A cúpula do Brics realizada em Kazan, na Rússia, ficou marcada por uma tensão diplomática envolvendo Brasil e Venezuela após o governo brasileiro vetar a entrada dos venezuelanos no bloco como Estado parceiro. A medida esfriou ainda mais uma relação que já não vai bem desde as eleições no país vizinho.
O veto aos venezuelanos não foi justificado publicamente pelo governo de Lula. O presidente não compareceu ao evento e enviou o chanceler, Mauro Vieira, para chefiar a delegação. Nenhum deles, no entanto, explicou porque barrou a entrada dos venezuelanos no bloco. Caracas afirma que a decisão foi uma “punhalada nas costas” e que a medida de “ingerência” do governo brasileiro é uma forma de interferir na política local.
O Brasil de Fato ouviu diplomatas envolvidos nas negociações que disseram ter pesado na avaliação do governo brasileiro a forma como foi conduzida a eleição presidencial na Venezuela e as recentes trocas de declarações entre integrantes da cúpula chavista e do governo petista. As eleições no país vizinho foram vencidas por Nicolás Maduro, que se reelegeu para um terceiro mandato. Os resultados, no entanto, foram contestados pela oposição.
O Brasil não fez um reconhecimento público. O Itamaraty disse confiar no sistema eleitoral e deu início a negociações com o governo da Colômbia para abrir um canal de diálogo com o governo venezuelano e exigir a divulgação dos resultados desagregados das eleições no país. Em resposta, a Venezuela pediu respeito à “soberania e autodeterminação” pelos outros governos, para que as questões eleitorais sejam resolvidas internamente. Os dados dos resultados eleitorais ainda não foram publicados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) depois de 3 meses do pleito.
Segundo a diplomacia brasileira, mesmo sem uma explicação formal da decisão, a origem do veto à Venezuela tem esse contexto. Caracas criticou a posição brasileira, chamou a decisão de “hostil” e disse que a ação se soma à “política criminosa de sanções”. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores venezuelano afirmou que a representação do Itamaraty no bloco, por meio do diplomata Eduardo Paes Saboia, manteve o veto que o ex-presidente Jair Bolsonaro aplicou durante anos ao país e reproduz o “ódio, a exclusão e a intolerância” contra os venezuelanos.
Maduro completou a nota da Venezuela nesta segunda-feira (28). Durante seu programa televisivo Con Maduro +, ele disse que o chanceler Mauro Vieira prometeu, durante as negociações que ocorreram na Rússia, que não impediria a entrada dos venezuelanos. De acordo com o presidente, os dois se encontraram ao final do evento e Maduro teria questionado o veto brasileiro. Segundo o mandatário, o chanceler brasileiro disse que não vetou a Venezuela antes de ir embora.
Tanto na nota, quanto na declaração de Maduro, a estratégia adotada por Caracas foi culpar Eduardo Paes Saboia pelo que chamaram de “traição”. Ele é diplomata de carreira e foi embaixador no Japão durante o governo de Jair Bolsonaro.
Com as declarações públicas, o governo venezuelano afirma esperar para ver se Lula vai se posicionar e entender se a atitude foi tomada por um diplomata “bolsonarista”.
“Eduardo Paes Saboia tem um obscuro e triste passado bolsonarista. Isso viola os princípios da Celac, da Unasul e os princípios que conhecemos de maneira aberta que defende o presidente Lula há anos.Isso criou um ruido enorme, porque imagina, se todos os países do Brics te apoiam e de repente um funcionário dá uma punhalada pelas costas, conhecido como um intransigente bolsonarista”, afirmou Maduro.
Para o ex-diplomata e analista internacional venezuelano, Sergio Rodríguez Gelfenstein, colocar a responsabilidade em Saboia é uma forma de marcar a posição do governo de descontentamento, mas deixar um espaço para diálogo, já que não foi direcionado ao presidente Lula.
“Supor que essa decisão foi tomada pelo embaixador Saboia é uma coisa que não tem solidez, mas acho que com isso a Venezuela dá uma resposta de Estado, uma resposta a altura que mostra o desgosto, mas que não é de confrontação porque deixa espaço para uma reconsideração”, afirmou.
Segundo apurou o Brasil de Fato, para parte da diplomacia venezuelana, a decisão do Brasil mostrou uma mudança de postura de Lula em relação aos seus dois primeiros governos.
O analista político e militante do PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela) David Gomes Rodriguez concorda com essa leitura. Para ele, o próprio presidente brasileiro encabeçou a criação de grupos e articulações regionais que promovem a integração de países da América Latina e, se o Brasil pretende continuar sendo reconhecido como progressista e promotor da integração da América Latina, essa decisão terá de ser revertida.
“O fato de que há um veto por parte do Lula para a entrada da Venezuela no Brics constitui por si só uma diferença entre os governos de Lula. Constitui uma traição ao progressismo, aos princípios de integração latino-americana e da visão anti-imperialista e de uma construção de uma nova ordem mundial no panorama internacional, que foi articulada por Lula lá atrás”, disse ao Brasil de Fato.
Maduro também criticou a formação dos diplomatas brasileiros. Segundo ele, as escolas de Relações Exteriores no Brasil são influenciadas pelo Departamento de Estado dos EUA. Rodriguez diz que todas essas declarações configuram ataques ao Brasil e não ajudam na melhor condução das relações entre os dois países.
“A Venezuela está ridicularizando o Brasil e, por isso, acho uma posição coerente do Brasil. O Brasil retomou as relações depois do Bolsonaro, fez esse trabalho de recuperação da confiança e da reinserção da Venezuela. A questão é que o Brasil tem uma política externa própria, não pode fazer necessariamente o jogo de outros países”, afirmou.
Os países do Brics aprovaram a incorporação de 13 países para se juntar à associação na categoria de "Estados parceiros": Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda.
Esperar a poeira baixar
Com o veto e a troca de declarações, a relação entre os países esfriou ainda mais. O próprio assessor especial de Lula para as Relações Internacionais, Celso Amorim, disse em entrevista ao jornal O Globo que a confiança “se quebrou” com a Venezuela.
O objetivo da diplomacia brasileira agora é esperar a poeira baixar, aguardar os próximos passos dos venezuelanos e entender como proceder. Apesar do temor de medidas enérgicas por parte do governo venezuelano, como a expulsão da equipe diplomática de Caracas, a ideia dos dois lados é manter a relação como está e seguir aparando arestas para negociar mais pra frente a entrada da Venezuela no Brics no status de “Estado parceiro”.
E um ponto crucial para essa negociação é a presidência do Brics, que, em 2025, será do Brasil. O governo brasileiro terá ainda mais protagonismo na próxima cúpula e escolherá os convidados. Se a situação não mudar até lá, a sensação das chancelarias é de que a Venezuela pode sequer ser convidada, o que aumentaria ainda mais o mal estar entre os governos.
Há também um descompasso na análise dos últimos meses dessa relação. O governo brasileiro afirma ter feito um esforço para reinserir a Venezuela no cenário internacional e que trabalhou para garantir que as eleições no país vizinho fossem realizadas de maneira pacífica. Para a diplomacia, isso não foi reconhecido depois do pleito e o governo do presidente Nicolás Maduro fez uma série de ataques contra o governo brasileiro.
Desde o início do mandato em janeiro de 2023, Lula tem reiterado que o Brasil pode ser um agente importante na mediação de conflitos ao redor do mundo. O mandatário tentou se colocar como um interlocutor na guerra da Ucrânia e no genocídio israelense na Faixa de Gaza.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Goulart Menezes, a avaliação do governo brasileiro está de acordo com as ações do Itamaraty nos últimos dois anos e o presidente se expôs em 2023 ao receber Maduro no Planalto.
“A postura do presidente Lula foi muito criticada no primeiro semestre de 2023 porque ele tava tentando reinserir a Venezuela e recebeu o Maduro em meio a um isolamento do governo venezuelano. Se tem um país que busca a integração regional é o Brasil, que busca articular a região, criar uma governança regional, que defendeu inclusive que os problemas da Venezuela têm que ser resolvidos internamente”, disse ao Brasil de Fato.
Já os venezuelanos entendem também terem feito um esforço a nível internacional para ajudar o governo brasileiro, tanto nas administrações petistas, quanto com Bolsonaro. Integrantes do governo afirmam, por exemplo, que a Venezuela foi um dos primeiros países a denunciar o “golpe” sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff, além de ter enviado oito caminhões com 130 mil litros de oxigênio para abastecer os hospitais de Manaus durante a pandemia e 107 médicos brasileiros e venezuelanos.
O ex-diplomata venezuelano e analista internacional, Sergio Rodríguez Gelfenstein, afirma que é trabalho dos diplomatas amenizar a situação nas próximas semanas. Segundo ele, há outras formas de resolver a questão sem que sejam tomadas medidas mais extremadas.
“Eu sempre acho que romper relações não é bom em nenhum caso. Você não pode abandonar os espaços que tem a não ser que te expulsem. Mas por decisão própria você não deve se auto-exilar. Há uma série de medidas diplomáticas que se pode tomar. Chamar embaixadores para consulta, por exemplo, para resolver diferenças. Se você rompe relações, perde a capacidade do Estado, que tem um órgão justamente para resolver esses problemas que é a chancelaria. Eu não romperia relações com nenhum país”, disse ao Brasil de Fato.
Interesse do Brics
A Venezuela considerava que suas reservas de petróleo estimadas em 303 bilhões de barris seriam um trunfo para a entrada no bloco. Hoje, o Brics fornece energia para cerca de 40% da população mundial. Com a entrada dos venezuelanos, o grupo teria uma influência ainda maior no setor energético e teria uma representação ainda maior na Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep.
O próprio presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que discordava da posição do Brasil de vetar a Venezuela, mas que o Brics só tomaria medidas em consenso. Para David Gomes Rodriguez, o veto à Venezuela afeta os interesses de Caracas edo próprio grupo, pela importância no setor energético.
“Não se trata unicamente de uma disputa política ou de um reconhecimento político de um governo legitimamente eleito como de Nicolás Maduro. Se trata do país com as maiores reservas petroleiras do planeta, em uma plataforma que já fornece energia a 40% da população mundial. Em uma plataforma que determina novos mecanismos para desenvolver o comércio internacional inclusive gerando novas possibilidades em relação a moeda de troca internacional de energia, que permite que cada um dos nossos países exerça a soberania”, afirma.
De acordo com Sergio Rodríguez Gelfenstein, o veto tem também o caráter simbólico de reproduzir uma forma de fazer política que é própria do Conselho de Segurança da ONU.
“Nesse sentido, o Brics enviou um sinal muito ruim porque mostrou que existe direito a veto. O Brics quer se diferenciar do Conselho de Segurança da ONU, estabelecendo uma relação mais horizontal, buscando o consenso, mas ao aceitar o direito a veto, torna-se muito difícil distanciar-se de algo que quer superar. Porque o direito a veto é a expressão da ditadura nas relações internacionais. É a imposição de 5 países em relação aos outros 189 que formam parte da ONU”, afirmou.
Edição: Rodrigo Durão Coelho