a embriaguez, a aposta e a torcida são maneiras de ser e estar no mundo
Por Bruno Vieira Borges* e Gabriel Yukio**
O antropólogo Roberto DaMatta certa vez recuperou um ditado popular que afirma que entre nós brasileiros existem somente três coisas sérias: a cachaça, o jogo do bicho e o futebol. Apesar de todo caráter mitológico dessa afirmação, não nos parece trivial que seja a tentativa de domesticar o imponderável o núcleo que aglutina esses três elementos.
Da aguardente de cana-de-açúcar faz-se a famosa caipirinha, bebida cuja força etílica é amansada pela doçura do açúcar e, ao mesmo tempo, atiçada pelo cítrico do limão. Esta combinação é gostosa ao passo que perigosa, pois seu teor alcoólico é elevado, embora não pareça. Como mostra a ilusão ironizada por Pinduca, o rei do carimbó: "Vamos farrear / A cachaça é gostosa / Ninguém vai se embriagar". Até que se embriagou.
Do jogo do bicho temos uma rede de pessoas que creem que os sonhos veiculam sinais para a escolha de códigos a serem lançados em apostas. Isso se deve à prática milenar de encontrar na esfera dos sonhos presságios de sorte ou azar. Ao longo da história do jogo do bicho, foram, inclusive, sendo criadas "tabelas de sonhos" com o intuito de sistematizar elementos comuns a eles e traduzi-los em números ou animais. Algo que deixaria Freud, pai da psicanálise e entusiasta dos significados dos sonhos, de queixo caído.
Do futebol, os torcedores são, por excelência, especuladores. Querem ansiosos saber do resultado, mas é a inexistência de uma pré-definição para este que motoriza sua experiência. Ao contrário de uma peça tradicional de teatro, o futebol não possui um roteiro dado, embora seus acontecimentos derivem de um sistema específico de regras.
A embriaguez, a aposta e a torcida são maneiras de ser e estar no mundo que traçam a linha tênue que vai do gozo à impotência. Estar bêbado pode ser um trunfo de sociabilidade, mas também um convite para o afogar as mágoas. Lançar-se a uma aposta pode trazer louros em forma de dinheiro, ou mesmo de honra, mas também perdas financeiras e frustrações agudas. Ser torcedor, por fim, é viver numa montanha-russa: é transitar com alguma periodicidade entre o ápice da vitória e a ruína da derrota. Três casos, portanto, de imponderáveis que buscamos domar ou apreender.
Quando olhamos para a formação do público esportivo no Brasil, notamos que a relação entre a expectativa da resolução do jogo e o ímpeto de apostar em qual será seu desfecho é embrionária. O historiador Victor Andrade de Melo afirma que o turfe – uma modalidade de corrida de cavalo – foi o primeiro a consolidar, no país, espectadores ativos e assíduos. Entre o fim do século XIX e o começo do século XX, o turfe constituiu-se como um dos principais acontecimentos da sociabilidade aristocrática carioca, alinhando a tradição do estilo rural à modernidade do ambiente urbano emergente.
São vários escritos jornalísticos que relatam a existência de conflitos e práticas ilegais em torno do turfe (subornos de árbitros, brigas nos prados e nas arquibancadas, arranjos de resultados). Tudo isso constantemente mediado pelas apostas, que davam sentido a esse esporte a partir da criação de uma identidade pontual entre espectador e a dupla cavalo/jóquei em que apostava.
O futebol, diferentemente do turfe, não criou conexões com as apostas de imediato, mesmo tendo dado seus primeiros passos no mesmo período. Desde cedo, o futebol trouxe uma novidade para os termos da vinculação: a identidade clubística. O fato de ser um esporte coletivo fez de suas rivalidades um captador de outras várias diferenciações coletivas possíveis – entre bairros, ruas, classes, grupos, etc. O ganho coletivo tornava-se mais importante do que o ganho individual. Era a figura do apostador sendo substituída pela figura do torcedor.
Entre as três primeiras décadas do século XX, o debate envolvendo o amadorismo mostra como havia um repúdio à ideia de se ganhar dinheiro com o futebol. Nessa discussão, clubes tanto de elite quanto populares hesitavam em profissionalizar seus jogadores com o pagamento de salários, mesmo que isso já acontecesse de forma mascarada mediante a oferta do bicho. Era uma prática que, segundo o pensamento da época, tirava a pureza e o prazer de viver o esporte. Por outra entrada, as apostas eram vistas como esse elemento do dinheiro, que corrompia a paixão de se acompanhar o futebol e os clubes.
Isso foi sendo alterado com o tempo. A despeito da proibição dos jogos de azar pelo presidente Dutra em 1946, com a finalidade de "moralizar a sociedade", ocorreu, durante os Anos de Chumbo, a criação da Loteria Esportiva. Ela envolvia apostas em jogos do Campeonato Brasileiro e dos campeonatos regionais, o que, aliás, ajudava a divulgar clubes de menor expressão. Grandes setores da imprensa nacional trabalharam para amplificar essa prática, trazendo periodicamente seus resultados e até mesmo orientações acerca de quais seriam as apostas mais seguras.
A Loteria Esportiva, em 1974, movimentou 20,8 bilhões de cruzeiros (487 milhões de cartões vendidos). Sim, a paixão torcedora podia ser bastante lucrativa. E a impressão que fica é que, à medida que o futebol se profissionalizou e a presença do dinheiro ficou cada vez mais explícita em seu meio, as apostas também ganharam força e os julgamentos morais ficaram em segundo plano.
A oposição, aparentemente intransponível no início do século, entre torcedores e apostadores, começava a ser ultrapassada, com os dois opostos convivendo muito bem. A excitação causada pela aposta pode ser explicada, talvez, pelo fato de ela permitir a criação de um jogo dentro do jogo. Certamente, as rivalidades não deixaram de existir, mas, de lá para cá, passamos a conviver com torcedores que apostam até em triunfos do time rival.
As bets, novo modelo de negócio do assunto antigo da aposta, estão levantando uma série de questionamentos sobre as aproximações entre, por exemplo, o conhecimento esportivo e o funcionamento do mercado de ações. Trataremos especificamente das bets atuais na próxima coluna assinada por Bruno Vieira Borges e sua rede de colaboradores do Observatório do Lazer e do Esporte.
* Bruno Vieira Borges é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz mestrado em Sociologia. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ) e ao Mobilidades: Teorias Temas e Métodos (MTTM)
** Gabriel Yukio Shinoda é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz mestrado na mesma área. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ) e ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS)
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nicolau Soares