A unidade do Sul é algo pelo qual devemos lutar frente à violência do hiperimperialismo
Por Stephanie Weathebee Brito*
O genocídio em Gaza, apesar de continuar causando indignação, raiva, profunda tristeza e diversas formas de solidariedade, tem caído na normalização. Até certo ponto, é inevitável que um acontecimento que se repete inúmeras vezes, tornando-se parte da nossa realidade, seja menos significante, já que nos acostumamos a ele e, portanto, o normalizamos. Fato é que a guerra em Gaza não é um acontecimento isolado na história Palestina nem na história recente dos países do Ocidente Asiático, também chamado Oriente Médio.
Em 1990, os Estados Unidos lideraram uma campanha militar no Iraque com o suposto intuito de defender a soberania do Kuwait. A chamada “Guerra no Golfo” teve um saldo de mais de 22 mil mortos e contou com uma campanha de bombardeio aéreo que durou meses.
Em 2001, os Estados Unidos realizaram uma invasão brutal no Afeganistão na chamada Guerra ao Terror. A invasão durou 20 anos, e foi encerrada com o Talibã – grupo terrorista que o exército estadunidense pretendia destruir – voltando ao poder com um estoque de armas abandonado pelos próprios EUA. Apesar da guerra no Afeganistão não ter atingido os seus supostos objetivos, apenas dois anos depois o mesmo país invadira o Iraque em 2003.
Desta vez a justificativa era a democratização de um país que sofria injustiças perpetuadas por um autocrata, que poucos anos antes a Casa Branca ajudou a sustentar no poder. A intervenção provocou uma sangrenta, prolongada e brutal guerra civil que desestabilizou o país e a região por anos, nutrindo a propagação de milícias que atuam de forma regional com apoio dos Estados Unidos, da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes, do Irã, e assim por diante.
Não satisfeitos com a violência instaurada na região, em 2015 Washington resolveu aproveitar o surgimento de uma oposição a Bashar al-Assad para intervir de forma ativa e consolidar uma mudança de regime na Síria. Mais uma vez, o resultado foi o mesmo: uma guerra civil prolongada, o envolvimento de diversas potências regionais e internacionais, com um saldo de 306 mil mortos e 12 milhões de desalojados – muitos deles vindo ao Brasil. Durante o mesmo período, os EUA, por meio da OTAN, interveio na Líbia para destituir Gaddafi, abrindo mais uma guerra civil marcada pela presença de milícias, destruindo qualquer forma de Estado ou poder centralizado no país.
Os EUA não conseguiram encerrar nenhum destes conflitos de maneira satisfatória: o Afeganistão passou a ser governado pelo Talibã, a Síria continua com Assad no poder, no Iraque persiste uma força anti-EUA organizada e armada, e na Líbia praticamente não há um Estado. Não bastasse todos estes resultados desastrosos, a potência imperialista buscou debilitar e provocar a Rússia até gerar uma nova guerra na Ucrânia, em 2022. Mais uma vez, o Pentágono tem sido derrotado neste conflito.
E assim, chegamos em 2023, quando depois de anos de violências, abusos, violações de leis internacionais, colonizações ilícitas e massacres perpetrados por Israel, com total cobertura dos Estados Unidos, a resistência Palestina retoma a defensiva armada no dia 7 de outubro, o que desemboca num processo de genocídio e guerra regional que acompanhamos há um ano.
São 33 anos de guerras sangrentas promovidas pela Casa Branca, seja ela comandada por republicanos ou democratas, e pelo Congresso Nacional, que somam milhares de mortos e milhões de desalojados. Isso, sem considerar os inúmeros países que foram militarizados com armas patrocinadas e fornecidas pelo Pentágono e a vasta indústria militar estadunidense. Como não normalizar a violência e a guerra na nossa época, quando ela tem se tornado cotidiana e recorrente?
É claro que a guerra não é um fenômeno recente, assim como o imperialismo estadunidense também não é novo, mas ele tem acentuado o seu caráter violento para garantir sua dominação durante o último período. Esse novo caráter do imperialismo é denominado de hiperimperialismo, como demonstra o estudo Hiperimperialismo: um novo estágio decadente perigoso, lançado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
O documento é resultado de uma rede de pesquisadores que realizaram estudos orientados por dados com o objetivo de avançar na compreensão das realidades sociais, políticas e econômicas no mundo atual. A partir de uma análise dos gastos em armas e diversos outros elementos de infraestrutura bélica, o estudo conclui que hoje os Estados Unidos comandam e controlam 75% do estoque militar existente no mundo.
Basicamente, os Estados Unidos não só possuem o maior orçamento militar do mundo e da história, mas também, por meio de alianças militares como a OTAN, contam com uma máquina de guerra de grandes proporções que não se compara com as capacidades militares de qualquer um dos seus atuais adversários, seja China, Rússia ou Irã. Assim, é inegável que a aposta para a manutenção de sua hegemonia sobre o sistema capitalista mundial se dá pela força.
Claramente, a força sempre foi um instrumento importante da estratégia imperialista dos Estados Unidos. Não podemos esquecer que Washington continua sendo o único governo na história a detonar uma bomba atômica, em 1945, nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Também não podemos esquecer as toneladas de artilharia que esmagaram Vietnã, Laos, Camboja e Coreia. Porém, o imperialismo dos Estados Unidos contava com outras formas de dominação, seja econômica ou ideológica, mas que passam por um desgaste desde a crise estrutural do capitalismo de 2008.
A crise do capitalismo e a sua chegada ao centro do sistema econômico tem ocasionado uma crise de legitimidade do próprio sistema. É nesse contexto que a burguesia, carente de milagres econômicos para retomar o crescimento, aposta no fascismo como estratégia para dividir e confundir a população, evitando que os setores populares se unam contra seus inimigos de classe. O surgimento do fascismo estadunidense pode até postergar e minar a capacidade de resistência da classe trabalhadora, mas ele não resolve a crise do capital e alimenta uma crise de legitimidade do império como exemplo de prosperidade, democracia e paz social.
Como se não bastasse a falta de crescimento, a crise de legitimidade do modelo promovido e exemplificado pelos Estados Unidos e a crescente desigualdade no centro do sistema, o ascenso da China como potência econômica, tecnológica e política configura um cenário fortemente desfavorecido para a continuidade da hegemonia dos Estados Unidos. Porém devido ao incomparável poder militar do império, essa hegemonia se vê debilitada, mas não derrotada.
O hiperimperialismo também está caracterizado pela unidade dos países do Norte Global no projeto de preservação da hegemonia estadunidense. A expansão da OTAN e a unidade dos países europeus frente à Rússia, mesmo diante dos prejuízos que isso implica à população europeia, são alguns exemplos dessa coesão. Atualmente, há uma unidade dos países do Norte Global, junto com alianças importantes de alguns países do Sul Global (como Arábia Saudita), que configuram um bloco político, econômico e militar que se opõe ao desenvolvimento do Sul Global enquanto este ameaçar a hegemonia do Norte.
O atual cenário explica parcialmente o porquê de um ano de genocídio na Palestina, apesar da profunda indignação que este fato gera nos povos. Por um lado, os EUA, para contornar o desfavorecedor quadro atual que temos desenhado, têm apostado na força militar para atingir seus objetivos. Claro que o império ainda preserva estratégias de coerção econômica, pressão diplomática e cooptação política, mas se necessário for, a força militar será exercitada sem qualquer limite que a lei internacional ou a opinião pública possa colocar.
É nosso papel enquanto esquerda internacional, campo popular e povos da classe trabalhadora reagir, reivindicando nossa soberania, defendendo nosso direito ao desenvolvimento e demonstrando solidariedade a quem luta por liberação nacional. A unidade do Sul e dos povos da classe trabalhadora do Norte não é um destino que está dado, mas algo pelo qual devemos trabalhar e lutar para fazer frente à violência que o hiperimperialismo tenta normalizar.
* Stephanie Weathebee Brito é Co-coordenadora da Secretaria Internacional da Assembleia Internacional dos Povos.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho