A população em situação de rua da cidade São Paulo saltou 24% só no primeiro semestre de 2024. As condições de vida das 80,3 mil pessoas que estão entre calçadas e abrigos da capital paulista são um dos principais desafios do próximo prefeito, que será escolhido no domingo (27).
Os números são do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e calculados a partir dos dados do CadÚnico, coletados pelo governo federal a partir das administrações municipais. O prefeito Ricardo Nunes (MDB), que tenta emplacar mais quatro anos no cargo contra a candidatura de Guilherme Boulos (Psol), não se pauta pelo levantamento da UFMG.
A gestão de Nunes segue trabalhando com a estimativa de quase 32 mil pessoas em situação de rua contabilizadas em um censo feito pela prefeitura em 2021. O espaço nos equipamentos de acolhimento, no entanto, não alcança mesmo este contingente. Durante a campanha, o prefeito anunciou ter ampliado de 14 mil para 29,4 mil as vagas de abrigos da prefeitura para essa população.
“Na cidade de São Paulo nós temos uma situação muito grave, porque a população em situação de rua está crescendo muito rápido. Além disso, temos uma rede de assistência social que deveria diminuir essa população e que está precária, ineficiente e cada dia mais quebrada”, avalia Alderon Costa, da Associação Rede Rua. “Recebemos reclamações de limpeza, estrutura dos equipamentos, formação dos funcionários”, elenca.
“Qual a primeira necessidade que a pessoa precisa? De um acolhimento, um lugar para dormir, para tomar água, para comer. E isso hoje nós não temos. Falo isso com muita tranquilidade”, diz Alderon.
“Para pedir o acolhimento à prefeitura [para outra pessoa], você tem que ligar no 156. Este número é para tudo na cidade: poda de árvore, atendimento do SAMU e inclui a população em situação de rua. Não é eficiente” critica o coordenador da Rede Rua.
O Brasil de Fato entrou em contato com a prefeitura por e-mail, telefone e mensagens de WhatsApp. Ao longo de três dias, a assessoria pediu extensão dos prazos, que em seguida descumpria, para enviar um posicionamento sobre as críticas apresentadas, as denúncias de precarização dos serviços, o funcionamento da central de vagas e as ações para mitigar o aumento das pessoas vivendo nas ruas.
Após publicação da matéria, a Prefeitura respondeu aos pedidos e afirmou "ser descabida a afirmação da reportagem de suposta precarização no atendimento e nas condições de trabalho dos funcionários de CAPS e centros de acolhida da cidade" e que "entre 2021 e 2024, houve um aumento de 47% nos equipamentos da rede, passando de 138 para 203, e a oferta de vagas de acolhimento cresceu 87%: de 15.488 vagas em 2021 para 29 mil vagas neste ano".
A nota, porém, confirma que "as políticas públicas são baseadas no Censo da População em Situação de Rua de 2021". Atendimentos na Saúde, Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e o fluxo das equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) também foram abordados no posicionamento. A nota completa está aqui.
A Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV) entregaram uma carta sobre o tema aos candidatos que disputam o segundo turno. “Partimos de uma premissa inarredável: a vida na rua deve ser considerada uma situação extrema e transitória”, pontua o documento.
A experiência não tem sido passageira para Jorge Ricardo Maurício, de 63 anos. Nascido no Rio de Janeiro (RJ), veio a São Paulo aos 25 anos. Em 2018, a falta de serviço como pedreiro o impossibilitou de pagar a pensão onde morava. Foi para a rua. “Vinha uma entidade, distribuía cobertor. Aí eu dormia na praça da Sé”, conta. Assim ficou durante três anos. Dos últimos quatro para cá, vive em um albergue.
“Precisaria de o prefeito ajudar a gente”, opinou Jorge, em uma calçada na Barra Funda, sob uma chuva fina, ao comentar que assistiu todos os debates eleitorais. “Abrir mais albergue, porque tem muita gente na rua. Tem muita gente na rua... Está aumentando”, observa. “Para me ajudar, só na mega-sena”, sorri. Toda semana, vai ao posto de saúde pegar remédios. E compra um bilhete na loteria.
Originário de Salvador (BA) e caçula de 14 irmãos, Antônio da Paz é o único da família que, em suas palavras, “anda pelo mundo”. Está em situação de rua na capital paulista há três anos. “Não estou jogado na rua, estou em abrigo. Esperando a Deus que um dia chegue minha posição de novo, do que eu era. Ter minha casa alugada, ter minha família”, diz.
Porta giratória, não de saída
“Nós já estamos cansados do mesmo: do albergue”, atesta Darcy Costa, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). “A insalubridade dos equipamentos faz com que as pessoas recusem as ofertas de acolhimento dentro dos serviços. Isso não atrai. Muita questão de violência, falta de organização que valoriza a potencialidade do sujeito”, ilustra.
Entre 27 de maio e 1º de julho deste ano, 1.207 pessoas em situação de rua não aceitaram a condução para abrigos municipais, de acordo com levantamento da prefeitura pedido pela CNN. Entre os principais motivos alegados estão a distância do serviço, a não concordância com as regras do local e a falta de vaga para companheiro/a ou animal de estimação.
“Ainda estamos vivendo dentro de uma porta giratória, não existem portas de saída. A única política que enxergamos como uma porta verdadeira de saída para a população em situação de rua é a habitação”, defende Darcy Costa.
Paralelamente a este cenário, São Paulo tem cerca de 589 mil domicílios vazios, segundo o Censo Demográfico de 2022. O número representa cerca de sete vezes o contingente de pessoas vivendo nas ruas no cálculo da UFMG, e 18 vezes, no da gestão Nunes.
Em outra carta compromisso entregue aos candidatos, desta vez escrita por 11 organizações que compõem o Fórum da Cidade de São Paulo em Defesa da População em Situação de Rua, o acesso à moradia é também defendido “em primeiro lugar”.
O texto, assinado por entidades como o Centro de Convivência É de Lei e o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, demanda políticas de acolhimento em liberdade, expansão do acesso à água potável, banheiros, lavanderias e bagageiros, veto à arquitetura hostil, expansão das cozinhas solidárias e do Bom Prato Paulistano, aumento dos serviços de saúde integral, entre outras. Boulos assinou a carta, se comprometendo com as reivindicações. Nunes, não.
Violência da GCM
“Para além da violência de estar morando em situação de rua, de não ter uma dignidade na cidade, de ser tutelado pela prefeitura, vem também a questão da violência da GCM [Guarda Civil Metropolitana]”, salienta Alderon, ao mencionar as incursões diárias da chamada limpeza urbana.
“Muitas vezes recolhem os documentos, remédio, não há diálogo com eles. Uma atuação que muitas vezes vai contra a liminar do ministro Alexandre de Moraes, que estabeleceu que essas zeladorias não podem ser violentas com as pessoas em situação de rua e que não podem obrigar as pessoas a saírem do lugar que estão”, denuncia Alderon Costa.
Propostas dos candidatos
Em seu programa de governo, Ricardo Nunes tem uma seção dedicada à população em situação de rua. Nela não há nenhuma proposta, a não ser "vamos fazer muito mais". O texto se limita a listar o que foi feito.
Entre as políticas mencionadas estão a Vila Reencontro, “serviço de moradia transitória” com cerca de 2,6 mil vagas; as dez tendas das operações altas e baixas temperaturas; e o Projeto Recâmbio, que enviou quase três mil pessoas em situação de rua de volta às suas cidades de origem.
Já Guilherme Boulos afirma, em seu programa, que vai qualificar os centros de acolhida “por meio da reforma dos equipamentos”, o que inclui “aumentar o número de banheiros, resolver os problemas estruturais de segurança e melhorar as condições sanitárias e de habitabilidade”.
O membro do Psol e liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) diz que em sua gestão haverá vagas nos equipamentos para todas as pessoas em situação de rua. E que haverá, em todos, espaços para animais de estimação e carroças usadas por catadores.
Boulos se compromete também com a inclusão desta população em um programa habitacional municipal e nos empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, além da criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) móveis.
Para Alderon Costa, São Paulo precisa de “uma gestão que faça uma mudança radical de toda a assistência social e do serviço que envolve a população em situação de rua”.
“É preciso requalificar o fluxo da prefeitura. Esse 156 já provou que não funciona, é necessário ter um mecanismo próprio para pessoas em situação de rua”, reforça.
“Investir em trabalho. O Programa Operação Trabalho (POT) se mostra eficiente e é uma forma de dar autonomia para as pessoas, faltam só alguns reparos, como sistematizar o acompanhamento e melhorar os cursos”, ilustra o membro da Rede Rua. “Nós temos bastante possibilidades, o que falta realmente é uma vontade política e investimento”, resume.
Edição: Nathallia Fonseca