Rio de Janeiro

Coluna

Neste 20 de novembro, como combater o racismo obstétrico à brasileira?

 A violência obstétrica que mulheres negras e racializadas enfrentam têm consequências que se alongam no tempo
A violência obstétrica que mulheres negras e racializadas enfrentam têm consequências que se alongam no tempo - Foto: Renata Caldeira / Ponte
É necessário reforçar a abordagem de educação em saúde, que integre o combate às discriminações

Janaína Teresa Gentili F. de Araújo*, Giorgia Carolina do Nascimento** e Mariah Torres Aleixo***

É possível dizer que a ideologia racial dominante no Brasil é constituída de dois elementos: o mito da democracia racial e a supremacia da branquitude. O primeiro destaca que, apesar de uma alegada “harmonia” racial supostamente vinda com a miscigenação, no Brasil há sim muita violência e racismo contra pessoas reconhecidas como negras ou não brancas. O segundo elemento hierarquiza as pessoas de acordo com sua pertença racial, percebida pelo fenótipo; em que as pessoas entendidas como brancas estão no topo do acesso a direitos e bens materiais. 

Como o racismo atravessa toda sociedade brasileira, não é possível falar de desigualdade sem abordá-lo, inclusive na saúde. De igual forma, combater as violações de direitos no cenário obstétrico, vivenciadas por mulheres nos sistemas de saúde, envolve o entendimento – e o enfrentamento – ao racismo obstétrico. 

Leia também: “Um erro assim foi fatal, né?”: morte materna evitável, racismo e violência obstétrica no Brasil

Recuando um pouco no tempo, é importante considerar uma certa genealogia da resistência antirracista no país. O dia Nacional da Consciência Negra, tornado feriado nacional por força da Lei Federal nº 14.759/2023, foi concebido em 1971 pelos movimentos sociais com a finalidade de combater a discriminação através de ações que oportunizassem “a tomada de consciência da comunidade negra sobre seu valor e sua contribuição ao país”. A ideia foi do poeta gaúcho Oliveira Silveira (1941 - 2009), um dos fundadores do Grupo Palmares e foi apresentada pelo Movimento Negro Unificado em oposição ao dia 13 de maio (dia da abolição do regime escravista). 

Após 53 anos, esse é o primeiro em que o dia 20 de novembro, data do possível assassinato de Zumbi dos Palmares, será feriado nacional, reforçando a finalidade de refletirmos sobre os efeitos do processo colonizador com o sequestro de pessoas africanas, submetidas à métodos de tortura, estupros, desumanização, destruição de documentos, separação forçada de famílias, aniquilação e demonização de sua cultura, contabilizando mais de três séculos de escravização sem que houvesse qualquer forma de reparação do período de tráfico ilegal de pessoas negras africanas pós dita abolição.

Assim, como forma de considerarmos o lugar que a população negra possui em nossa sociedade, associado ao princípio da equidade, questionamos: quais os efeitos da colonialidade e da ideologia da supremacia racial no ambiente obstétrico? Para tanto, iniciamos o texto pontuando de que modo o status de humanidade foi historicamente negado às populações negras.  Longe de encerrar em uma resposta à questão, neste Dia da Consciência Negra, convidamos à reflexão sobre os direitos reprodutivos das mulheres negras no Brasil.  Relembramos que, no cenário brasileiro, o direito à autonomia, ao cuidado, à escolha informada durante o parto e ao respeito, que são os pilares da humanização do parto, ainda são frequentemente inacessíveis a essas mulheres. 

Racismo obstétrico no Brasil

A antropóloga e doula estadunidense Dána Ain-Davis desenvolveu o conceito de racismo obstétrico porque segundo ela, a ideia de violência obstétrica não consegue captar os contornos do racismo que se materializa nos encontros entre mulheres negras e profissionais de saúde.

Para a autora, o racismo obstétrico coloca mulheres negras e seus bebês em risco pois tem a ver com condutas negligentes, lapsos de diagnóstico, tratamento desrespeitoso, causar dor desnecessária e realizar procedimentos sem consentimento.

A proposta de Davis é interessante para visibilizar as situações que mulheres negras e racializadas sofrem durante a assistência em saúde no ciclo gravídico-puerperal. No Brasil, muitas vezes essa especificidade é nomeada por profissionais e ativistas como “violência obstétrica contra mulheres negras”. Mas, independentemente da forma de nomeação, observar as diferenças étnico-raciais no cenário obstétrico brasileiro nos leva às seguintes informações: as mulheres negras têm menos consultas de pré-natal comparadas às mulheres brancas e recebem menos alívio da dor ao longo do processo de parturição (pesquisa Nascer no Brasil). 

Elas estão mais sujeitas à morte materna, que é considerada uma morte evitável. Segundo dados mais recentes do SIM/SINASC, a mortalidade materna de pretas é de 110 mortes por 100 mil nascidos vivos. Entre mulheres indígenas essa taxa fica em 78 mortes e entre mulheres brancas, em 50 mortes. Há um risco desproporcional de morrer durante o ciclo gravídico-puerperal entre mulheres pretas e indígenas e isso também é uma das facetas do racismo obstétrico vivenciado em nosso país. 

Além de expor as mulheres a um maior risco de morte materna, a violência obstétrica que mulheres negras e racializadas enfrentam têm consequências que se alongam no tempo. Pesquisas realizadas nas américas apontam que seus bebês são os que mais morrem por negligência; há sequelas muitas vezes irreversíveis no corpo delas, como, por exemplo, nos casos em que têm seu útero retirado – o que as torna estéreis – sem que saibam disso, em meio a toda sorte de tratamentos desrespeitosos. 

Então, é possível dizer que existe uma face mais institucional do racismo obstétrico que tem a ver com que o sistema de saúde oferece ou deixa de oferecer. E outra, interpessoal, que diz respeito a discriminações sofridas por profissionais de saúde. Na raiz desse tipo de racismo, está a desvalorização das maternidades negras, que não é romantizada e considerada desejável como as brancas; e a ideia de que corpos negros supostamente suportam mais a dor. Estereótipos racistas que ferem a dignidade de mulheres negras e racializadas diuturnamente. 

A solução oferecida para tais contextos de racismo obstétrico usualmente são práticas de humanização do parto e nascimento, inseridas no debate público pelo movimento da humanização do parto e que também ingressaram em políticas de saúde, como no Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (portaria/ GM nº 569 de 2000) e na Rede Alyne.

No entanto, é preciso compreender que há uma contradição implícita entre o discurso da humanização do parto e a realidade vivida pelas mulheres negras brasileiras. 

Enquanto a bandeira da humanização propõe um "retorno às origens", muitas vezes idealizando práticas consideradas naturais ou tradicionais - como a referência e valorização que se faz à animalização ou mesmo aos “instintos” femininos, ela ignora que, para as mulheres afro-brasileiras, indígenas e não brancas em geral esse lugar “animalizado” ou “de origem" nunca foi uma escolha ou um privilégio, e sim muitas vezes usado para lhes negar direitos. A referência a um “retorno às origens” carrega uma romantização das tradições que, na verdade, reflete um desconhecimento das condições materiais e estruturais que sempre relegaram as mulheres negras e também indígenas à periferia do atendimento médico qualificado. Esse discurso pode silenciar o fato de que, para muitas delas, a realidade continua marcada pela precariedade e pelo desamparo institucional.

No país do mito da democracia racial, este fenômeno podemos denominar como “racismo obstétrico à brasileira.”

Mulheres negras em movimento

Em setembro deste ano, o governo federal lançou a Rede Alyne, considerada uma espécie de aprofundamento da Rede Cegonha (2011). Esta surgiu em cumprimento à recomendação do Comitê CEDAW, depois de Maria de Lourdes da Silva Pimentel, mãe e avó negra, ter colocado a “boca no mundo”, diante da morte materna evitável de sua filha negra Alyne da Silva Pimentel Teixeira. A Rede Cegonha havia sido descontinuada durante os anos de governo Bolsonaro e foi relançada, com algumas mudanças, como Rede Alyne.

Entre os objetivos da nova Rede está a diminuição da mortalidade materna, com enfoque especial para a mortalidade de mulheres negras. E isso tem a ver com o nome dado à Rede, pois Alyne foi uma jovem negra, de classe socioeconômica baixa, casada, residente em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, mãe de uma menina de cinco anos, grávida de sua segunda filha, negligenciada até a morte por hemorragia digestiva aos vinte e oito anos de idade em 2002.

Além das políticas públicas, é também importante conhecer ações de pessoas e grupos que vêm buscando combater o racismo obstétrico no país. Uma delas é o projeto Sankofa Atendimento Gestacional na cidade do Rio de Janeiro, estudado por Janaína Teresa Gentili, uma das autoras desse texto. Sua fundadora, a enfermeira obstétrica e mestra em Saúde Coletiva, Ariana dos Santos, diz que o projeto nasceu com o objetivo de oferecer atendimento digno, respeitoso, qualificado durante todo ciclo gravídico-puerperal às mulheres negras, observando que o parto domiciliar estava restrito à uma fatia social específica e privilegiada da população. O projeto, além de Ariana, reúne mulheres negras e periféricas entre elas: enfermeiras obstétricas e de família, além de uma médica especialista em Medicina de Família e Comunidade e mestra em Saúde Pública. 

