Coluna

Nossa saída para a catástrofe no RS: Agentes de Cidadania Solidária

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Militantes do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD) durante ato por cidades mais justas e sustentáveis - Divulgação/Emily Firmino/MTD
O grupo deverá fazer um intercâmbio entre a ciência e os conhecimentos do campo popular

O Rio Grande do Sul vivenciou a maior catástrofe climática de sua história em 2024. Com chuvas que chegaram a 800 milímetros cúbicos, 463 dos 497 municípios gaúchos foram atingidos e mais de 2,3 milhões de pessoas, impactadas. Deste universo, 581.633 tiveram que deixar suas casas, que ficaram alagadas ou destruídas, total ou parcialmente, e 76.188 foram acolhidas em abrigos coletivos. As demais ficaram provisoriamente em casas de familiares e amigos. Muita coisa se perdeu nas comunidades, para além dos objetos pessoais, memórias e afetos. Uma expressiva parcela da população perdeu a moradia e o trabalho. 

Esse contexto trouxe aos movimentos populares muitos novos desafios. Além das ações de socorrer, acolher, alimentar as pessoas atingidas, o desafio da comunicação, de atuar com agilidade e eficácia, bem como novas pautas que surgiram e despertaram a necessidade premente de apontar soluções e encaminhá-las aos governos.  

Ao olhar para a situação que o povo atingido pela enchente ficou, à medida que as águas iam baixando e constatava-se o empobrecimento brutal que esse processo ocasionou, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos (MTD) apresentou a proposta de Frentes de Trabalho para a Emergência Climática, resgatando uma experiência que tivemos no início do movimento, no início do século. Na época, conquistamos no Rio Grande do Sul a Lei das Frentes Emergenciais de Trabalho, implementada pelo estado e alguns municípios, de 2001 a 2010. As frentes foram fundamentais para acudir a situação de emergência do desemprego naquele período.  

Outro eixo de luta que assumimos é pela moradia com direito à cidade, propondo a destinação de imóveis públicos para moradia de interesse social, com Retrofit e outras modalidades; áreas adequadas e seguras para morar, providas de equipamentos públicos; criação de um programa de reforma das moradias de até 40 mil reais e liberação do Minha Casa Minha Vida (MCMV) Entidades, bem como o MCMV Reconstrução sem Segregação. 

Sabemos que a “tragédia anunciada” não aconteceu por acaso, mas como consequência do modo como as cidades são construídas no modelo capitalista. Para o capital, a natureza, a ocupação dos territórios e o planejamento urbano são meios de acumulação de lucros. Esse modelo não reconhece a natureza e muito menos os seres humanos como sujeitos de direitos. Portanto, não nos permite ter voz e participação para definir como queremos que seja a organização da vida na sociedade.  

Em contraposição, defendemos que as cidades, bem como a vida das pessoas e a natureza, precisam estar sob novos parâmetros, dentro de um modelo sistêmico e integral, ecológico, econômico e social. Para isso, precisamos garantir condições para que as pessoas possam se reunir, estudar, pensar coletivamente, opinar sobre o planejamento e definição das políticas públicas. Sabemos que, na dinâmica do dia a dia, onde predomina o "vire-se" e o "cada um por si", é praticamente inviável exercer uma cidadania qualificada, da participação social, pois as pessoas necessitam buscar sua sobrevivência e isso consome o tempo do dia, da semana, do mês, nessas longas jornadas.  

Para avançar com as experiências coletivas, precisamos caminhar para novas e ousadas direções, reconhecer que se esgotou o tempo e o jeito de fazer as cidades sempre subjugando a natureza e os seres humanos. Recolocar a vida no centro das decisões, em todos os aspectos.  

A proposta de Frentes de Trabalho para a Emergência Climática, na visão que os movimentos propõem, para além do trabalho emergencial solidário, podem propiciar um início para essa nova forma de ser das cidades, com participação popular. A ideia é a criação de um programa de “Agentes de Cidadania Solidária”, a partir da lei das Frentes de Trabalho, uma nova "categoria" de trabalhadores e trabalhadoras que, no caso do Rio Grande do Sul, surgiu às pressas, na emergência da crise das águas e da lama, no socorro às famílias, aos vizinhos e amigos.  

Milhares de pessoas que passaram a fazer a comida nas cozinhas solidárias, organizar e distribuir as doações nos centros de arrecadação e distribuição, contribuir nos mutirões de limpeza e na reorganização da vida familiar e comunitária. Essa solidariedade aflorada precisa caminhar no rumo de ultrapassar a fase espontânea, desenvolvendo experiências de mapeamento de informações para o planejamento das diversas questões do e no território, ligando o imediato e emergencial ao estrutural e estratégico. Para tanto, é necessário um programa público, com suporte financeiro dos governos, que garanta aos agentes o direito a um salário mínimo regional, cesta básica, equipamentos de proteção individual, apoio técnico, além de cursos de capacitação e qualificação profissional, como previsto em lei. 

Nessa ideia, um grupo de Agentes de Cidadania Solidária poderá e deverá atuar em articulação com o campo da ciência e pesquisa, das universidades públicas e outras instituições afins, para o intercâmbio de conhecimentos do campo popular e suas demandas com os estudos científicos, em processo de capacitação e acompanhamento técnico, nas tarefas de mapeamento e leituras mais detalhadas da realidade, desenvolvendo um planejamento participativo que contemple as dimensões organizativas nos territórios, com espaços formativos que fomentem e assegurem os interesses e necessidades da comunidade.  

O programa deve trabalhar num patamar que avance para o protagonismo do povo na busca e desenvolvimento das cidades sustentáveis, em áreas seguras de se habitar e viver. Desenvolver espaços onde todas as organizações populares, tendo seus Agentes de Cidadania Solidária, participem de um plano popular de construção das cidades, num modo de fazer que envolva as pessoas, de forma coletiva e participativa.

Definir caminhos para o povo ter voz e vez, poder opinar na definição do modelo de cidades que precisamos, em especial, nossos territórios de moradia, onde tenhamos também o trabalho, cultura, saúde, educação para além da escola, lazer, numa construção de cidades saudáveis e sustentáveis. Os acúmulos dos estudos científicos precisam estar popularizados e enraizados nas práticas institucionais e governamentais. 

Passados seis meses da tragédia da enchente, muito pouco se avançou nesse rumo. O MTD se mantém firme na luta, junto aos demais movimentos e, por já termos vivido uma experiência de Frentes Emergenciais de Trabalho no estado do RS durante o governo de Olívio Dutra, sabemos que um programa como este aqui proposto é uma alternativa perfeitamente viável.  

Trata-se de uma concepção de (re)construção estruturante, em que os setores auto-organizados da classe trabalhadora sejam compreendidos como sujeitos da construção de suas vidas, através de espaços de participação efetiva nos debates sobre os rumos e nas formas de elaboração e concretização de novas formas do viver.  

* Sandra Regina Christ é educadora popular e militante do MTD no Rio Grande do Sul.  

Edição: Martina Medina