CRIME

Sob crítica dos atingidos, governo federal assina repactuação da reparação da bacia do Rio Doce no caso Mariana

Após nove anos do rompimento da barragem do Fundão, novo acordo prevê o pagamento de R$ 170 bilhões 

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Cerimônia de assinatura do acordo de repactuação da reparação da bacia do Rio Doce, em Brasília, nesta sexta-feira (25) - Ricardo Stuckert / PR

O governo federal assinou, nesta sexta-feira (25), o acordo de repactuação da reparação da bacia do Rio do Doce, devido ao rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana (MG), ocorrido em novembro de 2015. O empreendimento era de responsabilidade da mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da BHP Billiton, e à época, foi firmado um acordo em que, segundo os atingidos, empoderou as empresas em detrimento da população afetada pelo crime.  

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu que, embora seja o maior acordo de reparação já realizado na história, ele está aquém das expectativas dos atingidos.  

“Eu fui, durante muito tempo, dirigente legal e parte da minha vida foi definida por conclusões de acordos e mesmo muitas vezes o acordo que eu assinava. Eu que eu levava para minha categoria provar, eu mesmo não estava 100% de acordo. O que me fazia fazer um acordo, era a certeza da importância do momento político e era a certeza de que aquele acordo era melhor do que entrar numa guerra”, declarou o presidente, que ainda criticou o processo de reparação em curso, conduzido pela Fundação Renova, que representa as mineradoras.  

“A gente ainda não sabe o que foi feito com o gasto da fundação criada para cuida disso, esse é o dado concreto. Nem o Ministério Público sabe, nem a Defensoria sabe, nem o governo do estado sabe, nem o governo federal sabe. Tinham 37 bilhões e foram gastos, mas que a gente não sabe te destino”, afirmou Lula. “Eu espero que as empresas mineradoras tenham aprendido uma lição: ficaria muito mais barato ter evitado o que aconteceu”, finalizou. 

Em coletiva de imprensa, o Advogado Geral da União (AGU), Jorge Messias, disse que a fiscalização dos recursos aplicados é de competência do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), mas reconheceu a falta de transparência da fundação no processo de reparação. Segundo o AGU, a repactuação do acordo não exime as empresas a concluírem as obras e ações já iniciadas. O Brasil de Fato entrou em contato com a Renova e aguarda um posicionamento.  

Também coube a Messias o detalhamento do novo acordo, que segundo ele, foi necessário a partir do “descumprimento sistemático pela Fundação Renova das deliberações do Comitê Interfederativo (CIF), do elevado nível de questionamento judicial dos temas, da lentidão do Judiciário para o julgamento, da ineficiência e descrédito da Fundação Renova e da inviabilidade e lentidão do Comitê Interfederativo (CIF), criado em 2015 para acompanhar o processo de pactuação da reparação. 

“Antes de mais nada, é preciso dizer que, após nove anos da tragédia e dois acordos firmados – em 2016, e a repactuação que ocorreu em 2018 –  muitos erros foram cometidos, e também muitos acertos foram obtidos. E a partir desses erros e dos acertos nós podemos refletir conjuntamente, tanto poder público quanto as empresas, e a partir deste momento, nós conseguimos construir a repactuação do novo acordo da Bacia do Rio Doce”, declarou o ministro. 

O novo acordo tem previsão de um total de R$ 170 bilhões, considerando que já foram gastos pela Fundação Renova R$ 38 bilhões, o provisionamento imediato de outros R$ 32 bilhões, e outros R$ 100 milhões que serão pagos pelas empresas durante os próximos 20 anos.

Diante do julgamento iniciado na última segunda-feira (22) em um tribunal de Londres, que vai decidir sobre a responsabilização da empresa anglo-australiana BHP Billiton, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, afirmou que o acordo fortalece o princípio da soberania do sistema de Justiça brasileira.  

“Eu fui conversar com o presidente Lula e disse que seria muito ruim para o Judiciário brasileiro se esse assunto for resolvido fora do Brasil”, declarou o magistrado. Barroso ainda fez referência às críticas dos movimentos sociais sobre os lucros das mineradoras após o rompimento da barragem. “Tragédias não podem ser tratadas como investimento financeiro. Não faz bem a causa da humanidade a monetização da desgraça”, afirmou o ministro. 


Distrito centenário de Bento Rodrigues foi completamente soterrado pela lama da barragem de Fundão. / Isis Medeiros/MAB

Além dos já citados, participaram da reunião representantes do Judiciário de Minas Gerais, Espírito Santo, assim como membros dos ministérios públicos estaduais e federal, como o procurador-geral da República, Paulo Gonet. Também estiveram presentes o vice-presidente Geraldo Alkmin, os ministros da Casa Civil, Rui Costa, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, da Igualdade Racial, Anielle Franco, da Saúde, Nísia Trindade, dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e os governadores dos dois estados atingidos, Romeu Zema (Novo) e Renato Casagrande (PSB), de Minas e Espírito Santo, respectivamente. Também estiveram presentes os presidentes das mineradoras Vale e da BHP. 

O acordo 

Os recursos serão administrados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico (BNDES) e divididos em áreas de abrangência, que serão coordenadas pelos diferentes ministérios do governo, assim como o os governos dos estados atingidos. 

Transferência de Renda – O acordo prevê R$ 3,75 bilhões para o pagamento de um auxílio mensal a pescadores e agricultores atingidos por até quatro anos. O benefício terá valor inicial de 1,5 salário-mínimo nos três primeiros anos e 1 salário nos últimos 12 meses, e será pago através de um cartão da Caixa Econômica Federal. Essa linha de reparação será coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). 

Atingidos e Recuperação Econômica - Estão previstos R$ 6,5 bilhões para investimento em Programas de Retomada Econômica –PRE, em três eixos: fomento produtivo, desenvolvimento rural e um último que engloba projetos de educação, ciência, tecnologia e inovação. Ainda neste eixo, estão R$ 5 bilhões para constituição de Fundo Popular da Bacia do Rio Doce para investimentos em projetos e programas de retomada econômica e produtiva, e outros R$ 500 milhões para manutenção da Assessoria Técnica Independente -ATI por mais 48 meses, após a assinatura do acordo. 

Assistência Social - R$ 640 milhões serão destinados para investimento no fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), nos municípios da Bacia do Rio Doce. 

Mulheres atingidas - R$ 1 bilhão será empregado para o pagamento de um auxílio financeiro às mulheres que foram vítimas de discriminação de gênero durante o processo reparatório. 

Indígenas, povos e comunidades tradicionais - R$ 8 bilhões serão utilizados para a recuperação dos territórios indígenas que foram atingidos pelo rompimento da barragem. Comunidades que não tinham sido contempladas no primeiro acordo serão inseridas no programa de recuperação. Segundo o governo, foi realizada uma consulta prévia, livre e informada às comunidades para a definição do ponto.  

Meio Ambiente – R$ 12,13 bilhões serão investidos na reparação ambiental, sendo R$ 8,13 bilhões que serão alocados em um Fundo Ambiental da União, para o desenvolvimento de ações de recuperação e compensação ambientais, e outros seis bilhões, que ficarão sob responsabilidade dos estados atingidos, para os mesmos fins. Outros R$ 17,46 bilhões vão para Projetos Socioambientais dos Estados, de natureza mista, ou seja, social, ambiental e de retomada econômica da bacia. 

Pesca - R$ 2,44 bilhões serão direcionados para o Plano de Reestruturação da Gestão da Pesca e Aquicultura – Propesca e ações a serem desenvolvidas pela União e Estados com o objetivo promover a reestruturação das cadeias produtivas da pesca e da aquicultura, hoje proibidas por decisões judiciais.  

Saúde - Para aplicação em saúde coletiva na bacia do Rio Doce serão destinados R$ 12 bilhões, sendo: R$ 3,6 bilhões para investimentos em estudos, infraestrutura e equipamentos e R$ 8,4 bilhões para constituição de Fundo Perpétuo, com o objetivo de utilização dos rendimentos em custeio adicional ao SUS na Bacia. 

Saneamento - R$ 11 bilhões serão investidos em obras de saneamento básico nos municípios da bacia, com o propósito de assegurar e antecipar as metas de universalização, com redução de tarifas. 

Enchentes - Os estados atingidos vão receber R$ 2 bilhões para criação de um fundo perpétuo, com rendimentos aplicados no enfrentamento às consequências das enchentes, na retirada de lama, recuperação de solos e infraestrutura. 

Rodovias - R$ 4,3 bilhões serão empregados na duplicação e melhorias de rodovias federais BR-262 e BR-356, que cortam a bacia do Rio Doce. 

Municípios - As 49 cidades atingidas pelo rompimento da barragem receberão R$ 6,1 bilhões, que serão distribuídos conforme índice definido pelo Consórcio dos Municípios – CORIDOCE. Já o município de Mariana, onde ocorreu o crime, receberá sozinho o valor de R$ 1,65 bilhão para o encerramento de uma Ação Civil Pública movida pelo Executivo municipal.  

Fiscalização - Finalmente, o acordo prevê R$ 1 bilhão para investimentos no fortalecimento institucional da Agência Nacional de Mineração -ANM, com o objetivo de melhorar sua capacidade de fiscalização de barragens. 

Críticas

Para o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), nove anos depois do crime cometido pelas mineradoras, não há o que celebrar. “A primeira coisa dizer que nós não estamos em dia de festa. Essa assinatura, que demorou muito, considerando os nove anos de espera por reparação. E ela existe por causa de pessoas que morreram. Acho que é importante dizer isso. As empresas vão dizer que é uma coisa boa. Estarmos aqui é uma coisa ruim porque é por causa de pessoas que morreram pela negligência das empresas”, declarou Thiago Alves, integrante da Coordenação Nacional do MAB. 

Na avaliação de Alves, o valor global previsto no acordo ainda é insuficiente, principalmente se considerado o baixo valor destinado às reparações individuais e o tempo de 20 anos para a aplicação dos recursos. O MAB critica a ausência dos atingidos na mesa de repactuação.  

“Alguns dizem que sim, houve participação. O que nós estamos dizendo é o governo federal nos permitiu ter acesso a algumas informações importantes, via Secretaria Geral da Presidência. Mas a Justiça não nos permitiu a participação de social”, afirmou, se comprometendo ainda a insistir na participação dos atingidos durante o processo de aplicação dos recursos e definição das ações prioritárias. 

Questionado pelo Brasil de Fato, o ministro da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, afirmou que será criado um Conselho Interfederativo de Participação Social com a presença dos atingidos. “Nossa proposta é que seja um conselho paritário, isto é, 50% representantes do governo federal, 50% dos movimentos sociais organizados na bacia e os atingidos e representantes dos atingidos. E que esse conselho possa deliberar, a partir dos editais formados no próprio conselho para um fundo poder tomar as decisões políticas e técnicas dos projetos que serão encaminhados para o fundo para a execução e operacionalização do BNDES”, disse o ministro.


Atingidos fizeram diversos atos cobrando reparação nos últimos nove anos / Joka Madruga/MAB

Em nota divulgada na quinta-feira (24), o MAB considera que problemas estruturais relacionados às atividades de mineração são “resultado direto do processo de privatização”. “O crime em Mariana e todas as violações decorrentes dele é resultado direto do processo de privatização, que explora todo povo brasileiro, se apropria de nossas riquezas e beneficia exclusivamente o sistema financeiro e a ganância do grande capital”, diz o comunicado. 

'Porta de esperança'

Para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a importância do acordo também se estende ao povo que vive nos 37 assentamentos ao longo da bacia do Rio Doce. 

“Viemos ao longo desses 9 anos lutando por justiça e construindo o Programa Popular de Agroecologia da Bacia do Rio Doce”, afirmou o movimento, em nota. 

“Abre-se um tempo de muita esperança, de avanços, a partir da repactuação assinada hoje. Temos a certeza de que com a oportunidade de ampliação de nosso Programa de Agroecologia, poderemos alcançar mais milhares de hectares de plantio de florestas nativas e aumentar para grandes escalas a produção de alimentos saudáveis”, acrescenta o texto. 

Para o MST, reparar o crime cometido é obrigação das empresas e do Estado e, portanto, aos movimentos populares, cabe o compromisso histórico com a luta por justiça social e ambiental, para que as instituições cumpram com suas obrigações. 

Leia a nota do MST completa clicando neste link. 

Leia a nota do MAB completa clicando neste link.  

 

Edição: Nathallia Fonseca