Mudança no IR explicita conflito entre quem vive de salário e quem vive de lucro
A reforma do imposto de renda pode ser a grande marca do terceiro governo Lula: uma promessa de campanha que, se cumprida integralmente, servirá de base econômica para o projeto de 12 anos que o ex-ministro José Dirceu tem colocado como horizonte.
Até agora, a política econômica do governo Lula foi marcada pela reconstrução do estrago feito nos dez anos de desmonte do Estado – de Joaquim Levy a Paulo Guedes. No orçamento, o governo está recompondo os programas sociais com o espaço criado pela PEC da transição e pelo novo arcabouço fiscal, apesar de a gritaria recente fazer parecer que estamos vivendo um grande programa de austeridade. No entanto, o mesmo arcabouço fiscal vai limitar as possibilidades nos próximos anos, como já alertei aqui no Brasil de Fato diversas vezes.
Além da recomposição orçamentária, os outros dois grandes destaques econômicos são a recuperação de receitas e a primeira parte da reforma tributária, sobre os impostos do consumo. Esta foi a parte mais fácil da reforma tributária. Sim, aquela que levou 30 anos para sair foi a parte fácil.
A reforma do imposto de renda, por outro lado, coloca a luta de classes no centro: aqui o conflito será entre quem vive de salário e quem vive de lucro. Hoje, por incrível que pareça, quem mais paga imposto de renda proporcionalmente são os trabalhadores mais bem pagos, não os capitalistas. Como podemos ver no gráfico do Centro de Pesquisa em Macroeconomia e Desigualdade da USP (Made-USP), o imposto de renda efetivo hoje (a curva rosa) cresce até os 99% mais ricos, mas despenca quando chega nos milionários. Ou seja, quem paga muito imposto de renda são os trabalhadores com sindicatos fortes, servidores públicos mais bem remunerados e profissionais liberais.
Mudar essa realidade e colocar os milionários para pagar sua parte da conta seria uma mudança histórica no Brasil. Até o momento, sabemos pouco sobre o que virá na reforma do imposto de renda. Sabemos que o presidente Lula quer usar a reforma par a cumprir a promessa de campanha de isentar a renda até R$ 5 mil. Além de tirar as classes populares do radar do imposto de renda, essa medida também favorece trabalhadores com remuneração maior.
O ministro Haddad quer compensar o custo dessa medida com uma alíquota efetiva mínima para os milionários: cobrar no mínimo 15% de imposto de renda dos milionários, independente da origem da renda. Isso transformaria o "penhasco" do lado direito da curva rosa do gráfico em uma subida contínua, como nas curvas azul e verde. Mesmo que a reforma seja "neutra na arrecadação", como já disse Haddad, o avanço ainda seria grande: estaríamos aliviando a conta de trabalhadores e trabalhadoras, passando a conta para quem hoje paga proporcionalmente quase nada.
Mais importante, a reforma pode ser o primeiro passo para mudanças mais ousadas em uma conjuntura política mais favorável. Por exemplo, poderemos lutar para transferir os impostos do consumo – que são pagos por todos de forma igual, independente da renda – para impostos da renda, aumentando os 15% propostos hoje. Ou, se alterarmos o arcabouço fiscal, poderemos retomar a discussão sobre financiamento adequado para os direitos que a constituição garante, como saúde e educação universais e gratuitas.
É claro que os super-ricos não aceitarão calados. A estratégia é clara: insistirão que o governo não pode focar só na arrecadação, que é necessário haver corte de gastos ou que os ricos irão embora do país (Deus sabe para onde, pois seus destinos favoritos cobram mais impostos que o Brasil).
Infelizmente, o discurso fiscalista tem encontrado eco dentro do governo, ainda que não tenha se materializado com a gravidade que alguns comentaristas sugerem. Na semana passada, ao invés de discutirmos a proposta de taxação dos milionários em 15%, perdemos tempo discutindo uma notícia sem fontes ou aspas lançada pela imprensa empresarial sobre "estudos" do governo para cortar FGTS e seguro-desemprego. Os discursos da equipe econômica não ajudaram nem um pouco a matar a polêmica.
Para que a reforma mais importante não se perca no meio do pânico fiscal da imprensa empresarial e do mercado, é importante que a equipe econômica separe as coisas. Se a reforma será fiscalmente neutra, não faz sentido anunciar seus pedaços em meio a conversas sobre metas de superávit fiscal.
Além disso, o governo tem que marcar data e combinar a estratégia de comunicação com movimentos sociais e sindicatos. Essa combinação é importante para evitar o rebaixamento antecipado das propostas enviadas ao Congresso, que tem sido a regra das peças econômicas. O objetivo deveria ser criar uma situação como foi o PL do Estupro: criar uma atmosfera na opinião pública que imponha um custo claro para parlamentares que vão votar contra. Temos que deixar claro quem são os parlamentares que gostam de cobrar imposto de trabalhador e dar mamata para milionário.
Sem combinar com os movimentos e os formadores de opinião, o governo manterá a esquerda dispersa: continuaremos nos perdendo nos balões de ensaio da imprensa empresarial, incapazes nos recompormos para defender os avanços já obtidos pelo governo e garantir a reforma mais importante.
Edição: Thalita Pires