Presidente do BC retoma tradição de tratar avanços para a base como prejuízo para trabalhador
Para surpresa de ninguém, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, declarou que o projeto que fulmina a escala de trabalho 6x1 é "bastante prejudicial" aos trabalhadores. Disse mais: "vai aumentar o custo do trabalho, vai aumentar a informalidade e vai diminuir a produtividade". Assim ensinou em evento do Instituto Líderes do Amanhã, em Vitória (ES) e, por certo, levou ao êxtase a plateia praticante da meritocracia pelo método consanguíneo.
A PEC da deputada Érika Hilton (Psol/SP) suplantou com muita folga as 171 adesões entre os deputados, número mínimo necessário para ser apresentada, e se aproximava na segunda-feira (18) das 250 assinaturas.
Campos Neto ainda aproveitou a deixa para enaltecer a reforma trabalhista expelida pelo governo Temer, raciocinando que a redução de direitos trabalhistas "melhorou a situação do emprego no Brasil".
Ele retoma uma antiga tradição que habita o topo da cadeia alimentar da sociedade brasileira, a de alegar que favores à turma do rodapé da pirâmide social significam, na verdade, prejuízos à plebe rude. Não é portanto um inovador nesse quesito. Apenas um caudatário dos princípios que perpassam o século 19, onde colhe as suas melhores ideias e busca inspiração para implantar novidades. Querem ver um exemplo? Passo a palavra ao senador e ex-ministro João Maurício Wanderley:
"Afianço que a crise será medonha; escaparão do naufrágio muitos, uns que já estão munidos de salva-vidas; outros que, no meio do naufrágio, apanharem alguma tábua, em que se salvem; outros, finalmente, que lucrarão, quando o navio vier dar à costa. Mas a crise será grande."
Arauto desse fim de mundo, Wanderley era uma das sumidades do Império do Brasil através do seu título de nobreza: Barão de Cotegipe. Homem rico, dono de fazendas e escravaria, o barão chiava contra a abolição. Em 1888, da tribuna do Senado, advertia com a mesma contundência de Campos Neto entre os jovens líderes do pretérito amanhã:
"Ninguém acreditará, no futuro, que se realizasse com tanta precipitação e tão poucos escrúpulos a transformação que vai aparecer. A propriedade sobre o escravo, como sobre os objetos inanimados, é uma criação do direito civil."
Há outras pérolas nos anais do Senado. Colega de Cotegipe no Partido Conservador, Paulino de Sousa informava que a proposta a ser votada era "inconstitucional, antieconômica e desumana".
A parte do "desumano" é a mais saborosa. Seu argumento é que a Lei Áurea deixaria "expostos à miséria e à morte os inválidos, os enfermos, os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger” já que os supostamente favorecidos “não contariam mais com a proteção do seu senhor".
Quer dizer, a agonia do também fazendeiro e escravocrata não era o adeus à mão-de-obra cativa mas as dificuldades pelas quais passariam os libertos. Melhor ficariam, portanto, se mantivessem seus grilhões.
Vocês, que nem eu, não sentem aí o filão de onde Campos Neto extrai suas pepitas?
Deputado e depois senador, Pereira da Silva, da mesma sigla, profetizava uma catástrofe caso passasse a Lei do Ventre Livre que estabelecia que os nascituros das escravas não seriam mais servos. "Vossa proposta é fatalíssima, é o facho talvez do grande incêndio. Prevejo calamidades inauditas, crises medonhas, se a proposta for convertida em lei", bradava.
Seu confrade mais famoso, o romancista e senador José de Alencar, não deixava por menos: "Senhores, não defendo aqui unicamente os interesses das classes proprietárias; defendo sobretudo essa raça infeliz, que se quer sacrificar".
No raciocínio do autor de Iracema, a infelicidade não seria o cativeiro mas a liberdade. Pretextava aflição diante dos riscos a que o escravo estaria sujeito na condição de livre, definindo a medida como bárbara e pior do que a própria servidão. Vejamos sua justificativa ao fustigar a Lei do Ventre Livre:
"Quando a lei do meu país houver falado essa linguagem ímpia, o filho será para o pai a imagem de uma iniquidade; o pai será para o filho o ferrete da ignomínia; transformareis a família em um antro de discórdia; criareis um aleijão moral, extirpando do coração da escrava esta fibra, que palpita até no coração do bruto, o amor materno!"
Em outros e menos rebuscados termos, Alencar atormentava-se com a semeadura da desavença no seio da família opondo pai e mãe cativos contra a prole libertada.
O jurista Perdigão Malheiro entendia que a escravidão era uma infâmia contudo constatar era uma coisa e mudar a realidade era outra. Violar o direito dos escravistas, a sua visão, seria uma "ofensa à propriedade".
Já o Visconde de Cairu, tateando os muitos espinhos do tema, propunha terceirizá-lo para o Todo Poderoso. "Contra o mal da escravaria no Brasil não cabe no engenho humano achar remédio. Para provimento de remédio a tamanho mal só nos pode valer a Divina Providência", pontificou.
Mas voltemos a Cotegipe. Para sermos justos é preciso reconhecer que, em 1885, o barão aprovou a Lei dos Sexagenários. Pela nova regra, ao completar 60 anos, o escravo seria alforriado.
Porém, para a legislação ser aprovada, Cotegipe inseriu-lhe uma emenda perante a qual os sexagenários deveriam trabalhar mais três anos para seu antigo proprietário como uma espécie de indenização. Detalhe: no Brasil imperial a expectativa de vida de um escravo era de 25 anos.
Do mesmo modo que Cotegipe, Paulino de Sousa, José de Alencar e os demais, Campos Neto frequenta a cobertura do edifício Brasil. Daquelas alturas, olha muito mais para seu entorno, para os convivas da sua festa infinita, do que para o desolador e miserável panorama que se descortina aos seus pés. Lá, os invisíveis em invisíveis bicicletas e motos se movem como máquinas à cata de migalhas seis vezes por semana até que a doença ou a morte os alcancem.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O Pais da Suruba" (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires