Não é só a justiça por Marielle e Anderson. Diz respeito ao avanço na luta por justiça
Começou nesta quarta-feira (30) o julgamento dos assassinos confessos da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Desde o início do dia, um ato mobilizado por familiares reforça o pedido de justiça em frente ao local onde ocorre o júri popular, no Rio de Janeiro (RJ).
Os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio Queiroz estão presos desde 2019, um ano após o crime, acusados de serem os executores do crime. Agora, o júri decidirá qual será a pena final.
“Antes de mais nada é muito importante dizer que o Brasil tem uma chance histórica de começar a justiça por Marielle e Anderson”, define a diretora do Instituto Marielle Franco, Lígia Batista, em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta.
“Esse caso é simbólico, ele é sintomático de muitas maneiras. Nossa expectativa é, de fato, que esse momento do júri popular seja para gente ter finalmente uma resposta contundente sobre essa violência, e que o Estado brasileiro comece a se posicionar de forma intencional sobre a necessidade de responsabilizar aqueles que acreditam que a violência política é o caminho", explica a advogada.
O Ministério Público Estadual chamou sete testemunhas para participar do julgamento: a mãe de Marielle, Marinete da Silva; a viúva da vereadora, Mônica Benício; a viúva de Anderson Gomes, Ágatha Reis; a única sobrevivente do atentado, Fernanda Chaves; uma perita criminal e dois policiais civis.
Ronnie Lessa, que está na Penitenciária de Tremembé, no interior de São Paulo (SP), e Élcio Queiroz, que está no presídio da Papuda, em Brasília (DF), prestarão depoimento também, mas por videoconferência.
Embora a expectativa do Instituto Marielle Franco seja a de "sair vitoriosos”, Lígia Batista confessa que teme por uma “revitimização para essas famílias”.
“O júri popular é uma instância muito desafiadora, justamente porque são jurados escolhidos aleatoriamente na nossa sociedade. Não são pessoas necessariamente com um contexto de formação jurídica e eles são aplicáveis justamente em casos de crimes contra a vida", explica.
para exemplificar, Lígia Batista lembra que em março deste ano o júri entendeu que a PM não teve intenção de matar o jovem Johnatha de Oliveira Lima na favela de Manguinhos, em 2014. O menino levou um tiro nas costas e a sentença revoltou parentes. A mãe de Johnatha, Ana Paula de Oliveira fundou o grupo Mães de Manguinhos a partir deste caso.
O julgamento iniciado nesta semana não trata dos dois acusados de serem os mandantes do crime, o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE-RJ), Domingos Brazão, o irmão dele, Chiquinho Brazão, deputado federal (Sem Partido-RJ).
Em delação premiada, Ronnie Lessa acusou os dois de terem arquitetato o crime, conjuntamente com ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Rivaldo Barbosa e o major da Policia Militar Ronald Paulo de Alves Pereira.
Confira a entrevista na íntegra
Qual a expectativa para o julgamento?
Antes de mais nada é muito importante dizer que o Brasil tem uma chance histórica de começar a justiça por Marielle e Anderson. Esse é um capítulo que a gente se aproxima cada vez mais da conclusão, então a nossa expectativa é de sairmos vitoriosas.
A gente entende que ele não diz respeito só à justiça por Marielle e Anderson, ele diz respeito ao avanço na luta por justiça, pela atuação de defensores de direitos humanos, pela luta de familiares de vítimas de violência de Estado, no enfrentamento à violência política de gênero e raça que atravessa a realidade da política institucional no Brasil
Esse caso é simbólico, ele é sintomático de muitas maneiras. Nossa expectativa de fato é que esse momento do júri popular seja para gente ter finalmente uma resposta contundente sobre essa violência e que o Estado brasileiro comece a se posicionar de forma intencional sobre a necessidade de responsabilizar aqueles que acreditam que a violência política é o caminho.
Em algum momento ao longo desses quase sete anos desde o crime, houve um temor de que o caso fosse esquecido pela Justiça?
Seguramente. Foi uma caminhada muito longa que já alcança quase sete anos neste momento. Não foi só a luta das famílias de Marielle e Anderson, mas também essa mobilização coletiva que nos trouxe até aqui.
Chegarmos a esse julgamento e, de fato, termos essa possibilidade de virarmos essa página é algo histórico. Virar a página no sentido de entendermos que o assassinato de Marielle e Anderson não é aceitável num contexto de uma democracia que, de fato, avance ao modelo de país em que pessoas que lutavam pelo que Marielle Franco acreditava possam seguir sem ter que pagar com suas próprias vidas.
Para conseguir promover essas transformações sociais que a gente quer enxergar, transformações sociais para mudar a vida de pessoas negras, de mulheres, para mudar a realidade de desigualdade que a gente enfrenta todos os dias, por isso é claro que é um momento histórico.
Mas é, de fato, muito importante que a gente possa esperar a conclusão do júri popular pra eventualmente dizer que saímos vitoriosos.
É muito sintomático e simbólico que chegamos nesse momento do júri, mas a conclusão desse júri, com uma decisão adequada, justa, sobre os envolvidos nesses assassinatos, é fundamental.
E é isso que a gente espera no fim das contas.
Como o Instituto avalia o fato do julgamento ter ido a júri popular?
O júri popular é uma instância muito desafiadora porque são jurados escolhidos aleatoriamente na nossa sociedade, não são pessoas necessariamente com um contexto de formação jurídica e eles são aplicáveis justamente em casos de crimes contra a vida.
Em outros casos de violência de Estado, a gente viu, por exemplo, o julgamento de um caso muito grave e também simbólico de violência policial aqui no Rio de Janeiro: o assassinato do Jonathan, filho da Ana Paula de Oliveira, morto na favela de Manguinhos há bastante tempo.
Quando chega nesse momento do júri popular a gente tem mais medo de que, na prática, quem vai ser julgado é a vítima e não quem praticou o assassino.
Então hoje pra mim a grande discussão sobre o que vai significar o debate desse júri popular é justamente a importância de não se criminalizar vítimas de violência de estado, como foi Marielle, como são tantas pessoas cotidianamente.
É fundamental que a conclusão desse processo não gere qualquer tipo de revitimização para essas famílias. Que não fortaleça a criminalização de Marielle e Anderson, e que efetivamente esse posicionamento dos réus, que são réus confessos, seja referendado pelos jurados que se envolverem nesse caso.
A que você atribui o fato do caso ter ganhado essas proporções e se tornado um julgamento de comoção nacional?
Em primeiro lugar, ao papel das famílias de Marielle e Anderson. Foi fundamental ao longo desses últimos anos. Sem que essas famílias tivessem de fato perseverado e continuado a caminhar nessa luta, nada disso seria possível.
Talvez a gente não tivesse nessa posição que a gente chega hoje, com esse júri que se inicia.
Mas ao mesmo tempo é também importante dizer e reconhecer que o assassinato de Marielle Franco acontece num contexto político bastante particular.
Um contexto em que a gente vê, lá em 2018, uma guinada da extrema-direita, em que a gente vê um aprofundamento da polarização política no país, em que a gente vê, no Rio de Janeiro, um processo muito sensível que foi da intervenção federal na Segurança Pública do estado do Rio.
E mesmo diante desse cenário, muito adverso, a gente tem o assassinato de uma mulher, que é uma mulher preta, favelada, eleita com 46 mil votos. Teve uma votação muito expressiva para uma primeira campanha eleitoral.
E ainda assim ela é assassinada pelo que ela defende, pouco mais de um ano após o início do seu mandato. Então é muito significativo, porque a gente está falando sobre uma mulher que vem das camadas populares, uma mulher que vem de um histórico de muita luta para conseguir alcançar o que alcançou na vida.
E que ainda assim, mesmo alcançando um espaço de poder, tenha sua vida atravessada por essa violência. Por isso eu acho que existe uma comoção popular.
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Edição: Nathallia Fonseca