Além disso, até a pandemia de covid-19, o projeto Sankofa realizava rodas de conversas públicas, abertas e itinerantes intituladas “Parteiras convidam”, abordando temas sobre saúde sexual e reprodutiva e, frequentadas livremente, por doulas que de vez em quando eram contratadas de forma autônoma pelas clientes. Esses encontros aconteciam em diversos espaços de resistência espalhados em bairros da cidade do Rio de Janeiro, estabelecendo ainda parcerias com entidades atuantes junto às famílias em maior estado de vulnerabilidade, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Outra iniciativa na região sudeste, em Campinas, pode ser descrita pela atuação de Letícia Benevides, doula negra, uma das idealizadoras do “Mães na Quarentena”, projeto voltado para gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade durante a pandemia da covid-19, e que faz trabalho social com foco em mulheres negras e de periferia, fazendo de sua doulagem atuação política para combater o racismo obstétrico.

Também somando na luta contra o racismo obstétrico está a advogada Andreza Santana. Ela é uma mulher preta, nascida na Bahia, onde também exerce seu ofício, com especial olhar para os direitos das mulheres. Ela entende que seu trabalho como advogada tem duas frentes, uma que atua “para buscar ressarcimento às violências ocorridas através de pedidos de indenização e ações criminais”.

É um trabalho que entende ser essencial, embora ocorra depois que a violência já aconteceu. E outra, atuando de forma preventiva, ao orientar mulheres sobre seus direitos na construção de Planos de Parto e ao explicar às clientes e também à sua audiência nas redes sociais sobre normas que respaldam o atendimento respeitoso e sem racismo às gestantes. Oferece ainda cursos e palestras para profissionais de saúde e do direito com enfoque atirracista. Por isso diz: “acredito que caminhamos a passos um pouco lentos nessas questões, mas tenho fé de que com conscientização antirracista, principalmente utilizando educação continuada e espaços de reflexão, podemos caminhar muito mais.” 

Estes foram ínfimos exemplos de atuação cuja agência negra feminina é colocada em evidência, com o objetivo de expandir redes de empoderamento e solidariedade entre essas mulheres. 

A discussão proposta pelas pesquisadoras da Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA) não apenas reafirma um compromisso com a agenda ativista da qual as experiências citadas fazem parte, mas também corrobora o crescente protagonismo na produção intelectual que torna tais práticas possíveis.

Ou seja, a discussão enfatiza a importância de centralizar as vozes e as experiências das mulheres negras no debate sobre saúde sexual e reprodutiva, passos já dados há décadas por ativistas brasileiras como Jurema Werneck, Fernanda Lopes, Emanuelle Goes, para citar algumas. Isso significa reconhecer que a produção de conhecimento sobre essas práticas e a luta contra a violência obstétrica não pode ser separada das vivências e da agência dessas mulheres, que têm sido historicamente marginalizadas nesse campo.

Importante lembrar que tais iniciativas, além de enfrentar as desigualdades raciais e de gênero no sistema de saúde, também criam novas formas de cuidado, resistência e emancipação.

O que apontamos para o futuro?

Este dia 20 conclama por um panorama obstétrico cujo desfecho seja positivo para além do léxico biomédico. Pensar afro futuros diante da saúde reprodutiva de mulheres negras é combater o racismo obstétrico por meio de ações específicas para essa população. Para tanto, é necessário reforçar a abordagem de educação permanente em saúde, que integre o combate às discriminações raciais e a promoção da equidade.

Essa formação deve incluir o letramento racial crítico, capacitando desde médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, pessoal do campo administrativo às doulas (no caso destas, cuja Lei Federal pela regulamentação de sua profissão está tramitando na Câmara dos Deputados Federais) a identificar, prevenir, combater, coibir e erradicar práticas racistas.

A implementação efetiva da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e a atenção ao quesito raça/cor nos atendimentos devem ser reforçadas, garantindo que a cor da pele não seja um fator determinante na qualidade do cuidado recebido pelas mulheres negras.

Essa transformação exige uma luta por reconhecimento, reparação e inclusão, e envolve aprender com muitas Arianas, Letícias, Andrezas e tantas outras. 

O lema como “nada sobre nós sem nós” deve ser sempre lembrado, permitindo que as mulheres negras, quilombolas e indígenas estejam no centro das decisões que afetam suas vidas. O reconhecimento de suas histórias, conhecimentos e reivindicações é essencial para superar a exclusão e construir um sistema de saúde verdadeiramente equitativo.

*Janaína Teresa Gentili F. de Araújo, advogada, doula, mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ e contadora de histórias.

**Giorgia Carolina do Nascimento, doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/UNICAMP, pesquisadora da REMA, professora da educação básica. 

***Mariah Torres Aleixo, doutora em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRGS, pesquisadora da REMA e pós-doutoranda em Saúde Coletiva pelo IESC/UFRJ. 

****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Mariana Pitasse