Em sua 66ª edição, em 2020, a Feira do Livro de Porto Alegre fez história ao nomear o escritor Jeferson Tenório como primeiro patrono negro. Desta vez, quatro anos depois, o evento traz também pela primeira vez uma curadoria de literatura e cultura negras, sob a responsabilidade da escritora Lilian Rose Marques da Rocha.
Autora de livros como A Vida Pulsa: Poesias e Reflexões (2013), Negra Soul (2016) e Menina de Tranças (2018), a porto-alegrense teve contato muito cedo com a palavra escrita. Sua alfabetização começou ao escrever poesias, contos e crônicas. Aqui, ela trata da importância do espaço conquistado na feira para a visibilidade de escritores e escritoras negras.
Confira a entrevista completa.
Brasil de Fato: Quando conversamos em 2020, você afirmou “A gente veio para ficar com a nossa literatura e o nosso saber”. Hoje, como analisar o cenário atual de escritores e escritoras negros no Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul?
Lilian Rocha: Foi um processo de luta, de desenvolvimento, de busca de espaços coletivamente e também individualmente. Existem vários coletivos que sempre buscaram estar presentes nos eventos literários. O mercado editorial percebeu que existe uma população de leitores ávidos por essa literatura. Sem falar que existe um número significativo de escritores, tanto nacionalmente como no estado, que tem projeção, que estão vendendo super bem.
Podemos citar Itamar Vieira Júnior, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, José Falero. Temos uma finalista, nesse momento, do Prêmio São Paulo, que é a Eliane Marques, com um romance maravilhoso: Louças de Família.
Abriu o leque. Antes, quando se falava conosco, escritores negros, era só (para tratar) de poesia. Não, estamos escrevendo romances, contos, crônicas, livros infantis. Os livros para a infância dos escritores negros estão dominando a feira aqui.
Houve melhoras, uma abertura, maior visibilidade. Mas ainda para um número muito pequeno se comparado com aquele de escritores não negros.
Você fala em visibilidade e vem à memória àquela propaganda, da Caixa Econômica Federal, do branqueamento de Machado de Assis. E, ainda, a demora na descoberta de que a primeira escritora brasileira publicada foi uma negra, Maria Firmina dos Reis (1822-1917)...
Isso é fundamental. Há cinco anos, por exemplo, voltou a história da Carolina Maria de Jesus. Ela está sendo procurada, os seus livros, nas universidades os vestibulares exigem sua leitura.
A mesma coisa com a Maria Firmina dos Reis, por tanto tempo esquecida, e que foi a primeira romancista do Brasil e a primeira romancista abolicionista da América Latina. Com o primeiro romance em 1859, Úrsula, que precisava utilizar um pseudônimo como 'A Maranhense'...
Essa escrita sempre existiu. E nós mesmos, como pessoas negras, não tínhamos conhecimento que o primeiro patrono da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis, um dos maiores, se não for o maior escritor brasileiro, era negro. E por que nos foi escondido isso? Por que não se queria que soubéssemos dessa situação?
A Feira do Livro chegou aos seus 70 anos e é a primeira vez que existe uma curadoria de literatura e cultura negras. O que isso significa?
Eu fiquei muito contente com o convite feito pela diretoria da Câmara Rio-Grandense do Livro. Sempre fui apaixonada pela feira que frequento desde 2014 com lançamentos e mesas.
Quando surgiu essa oportunidade, eu pensei que estava na hora de fazer uma curadoria que traga, ao mesmo tempo, escritores e escritoras consagradas mas também outros e outras que não têm essa visibilidade. Que estão escrevendo há muito tempo e que tem um trabalho super qualificado, uma literatura que traz as questões das bases da negritude.
Essa curadoria traz essa importância não só desses escritores, mas também da cultura. Vão ter mesas trazendo a questão das mulheres periféricas, da revista Tição, da música. Vai ter shows musicais, sambas, afro-sambas, os saraus. Que são esses coletivos? O Sopapo Poético vai estar presente, o CEN, que é o coletivo de escritores negros que surgiu há três anos e está muito forte.
Cada vez mais surgem escritores negros que estavam com as seus escritos guardados e começaram a publicar. Depois que eles ficaram sabendo, a gente já estava quase fechando e surgiram muitos me procurando.
Para mim é uma alegria fazer essa curadoria e trazer essa amostragem tanto da literatura adulta como da literatura para a infância. Diversidade e cultura. Mesas falando sobre a questão das religiões de matriz africana. Trazendo a importância dessa colocação da violência contra as mulheres negras.
Vai ter uma mesa com um homem colocando o quanto é difícil para um homem negro se mostrar enquanto afeto. Essas coisas são necessárias e, às vezes, ficavam em segundo plano.
É passo a passo. Tivemos lá em 2020 o primeiro patrono negro. Ficamos tristes porque foi durante a pandemia. Mas é um caminho. Agora, em 2024, temos uma curadoria e a gente pode caminhar mais.
Uma coisa que peço é que os livreiros busquem conhecer os escritores que virão para ter os livros nas bancas. Algo do que as pessoas reclamavam quando vinham. Perguntavam tem o autor tal? E não encontravam.
E o que representa essa curadoria para autores e autoras negras?
Eles estão muito felizes. O pessoal só tem dito assim, 'Lilian, que legal e que bom que é a tua pessoa que tem uma trajetória dentro da literatura do Rio Grande do Sul e também nacional e que conhece as pessoas que já tem uma trajetória'. Vai vir, por exemplo, o Cuti, que é alguém que criou o Quilombhoje, que são os Cadernos Negros, com mais de 45 edições.
