O audiovisual negro é feito a partir das cidades e precisa das políticas públicas municipais
Duas crianças estão sentadas em frente a um lençol branco que pende de uma árvore. