Coluna

Dirigente de religião ayahuasqueira acolhe dependentes químicos em São Paulo

Imagem de perfil do Colunistaesd
Antropólogo Marcelo Mercante, que faz parte da Casa de Rafael Arcanjo de Apoio ao Dependente - Arquivo pessoal
Se pegar firme no kambô e no daime, a chance de sair dessa é grande, mas o caminho não é linear

Para além da terapia psicodélica, há diversas maneiras de acolher uma pessoa em estado de sofrimento, e a religiosidade e a espiritualidade também se mostram promotoras de saúde e bem-estar, de acordo, inclusive, com a OMS (Organização Mundial da Saúde). E nas religiões ayahuasqueiras não é diferente. 

Quem se aproxima dessas práticas que fazem um hibridismo com saberes ancestrais da floresta tem como trunfo o uso de substâncias como a ayahuasca, o rapé, o kambô e a sananga, as chamadas medicinas tradicionais indígenas, que a ciência vem pesquisando (em escalas diferentes) para desvendar os potenciais terapêuticos no tratamento, principalmente, de doenças e transtornos mentais, mas também de outras questões de saúde.

Há anos é relatado de forma empírica o poder de atuação dessas substâncias no tratamento do alcoolismo e da adicção. Um grande entusiasta desse processo é o renomado psiquiatra especialista em psicodélicos, Wilson Gonzaga, que promoveu durante anos um projeto voltado para a recuperação de dependentes químicos em situação de rua por meio do uso da ayahuasca.

É muito comum encontrar em igrejas e centros ayahuasqueiros relatos de quem conseguiu deixar os vícios e atribui boa parte dos méritos ao “caminho das medicinas”. A ciência ainda parece longe de bater o martelo diante de tanta subjetividade. Porém, mesmo sem entendermos todo o mecanismo de atuação dessas substâncias (e talvez nunca entendamos), negar o potencial dessas substâncias no tratamento da dependência química diante de tantos casos relatados seria o outro lado da mesma moeda de quem trata essas substâncias como uma panaceia.

E quem vive de perto essa história é o carioca Marcelo Mercante, que é antropólogo e dirigente do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte, em São Paulo, e faz parte da Casa de Rafael Arcanjo de Apoio ao Dependente, onde recebe alcoólatras e dependentes químicos que buscam opções de tratamento não convencionais com kambo, ayahuasca e espiritualidade. Marcelo é da linha da Barquinha, uma religião ayahuasqueira fundada pelo mestre Daniel Pereira de Matos por volta de 1945, em Rio Branco, no Acre, que tem como premissa a caridade.

Pesquisador, Mercante é autor de Imagens de Cura: Ayahuasca, Imaginação, Saúde e Doença na Barquinha (Editora Fiocruz) e Reflexos: Ayahuasca, Espiritualidade, Imaginação e Dependência (Editora Edufba).

O antropólogo passou a pesquisar efetivamente a ayahuasca durante o seu doutorado nos EUA sobre os processos de cura vividos por meio das mirações dentro da Barquinha de Rio Branco, comandada pela madrinha Chica. “A miração sempre foi meu tema de pesquisa. Com o tempo, fui mudando de assunto, mas o tema central sempre foi o mesmo, que é sobre a relação mente-corpo para entender como nosso corpo muda em função do que acontece em nossa cabeça”, conta.

Há 13 anos à frente da igreja e 10 acolhendo dependentes químicos, Marcelo deixa claro os limites da sua atuação. “Eu trabalho em duas frentes: uma é o atendimento que eu faço no centro para dependentes e a outra é a igreja. A grande diferença, talvez, entre um tratamento como esse e uma terapia psicodélica é que, por sermos uma igreja, levamos a parte espiritual muito mais a sério. Mas, para além da orientação de um Preto Velho, uma pessoa que está imersa na dependência ou num processo depressivo precisa do acompanhamento de um psicólogo. São especialistas de áreas diferentes lidando com questões diferentes. Eu desconfio muito de um líder religioso que se mete a ser terapeuta e eu desconfio muito de terapeuta que entra na onda de virar guru, entendeu? Cada um no seu quadrado.”

Marcelo explica que nem tudo que emerge em uma experiência psicodélica é simbólico e que há coisas mais factuais que não podem ser interpretadas de uma maneira simbólica como seria na terapia, por exemplo. Mas o pesquisador destaca que tem muita coisa que acontece na vida espiritual que não é tão factual assim e, por isso, precisa de outro tipo de ‘profissional’.

“Há experiências que precisam passar por um processo de interpretação, aí entra o papel do terapeuta, mas há outras situações espirituais que não serão tratadas por um psicólogo. Então essas duas fronteiras têm que ser respeitadas. Eu acho que terapia psicodélica é válida. Ela vai até um ponto da história, assim como acho que tratamento espiritual como a gente faz na Barquinha também é válido. Mas tem uma hora que eu preciso de um terapeuta do lado da pessoa que a gente está acolhendo. Esses cuidados são fundamentais. Eu preciso de um profissional em psicologia para poder atender algumas pessoas, da mesma forma que eu preciso de um médium capacitado para lidar com um guia e com os processos espirituais que aquela pessoa que está passando por uma questão de dependência ou de depressão pode apresentar”, explica.

Marcelo toca num ponto fundamental do avanço da discussão sobre o uso de psicodélicos que é a forma muitas vezes irrelevante que, principalmente, as ciências bioquímicas tratam as experiências espirituais, podendo reduzi-las a meras criações da mente. Mas sabemos que não é bem por aí. As religiões e a prática das suas espiritualidades tendem a tratar de forma mais simbiótica as questões materiais e as questões espirituais, trazendo a possibilidade de um olhar mais holístico.

Já em relação ao uso do kambô (a vacina do sapo, na verdade, de uma perereca amazônica), que é a “porta de entrada” para o tratamento da dependência, Marcelo trata de forma mais pragmática, buscando entender o histórico de saúde física e fazer um acolhimento humanizado.

“Eu não sou terapeuta. Eu converso para entender um pouco da história da pessoa, para saber do seu histórico médico, se ela tem problema cardíaco, de estômago… Mas eu não entro nos detalhes da vida da pessoa, porque não me cabe. E, depois do processo de desintoxicação pelo kambô, a pessoa é convidada a participar dos trabalhos na Barquinha, onde vamos trabalhar questões espirituais. E, caso seja necessário, temos psicólogos para fazer a parte do trabalho que não nos cabe como igreja. Mas nada disso faz milagre. As sessões de kambô dão uma janela para segurar a fissura, mas tem gente que tem recaída no mesmo dia. Porém, se pegar firme no kambô e no daime, a chance de sair dessa é grande, mas o caminho não é linear.”

Conheça mais o trabalho da Barquinha aqui.
 

Edição: Martina Medina