“Nosso assentamento é grande, tem muita produção orgânica, produção agroecológica, tem muita natureza. Quando a gente sofreu uma deriva [desvio da trajetória de partículas de um defensivo agrícola durante a pulverização] quatro anos atrás, foi muito triste. Muito difícil enfrentar esse gigante que são os venenos, a aviação agrícola”, desabafa o agricultor Pepe, assentado no município de Nova Santa Rita (RS).
Ao Brasil de Fato RS, o assentado externa a preocupação da comunidade com a possibilidade da aprovação do Projeto de Lei 442/23, de autoria do deputado estadual Marcus Vinícius de Almeida (PP) e mais 23 parlamentares. O projeto que declara a aviação agrícola como atividade de interesse social, público e econômico no estado foi aprovado, no dia 31 de outubro, por 8 votos a 1, pela Comissão de Agricultura, Pesca e Cooperativismo da Assembleia Legislativa. Previsto para ser votado no Plenário nesta terça-feira (12), o PL foi tirado da pauta, aguardando nova data.
Além de Pepe, outras famílias demonstram receio em relação à situação, uma vez que no dia 23 de outubro, outro caso de pulverização aconteceu em uma fazenda próxima ao Assentamento Santa Rita de Cássia II. Em nota, o grupo ressalta que desde 2020 sofre com "o tormento e o sentimento de insegurança, a situação de vulnerabilidade, instabilidade que o fato significa para quem foi atingido em reiteradas oportunidades pela deriva de agrotóxicos resultado da pulverização aérea".
No caso recente, expõe a nota, a pulverização teve início às 10h e seguiu até as 18h. Conforme o relato, o produto teria deixado um cheiro forte e desagradável no ar durante o dia todo. O vento soprava em direção ao assentamento em torno de 25 km/h (Leia a nota completa no final da matéria).
O que diz o PL
Na justificativa do projeto criticado pelos assentados, o parlamentar afirma que a tecnologia é fundamental para diversas culturas. O texto pontua que, no Rio Grande do Sul, 70% do arroz depende da aviação agrícola, a soja 50% de sua aplicação, e que o mesmo percentual no milho também têm sua produtividade garantida pela ferramenta aérea.
“O controle inadequado de pragas gera queda média de produtividade de 30%, com a perda de milhões de toneladas de soja e prejuízo de R$ 26 bilhões. O impacto social com as reduções na produção de soja, impactam em uma grande cadeia que gera 5 milhões de postos de trabalho e proporcional na redução do PIB e da arrecadação”, expõe.
Ainda de acordo com a justificativa, no Brasil, a perda de alimentos é estimada em 26,3 milhões de toneladas, com aproximadamente 18% desse total se perdendo ainda no campo, devido à falta de conhecimento e aporte tecnológico para um manejo adequado, principalmente naqueles envolvidos no controle de pestes e pragas.
O texto defende a valorização do setor no Rio Grande do Sul. Afirma que o estado conta com 419 aviões agrícolas, a segunda maior frota do Brasil, e que 90% pertencem a 71 empresas aero agrícolas. Os outros 10% da frota são de 49 operadores privados, produtores ou cooperativas que têm suas próprias aeronaves.
Em nome da agroecologia
Pepe (nome fictício), que pediu para não ser identificado por temer retaliações, afirma que há uma disputa permanente do ponto de vista socioambiental e socioterritorial. “Nas pequenas propriedades a gente produz alimentos agroecológicos, mas do outro lado está cercado de monoculturas que usam agrotóxico de forma intensiva, maquinário pesado, que destrói tudo. Se a gente não lutar e não defender esse direito nosso, que é um direito fundamental, a gente vai ser destruído também”.
Ao elencar os prejuízos da deriva, o assentado destaca a questão da saúde, onde se observa, de acordo com ele, uma população cada vez mais doente. “Muitas das doenças são derivadas do uso de agrotóxico na agricultura. Mas também na água que as pessoas consomem nos grandes centros urbanos, porque quando se usa um veneno, um agrotóxico numa lavoura, parte vai para os rios, para o ar, e depois chega na torneira".
Para Pepe, a crise ambiental e suas consequências, como secas, enchentes, queimadas e o aquecimento anormal do planeta, estão relacionadas à prática utilizada pelo agronegócio. “A gente não está disputando com eles quem vai produzir mais, quem vai produzir menos. Nós estamos disputando o direito de ter uma vida digna sem tanta queimada, com o ar mais limpo, com água não envenenada, com alimento limpo. Nossa disputa é por uma vida saudável que a sociedade deve ter.”
Na justificativa do projeto, o deputado Marcus Vinícius também faz alusão a questão ambiental. “Atualmente as questões climáticas como o El Niño, que em setembro de 2023 nos mostrou uma capacidade enorme de destruição no Vale do Taquari e outras regiões do estado, indica que teremos meses de muita chuva nos quais os produtores rurais não terão condições de colocar máquinas na lavoura para prevenir ou tratar pragas, que têm no tempo úmido o ambiente ideal para sua proliferação. E, se não tratadas imediatamente, podem determinar perdas catastróficas para a economia e a segurança alimentar do Rio Grande do Sul”.
Na avaliação de Pepe, propostas como a desse PL, que quer regulamentar o uso da aviação agrícola, vão contra os princípios das comunidades. Conforme enfatiza, o que o projeto faz é jogar mais veneno no solo, no ar, nas águas, produzir menos comida e produzir commodities para exportação. “Como atingidos pela deriva de agrotóxicos exigimos que quem comete esses crimes pague por eles. O território é a arena principal de disputa. É o momento de repudiar essa prática, que coloca em risco, diariamente, milhares de pessoas e comunidades pelo Brasil todo, assim como a nossa, há quatro anos.”
Violações
Professor de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e advogado popular da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Emiliano Maldonado aponta inconstitucionalidades no PL. Em sua avaliação, as ilegalidades se tornam evidentes pela violação do princípio da proibição de retrocesso em matéria ambiental, ao fragilizar a proteção do meio ambiente em favorecimento de interesses econômicos do agronegócio.
“Em especial por desvirtuar o conceito de interesse social, tendo em vista que a aviação agrícola tem se caracterizado nos últimos períodos por uma das metodologias que mais viola direitos e que contamina a produção agroecológica do nosso estado. Nós temos inúmeros casos de derivas de agrotóxicos aqui no estado provocadas por esse tipo de prática”, pontua.
Neste contexto, o advogado pontua que o PL vai na contramão do reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou constitucional a lei Zé Maria do Tomé, do estado do Ceará. “Apontando a insegurança que esse tipo de prática gera e os riscos decorrentes da pulverização aérea de substâncias altamente tóxicas para o uso aeroagrícola”, explica.
Conforme prossegue Maldonado, o projeto é inconstitucional porque fere esse princípio de vedação de retrocesso em matéria ambiental. Assim como por desvirtuar o conceito de relevante interesse social a fim de gerar simbolicamente uma defesa dessa atividade que deveria ser abandonada no RS, "tendo em vista que hoje já existem outros tipos de técnicas que não contaminam tanto o nosso ar, a água, o solo e que não geram os problemas decorrentes da deriva".
Parlamento na contramão
O advogado recorda que, em novembro de 2020, vários agricultores agroecológicos dos assentamentos da reforma agrária aqui da região Metropolitana sofreram pela contaminação e pela deriva de agrotóxicos. “É muito grave que passados quatro anos dos principais episódios de contaminação provocados por esse tipo de prática, a Assembleia Legislativa vai colocar em votação um PL desse tipo”.
Para ele, o projeto desvirtua o que a Assembleia Legislativa deveria fazer, que é "proteger o meio ambiente, a saúde, os produtores agrícolas que produzem alimentos sem veneno para alimentar nossas feiras, para alimentar o PAA, para alimentar toda a população do Rio Grande do Sul".
