ela. Mas as oligarquias brasileiras mataram dirigentes do MST e exerceram violência contra militantes. Muitos dos líderes do Movimento foram mortos pelo imperialismo por meio de grupos terroristas e fascistas do Brasil. Mas o MST segue até hoje. Hoje o MST é uma organização gigante porque tem um papel importante ao povo. Porque quando dá o que viver ao pobre e dá um trabalho, isso amplia a base social.
Nós estudamos a experiência do MST, mas isso não se pode aplicar na Palestina. A maioria do povo palestino está fora da Palestina. Em alguns países se diz reforma agrária, mas o que vocês fizeram não se limita à luta pela reforma agrária, mas as pessoas agora têm um futuro melhor e casas. E tudo isso foi feito por trabalhadores e camponeses, homens e mulheres. Isso nós vimos com nossos próprios olhos.
Edição: Rodrigo Durão Coelho