Religião e política

Ronilso Pacheco combate o eurocristianismo em teologia negra

Teólogo e pesquisador fala sobre dificuldade de esquerda falar com evangélicos e diz haver 'hostilidade e preconceito'

Ouça o áudio:

Ronilso Pacheco é teólogo e pesquisador - Foto: Brasil de Fato
Você tem uma parte da extrema direita no Brasil que está associada com o povo religioso

Teólogo pela PUC-Rio, pastor pela Comunidade Batista em São Gonçalo e mestre em religião e sociedade pelo Union Theological Seminary, da Universidade de Columbia, Ronilso Pacheco critica a visão "hegemônica e universal" sobre a Bíblia, que construiu um cristianismo branco.

A Lélia Gonzalez falava do euro cristianismo, que é muito associado com o colonialismo e a expansão marítima, que, de alguma forma, consolidou uma interpretação da Bíblia e de seus personagens, que inviabiliza a importância do povo negro e do continente africano… Então, a teologia negra surge nessa perspectiva, é o povo negro dizendo também o que dizer sobre Deus e a partir das escrituras”, explicou Pacheco, que é diretor do Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Para o teólogo, a falta de diálogo da esquerda com os evangélicos não pode ser explicada como um problema das eleições deste ano, mas como um “erro histórico” que precisa ser resolvido com a construção de outro olhar sobre esse setor da sociedade.

“Esse fenômeno tem vários fatores importantes, mas um deles, que não pode ser pensado como erro da eleição, é um erro longo histórico, de uma certa resistência, hostilidade e preconceito de uma parte significativa do campo progressista brasileiro, que é acadêmico e intelectual, com o lugar da religião, sua inserção na vida política e com os evangélicos em especial, mas com os pentecostais mais especialmente ainda”, finaliza Pacheco, convidado do BdF Entrevista desta semana.

Confira um trecho da entrevista e o programa completo em vídeo:

Brasil de Fato: Queria começar nossa conversa falando sobre a teologia negra. O que é afinal?

Teologia negra é pensada e construída a partir da experiência e da vivência do povo negro, da comunidade negra, a partir da experiência no continente africano que responde a essa ideia. É um certo enfrentamento a uma ideologia que se coloca como hegemônica e universal, que é obviamente uma teologia pensada a partir do continente europeu. Seja dos teólogos católicos ou protestantes. A Lélia Gonzalez falava do euro cristianismo, que é muito associado com o colonialismo e a expansão marítima, que, de alguma forma, consolidou uma interpretação da Bíblia e de seus personagens, que inviabiliza a importância do povo negro e do continente africano… Então, a teologia negra surge nessa perspectiva, é o povo negro dizendo também o que dizer sobre Deus e a partir das escrituras.

É uma tese absolutamente progressista, sendo defendida na academia, que é um ambiente majoritariamente progressista. Mas e dentro das igrejas, como ela é recebida?

No Brasil, é um movimento de algumas décadas, com muitas idas e vindas. Muita gente não conhece a teologia negra e uma das razões para não conhecer é que há uma resistência em parte das igrejas. Diferentes da experiência dos EUA, o Brasil não tem uma igreja negra, politicamente pensando. O Brasil tem pessoas negras nas igrejas, são a maioria. Para essas pessoas, não chega a ideia de uma teologia negra, então tem um acolhimento e um desconforto. Muitas lideranças acusam a teologia negra de dividir a igreja e reforçar a questão racial, tem igrejas que não querem nem ouvir falar, porque dizem que teologia “não tem cor”. Agora, tem um movimento interessante, com cada vez mais jovens se aproximando da teologia negra e se reconhecendo negro.

Nós saímos das eleições no país com o PT repensando seu lugar na política. Figuras públicas do partido têm discutido publicamente sobre a perda de base social do partido, especialmente nas periferias e igrejas. Por quê, em sua opinião, o PT e a esquerda, que eram correntes dominantes no catolicismo, não conseguem dialogar com evangélicos?

Esse fenômeno tem vários fatores importantes, mas um deles, que não pode ser pensado como erro da eleição, é um erro longo histórico, de uma certa resistência, hostilidade e preconceito de uma parte significativa do campo progressista brasileiro, que é acadêmico e intelectual, com o lugar da religião, sua inserção na vida política e com os evangélicos em especial, mas com os pentecostais mais especialmente ainda. Quando falamos de evangélicos na periferia, estamos falando dos pentecostais… A religião e o evangélico pentecostal entram no lugar de um certo exotismo, eu gosto muito da ilustração do olhar para a periferia, para os evangélicos, em especial, como pessoas com a cabeça vazia que poderia ser ocupada por quem chegar primeiro. Então, se a esquerda chegasse primeiro, levaria essas cabeças. Se a direita chegasse, como chega, levaria. E esse público? Ele não pensa nada.

Por outro lado, para não falar apenas das deficiências da esquerda no diálogo com a igreja, eu vi uma declaração interessante sua, dizendo que a “extrema direita usa a gramática religiosa para um projeto de radicalização”. Quais subterfúgios dessa gramática são tão acessíveis à extrema direita?

São duas frentes distintas. Você tem uma parte da extrema direita no Brasil que está associada com o povo religioso, católico e evangélico. Estamos falando dos evangélicos, mas sempre bom dizer que os católicos têm um papel importante nisso e passam quase sempre despercebidos. Você tem grandes lideranças que usaram suas igrejas como encubadoras de radicalização e fundamentalismo, com aproximação e colaboração muito forte com o governo Bolsonaro. O Iser fez uma pesquisa e descobriu que diminuiu o número de candidatos que usavam palavras “pastor” e “irmão”. No entanto, aumentou o número de candidatos que se apresentam fazendo questão de enfatizar que são tementes a Deus ou que são crentes, ou que elas acreditam em pátria, Deus e família. Então, começamos a perceber esse movimento de que, embora não seja diretamente religioso, ou não assuma uma conotação religiosa, a gramática religiosa é usada porque a religião tem uma capacidade de articulação importante. Então você não precisa estar ligado diretamente à igreja, mas sabendo usar os termos e os jargões, você comunica. O Pablo Marçal fazia questão de associar o projeto político dele ao reino. O jornalista pode não saber, mas os evangélicos sabem que quando ele fala “reino” está falando do reino de Deus.

Edição: Martina Medina