Por fim, Maldonado ressalta que as famílias atingidas pela deriva de 2020 continuam na luta por justiça e proteção da sua produção agroecológica. O advogado também ressalta que a liminar que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos no entorno dos assentamentos tem sido de fundamental importância.
“Dessa forma se permite e se protege tanto a saúde, a natureza e a produção dos agricultores que abastece 37 feiras aqui na região, que faz parte da cadeia do arroz agroecológico da região Metropolitana. E que passado todos esses anos é fundamental que os responsáveis por essa pulverização sejam condenados e que as famílias recebam as indenizações que elas têm direito pelas perdas que tiveram e pelos danos materiais e morais que sofreram”, finaliza.
Outro projeto quer proibir pulverização
Em junho de 2023 o deputado Adão Pretto (PT) protocolou na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul um Projeto de Proposição Legislativa (PPL) que visa proibir a pulverização realizada por aeronaves e drones, em todo o território gaúcho.
"Eu não tenho dúvida de que a aviação agrícola é importante. Sou entusiasta de novas tecnologias, como drones, que permitem aumentar a produção e facilitam a vida dos agricultores e agricultoras. O ponto com o qual sou contra refere-se aos agrotóxicos, que, quando utilizados em excesso, espalham veneno nos alimentos e nas comunidades ao redor das plantações. Preocupa-me a saúde da população e o aumento de doenças, submetidas à pulverização de agrotóxicos. É comprovado que 70% do veneno aplicado é levado pelo vento e não cai na lavoura. Na Europa, essa prática é proibida desde 2009 e é chamada de chuva de veneno", afirma o parlamentar ao Brasil de Fato RS.
Para Pepe, comunidades como a dele precisam, além de incentivo público para a produção de alimento limpo, incentivo na educação e na saúde, para que sejam criadas outras formas de cultura que não do "agrotécnico, do agrotudo". Para ele, o enfrentamento se dará com a vigilância popular das comunidades e o incentivo público para práticas produtivas que cuidam do ambiente e produzam alimentos saudáveis.
"Tudo que o sistema quer é que a gente fique sozinho. Quando não consegue nos isolar politicamente, assediam, ameaçam e, por último, a gente fica com a vida valendo bem pouquinho pro sistema”, conclui.
Nota da família do assentamento
Reiteramos denúncia de pulverização aérea, acontecida no dia 23 de outubro de 2024, quarta-feira, em fazenda vizinha ao Assentamento Santa Rita de Cássia II em Nova Santa Rita- RS.
A mesma começou em horário das 10h e continuou até próxima às 18h; Tendo um cheiro forte de fedor no ar durante o dia todo. Sendo que após o meio dia a temperatura já superva os 30º, o vento soprava em direção ao assentamento em torno de 25 km/HS, no qual podia se escutar e observar o avião fazendo retorno dentro da área do assentamento, por cima de áreas de moradia, áreas de preservação permanente, etc.
Ressaltamos que desde 2020 viemos sofrendo o tormento e o sentimento de insegurança, a situação de vulnerabilidade, instabilidade que o fato significa para quem foi atingido em reiteradas oportunidades pela deriva de agrotóxicos resultado da pulverização aérea de agrotóxicos. Tendo em conta que fomos vítimas de intoxicação, além de perder quase todos os cultivos, saúde, renda, etc. Sendo que existem registros de denúncias de outras famílias em anos anteriores, e até agora não existem ações da justiça além de recomendações ou fiscalização que não é efetuada de maneira eficaz, tanto como medidas concretas que nos deem segurança como ressarcimento nenhum das perdas.
Por outra parte, não existe fiscalização adequada dos organismos competentes estadual e federal, tendo em conta inumeráveis vezes as pulverizações acontecem em dias e horários inapropriados.
O outro fato de denúncia, é sobre descumprimento da legislação para pulverização aérea e voos rasantes sobre áreas povoadas, de moradia que não condiz com regulamentação da ANAC.
Razão pela qual ficamos no aguardo de medidas que sejam realmente eficazes e que garantem o direito da população a saúde e a um ambiente saudável.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira