Coluna

Novo sistema de participação social será teste de autonomia para a EBC

Retomada da participação na EBC é passo fundamental - Foto: Rafa Nedemeyer/Agência Brasil
Eleição para comitês retoma algum diálogo após 8 anos, mas atribuições frágeis são obstáculo

Pedro Rafael Vilela* 

 

Os serviços de comunicação de países com forte tradição democrática contam, em seus amplos 'ecossistemas' midiáticos, com a existência de empresas públicas de mídia que representam um importante equilíbrio na oferta de conteúdos informativos, culturais e educativos frente à presença, muitas vezes hegemônica, das empresas de mídia comerciais. Podemos citar Reino Unido, Canadá, Japão, Alemanha, Portugal, França, Itália e Estados Unidos, para materializar alguns casos mais exemplares.

Na prática, esse modelo de mídia pública (public broadcasting) é visto como um pilar fundamental para a pluralidade e a diversidade na chamada esfera pública (ambiente social no qual o debate público de ideias se estrutura), mas desde que observadas ao menos duas características essenciais, em parâmetros definidos em documentos chancelados pela própria Organização das Nações Unidas (ONU).

A primeira delas, de um lado, é a autonomia frente aos ditames de mercado, que se dá com a garantia de financiamento público estável e compatível. Já a segunda característica é a existência de mecanismos de participação social e autonomia de gestão que minimizem ou eliminem as pressões político-partidárias ou de governos, a fim de evitar que possam causar impactos negativos na programação das emissoras, como censura e controle editorial, inviabilizando o justamente cumprimento dos objetivos de contribuição qualitativa ao debate público. Contribuição essa que, ao fim e ao cabo, é a própria efetivação do que chamamos de direito à comunicação, que vai além da liberdade de expressão em si, mas configura-se no direito da cidadania de contar com uma oferta diversificada de conteúdos nos meios de comunicação, estimulada por políticas públicas de fato. Em termos mais atuais, é a garantia de um sistema que assegure a integridade da informação (confiabilidade e precisão), em contraposição ao avanço e disseminação de informações falsas, desinformação e discurso de ódio.

Fim do hiato no Brasil?

A expressão nacional desse modelo nasceu mais tardiamente no país, com a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2007, mas que não chegou a alcançar uma década de experiência. Já em 2016, a empresa pública foi desmantelada pelo governo golpista de Michel Temer, numa medida cirúrgica que extinguiu justamente o mandato do diretor-presidente da empresa e o seu Conselho Curador, um colegiado de alta gestão da empresa com ampla participação da sociedade civil organizada e com poderes para analisar e produzir recomendações obrigatórias sobre programação das emissoras do grupo, garantindo autonomia editorial e observando princípios como pluralidade, diversidade e regionalidade.

De lá para cá, a EBC foi desmontada com perda de estrutura e demissão de centenas de funcionários, sofreu um processo (interrompido) de privatização e foi redirecionada basicamente para atender a comunicação oficial de governo. Sucessivas gestões desastrosas e autoritárias eliminaram qualquer diálogo social e perseguiram empregados que se opuseram à censura e aos desmandos.

Agora, cerca de 8 anos após o início da tragédia do grande projeto brasileiro de comunicação pública, o governo federal, na metade do atual mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, anuncia o fim do hiato e a retomada do diálogo institucionalizado no setor. Até a próxima semana, estão abertas as inscrições para o Sistema Nacional de Participação Social (Sinpas) da EBC, que constituirá dois novos colegiados: o Comitê Editorial e de Programação (COMEP) e o Comitê de Participação Social, Diversidade e Inclusão (CPADI). Juntos, eles reunirão 27 integrantes de diferentes segmentos da sociedade. As eleições para os integrantes, indicados por entidades da sociedade civil, ocorrerão ao longo novembro.

Este foi o mecanismo encontrado para reconstruir alguma participação da sociedade civil desde a extinção do Conselho Curador. O Sinpas foi gestado ao longo de todo o ano em um grupo de trabalho constituído por integrantes do governo federal - representados pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) -, da EBC, do Conselho Curador cassado e de representantes sindicais dos trabalhadores da empresa. O relatório final foi entregue em julho. Da parte da EBC e do governo, o tom celebratório com o novo modelo é previsível, mas esconde algumas amarras e limites que eles mesmos impuseram durante a formulação do projeto, o que pode frustrar a expectativa dos mais otimistas.

Diante da difícil correlação de forças do atual governo no Congresso Nacional, o envio de um Projeto de Lei ou Medida Provisória (MP) desfazendo o desmonte de Temer na EBC, com a recriação do Conselho Curador, não chegou a ser sequer uma opção. A sociedade civil organizada, reunida em torno do Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, foi quem elaborou e apresentou a ousada proposta de um sistema com dois colegiados, sendo um vinculado ao outro. Isso porque o Comitê Editorial e de Programação, que foi incluído na lei após a extinção do Conselho Curador, é praticamente uma entidade decorativa, com nenhuma atribuição relevante prevista na lei, algo que, infelizmente, não poderia ser alterado neste momento. Era preciso, portanto, criar um novo colegiado, que passou a ser chamar Comitê de Participação Social, Diversidade e Inclusão (CPADI).

Atribuições limitadas

Para que o CPADI não se tornasse também uma entidade decorativa, um simulacro de participação social, as entidades da sociedade civil no Grupo de Trabalho com governo e direção da EBC lutaram muito pela aprovação de atribuições que realmente fizessem a diferença no trabalho de acompanhamento da programação das emissoras públicas e cumprimento da lei pela EBC, como a observação de prazos para manifestação e a expedição de pareceres analíticos e com recomendações, ainda que não obrigatórias. Usando argumentos jurídicos e tecnocratas, Secom e direção da EBC atuaram para desidratar parte dessas atribuições e, portanto, não terem de se comprometer com as deliberações do colegiado, um contrassenso no discurso em defesa da efetiva participação social.

Na prática, o Comitê poderá certamente fazer muito barulho, o que por si só é muito importante, mas não disporá de ferramentas para que seus relatórios sejam efetivamente acatados pela direção da empresa.

Outra das fragilidades impostas, por exemplo, foi a recusa do governo em prever o Sinpas em decreto presidencial, o que daria um status normativo mais forte ao novo modelo, que precisará resistir ao tempo, sobretudo em uma conjuntura onde conceitos como democracia e participação social estão sob ataque e distorção permanente. Com isso, a norma que criou o sistema está em uma portaria interna da EBC, mais facilmente revogável do que um decreto.

Potencial catalisador

Apesar dos obstáculos mencionados, é inegável que a retomada da participação social no acompanhamento das emissoras públicas é um avanço fundamental e aponta na direção do que deve ser o projeto de comunicação pública.

Há um potencial para que esses novos colegiados energizem o envolvimento de um amplo espectro de organizações da sociedade civil, conferindo mais legitimidade social à EBC e ajudem no trabalho de fiscalização do cumprimento de sua missão legal. Este será um grande teste de autonomia editorial da EBC frente a interesses dissonantes com os da cidadania.

* Pedro Rafael Vilela é jornalista, mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB) e repórter da Agência Brasil, veículo da EBC. Integrante do Diracom, atualmente é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e estudante de graduação em Ciências Sociais na UnB. Foi secretário-executivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) por 8 anos (2014 a 2022) e participou do Grupo de Trabalho que formulou o novo Sistema de Participação Social na EBC. 

Edição: Nicolau Soares