Assim como vão estar os jovens da Batalha, do Slam. Vamos ter o Poetas Vivos, o pessoal da Nega Jaque, que é do hip hop. Essa é a questão da curadoria. Ter um olhar mais múltiplo, tanto para a literatura de quem está aí há mais tempo, como também para os jovens.
A feira iniciou no dia 1º de novembro, mês da consciência negra, e se encerra em 20 de Novembro, Dia Nacional da Consciência Negra. Há programações específicas nessas datas?
Do dia 2 até o dia 20 vamos ter saraus, mesas, vitrines em que vamos mostrar os livros, sessão de autógrafos, apresentações culturais, música. E dia 8, importante, não posso esquecer, é o dia do ciclo Preto Sou, que é dedicado exclusivamente à cultura e literatura negras. Vai ter 'n' atividades da manhã à tarde, com escritores recebendo as escolas. Vamos ter quilombolas, vai ter dança, vamos ter muitas apresentações e mesas de literatura.
Vamos trazer a revista Tição, com mais de 40 anos, remanescente daquelas pessoas do movimento negro, que fizeram tantas coisas importantes. Teremos uma mesa discutindo a importância dessa revista, mais roda de samba, com o pessoal do samba de raiz, com o Grupo Puro Samba e as Negras em Canto.
Importante ressaltar que é a primeira vez em que o dia 20 é feriado nacional. Aqui em Porto Alegre não era feriado.
Como a literatura pode ajudar no combate ao racismo?
Tem um provérbio africano que diz assim: Geralmente a história é contada pelo caçador. Se o leão pudesse contar realmente como foi... É justamente isso que a gente quer com essa literatura. Contar as nossas histórias.
Cansamos de ser objeto de pesquisa e de contarem as nossas histórias por nós. Muitas vezes (a versão) não era, digamos assim, a mais adequada, a mais verdadeira. Agora leiam o que nós escrevemos, contando as nossas histórias, e no olhar que temos com relação à vida.
Que escritores/escritoras negras ainda precisam ser reconhecidos pelo grande público, na sua opinião?
Alguns e algumas já estão em um grande nível de reconhecimento, mas eu queria ressaltar os gaúchos e gaúchas. A poeta Ana dos Santos, a romancista Taiasmin Ohnmach. Alguém começou com poesia e agora está indo para a prosa, caso da Fátima Farias. Mais Eliane Marques. E os homens: José Falero, com certeza, tão importante. E Tônio Caetano. Ronald Augusto, que é dos antigos.
Em nível nacional, a Jarid Arraes, que vai estar conversando com a gente, Lilia Guerra, que também vai estar na feira. Conceição, que vai ser sempre a nossa amada, Ana Maria Gonçalves que vai sempre ser ressaltada. Também Eliana Cruz. E uma pessoa que também virá, a Elisanda Souza. Ela é uma das pessoas iniciais do Cooperifa, uma mulher que trata das mulheres negras e periféricas.
Como aumentar a visibilidade de escritoras e escritores negros?
A gente precisa de oportunidades. A curadoria é uma oportunidade de trazer à luz essas pessoas. Mostrar o quanto essa literatura já constituiu esse país e que pode constituir muito mais, a sua importância e, antes de qualquer coisa, a sua qualidade de escrita.
Mas é necessário que as pessoas leiam. Que as pessoas procurem conhecer quem são esses escritores e escritoras.
Acabaste de lançar teu primeiro livro infantil. Como foi o processo?
Lancei o Oju Dudu justamente por isso. Porque a protagonista é uma menina negra. Muitas vezes vou em escolas e percebo que alguns livros escolares não têm protagonistas negras. E as crianças negras, como é que ficam em relação à representatividade, ao espelho? Não só as crianças negras, as crianças não negras também têm que aprender o diverso, o múltiplo. Somos inúmeros, das mais variadas formas e das mais variadas belezas e padrões. Então, era necessário.
Fiz o livro com essa intenção de trazer para o protagonismo uma menina negra, que encanta pela sua ancestralidade e que pelo poder de transformar o seu mundo através da música.
Antônio Cândido defende a literatura como um direito. Você concorda?
Com certeza! Palavra é poder, né? Palavra é ação, palavra é estado de consciência. Então, é fundamental que todas as pessoas tenham direito à palavra.
E o que é a literatura para ti?
É a possibilidade de estar consciente do meu papel de cidadã no mundo.
A feira está acontecendo seis meses depois da grande enchente. A Praça de Alfândega, o berço da feira, inundou. Muitos livreiros, leitores, escritores tiveram prejuízos. Como ocorre, agora, essa reconstrução?
Tenho amigas que perderam todos os seus livros. E depósitos de editores, amigos, livreiros. A minha própria editora e livraria, que é a Taverna, só conseguiu reabrir no final de agosto.
É o momento de podermos também ajudar essa cadeia do livro. Dos livreiros, dos leitores, dos escritores, dos contadores de história, que perderam muito dos seus eventos e que ficaram sem poder trabalhar. A feira tem um papel importantíssimo pelo fato de que é um recomeço. E em um lugar onde vemos que as árvores ainda estão com aquele tom marrom. Muita coisa ainda está sendo feita, sendo reconstituída. É uma reconstituição e a feira também vai fazer parte disso.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno