Nunca incomodou a você que o lobo mau só atuasse sozinho nas histórias infantis? Ele vai só comer cabritinhos, derrubar casas de porquinhos e emboscar uma menina de chapeuzinho vermelho por aí. Seriam os personagens malvados dos contos de ninar incapazes de manter um relacionamento sólido com um comparsa, nem que por puro oportunismo? Erradas estão as histórias. No mundo real, o lobo nunca é um solitário, e os terroristas atuam em alcateia. O ataque terrorista protagonizado por Francisco Wanderley Luiz em Brasília ajuda a elucidar aspectos de como o terrorismo funciona.
Sim, parece cômico. Um senhor de 59 anos, um perfeito calvo do Campari, vestido como o personagem Coringa, explode o próprio carro com fogos de artifício e morre vítima das bombas que ele jogou em uma estátua. Muitos brasileiros, hoje, acreditam em fake news, teorias conspiratórias que cultivam o ódio ao PT (e aos múltiplos tons de vermelho), algumas vezes com suporte de discursos religiosos. Entretanto, poucos sairão dos xingamentos na internet e passarão para os atentados armados. Mas essa não foi a primeira ação terrorista (ou tentativa de ação) motivada pela mesma cepa política. Casos vêm sendo tratados de maneira autônoma, e se avolumando antes ainda do 8 de janeiro. Em algum momento, mais cedo ou mais tarde, o cômico vai se transformar em trágico, muito trágico.
Basicamente, o terrorismo é o emprego da violência, ou ameaça do seu uso, a favor ou contrariamente a autoridades estabelecidas, com o objetivo não de fazer vítimas diretas (nesse caso, felizmente, apenas o terrorista faleceu), mas sim de atuar sobre aqueles que permanecem vivos, induzindo comportamentos em função do efeito psicológico (medo, ansiedade) da ação, não só entre as autoridades, mas também em outros potenciais terroristas. Nossas ideias sobre o assunto estão em texto conjunto com Héctor Saint-Pierre, publicado pela Piauí.
O ataque terrorista deixou a direita na defensiva. A antiga casa do responsável, em Santa Catarina, foi incendiada no final de semana, mas pouco se sabe sobre isso. Tentam emplacar o discurso do lobo solitário, um “homem de bem” com problemas psicológicos causados por um divórcio e pela quebra das suas empresas. O discurso é útil, pois limpa a barra do entorno que estimulou a ação, e da polícia, que não atuou a tempo de impedi-la. Diferentes agências monitoram o aumento de ameaças que indivíduos e instituições sofrem por meios digitais. Não é tarefa fácil: aumentam as ameaças em si e os meios através dos quais elas podem ser feitas. É difícil separar uma pessoa que faz postagens suspeitas de alguém que oferece um risco real. É difícil também atuar preventivamente. Uma boa oportunidade está no celular do terrorista morto, recuperado em bom estado (ao que se sabe) pelos agentes da PF.
Chico Teixeira, no Tutaméia, alerta que todo terrorista tem sua “rede social”. Pesquisas sobre ciberterrorismo, como as levadas a cabo por Marco Cepik, alertam que, desde os anos 2000, organizações classificadas pelos EUA como terroristas mantêm sites em funcionamento, e não na deep web, mas na internet comum. Sabe aquele grupo de zap da “turma da pelada” que se reúne nos finais de semana? Pois é… Um terrorista faz basicamente o mesmo uso da internet que um usuário comum, como: a) meio de acesso, divulgação e troca de informações; b) mecanismo de networking; c) mecanismo para trocas comerciais e financeiras, inclusive para captação de recursos; d) ferramenta para recrutamento e mobilização de novos membros; e) meio auxiliar para o planejamento e a coordenação de ações; e f) meio de guerra psicológica. Tudo isso de maneira barata e rápida, com ou sem se identificar, a depender do interesse da ação terrorista.
Lobos caçam em matilhas. Grupos pequenos e descentralizados, com manutenção de baixo custo, usando táticas de velocidade. Princípios da eficiente guerra assimétrica. O terrorismo se sobrepõe ao crime organizado em muitos aspectos, e motivações políticas podem ser combinadas a motivações financeiras. Não à toa o ataque ocorreu às vésperas do G20 no Rio de Janeiro, e logo após a eleição de Trump. Existe uma rede de sustentação financeira para o executor. Como ele se manteve em Brasília? Existe também uma rede de fornecimento de materiais controlados. Assistir a vídeos sobre como fazer uma bomba na internet é diferente de ter condições e acesso a compra de explosivos. Nesse sentido, o ataque ocorre em um momento muito diferente do ataque do Riocentro, com quem foi prontamente comparado por muitos. Naquele episódio, vivia-se a ascensão da luta de massas e a extrema direita estava encurralada. O ataque foi realizado por membros das Forças Armadas contra o próprio governo, também militar. Não é o que ocorre atualmente.
Os ministros Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e Simone Tebet (Planejamento) chamaram a atenção para um dos aspectos do problema, o contexto. “Há, sempre, um ‘apito’ a encorajá-los” (Tebet), apito esse que Xandão identifica como o Gabinete do Ódio. Em nosso entendimento, a chave é a impunidade. Os condenados do 8 de janeiro de 2023 seguem sendo os peixes pequenos, exatamente como a piaba-terrorista de Brasília na última semana. Os mentores intelectuais do golpe fracassado, assim como seus financiadores, seguem impunes. Não custa lembrar que alguns dos peixes grandes usam grandes estrelas nos ombros.
O governo parece não perceber que parte significativa da sua oposição é armada. A segurança de Brasília tem se mostrado continuamente falha, e o governo não só não fez mudanças significativas nessa área, como também não tomou iniciativas que permitissem, a médio prazo, a construção de uma correlação de forças melhor para a implementação das necessárias correções de rumo. Pautas de forte apelo popular e acerto estratégico, como taxação das grandes fortunas e fim da jornada 6×1, são disputas importantes na área econômica e trabalhista. Na segurança, o governo ensaia uma ação política em torno do uso das câmeras no fardamento policial. Na defesa, entretanto, necas. Mantém um ministro, José Múcio, que só sabe repetir o refrão da música de Zeca Baleiro: “coitado do lobo mau”. Sugere-se repensar: cuidado com o lobo mau. O terrorismo estava na boca dos brasileiros nos anos 60 e 70, quando foi adotado como tática por algumas organizações de esquerda, mas aplicado em massa pelo Estado. O filme “Ainda estou aqui”, lançado recentemente e dirigido por Walter Salles, trata de um dos aspectos desse terrorismo estatal: os desaparecidos políticos como tática e seus efeitos nas famílias sobreviventes, em longo prazo. O filme retrata a luta da família de Rubens Paiva, deputado cassado no imediato pós golpe de 1964, e preso em 1971, até hoje desaparecido, o único parlamentar que teve este destino. Trata também com muita sensibilidade o Alzheimer de Eunice Paiva, interpretada pelas Fernandas, mãe e filha. Os desaparecidos não estão aqui, mas seus fantasmas permanecem. Onde estão? Como estão? Segundo o FBSP, entre 2019 e 2021, 183 pessoas desapareceram por dia no Brasil, mais de 200 mil; a maioria é homem, jovem e negro. Também permanece entre nós aqueles que, no filme, são os coadjuvantes. O fascismo segue vivo, organizado, impune, e em expansão. Não à anistia dos bagrinhos, sim à condenação dos peixões.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.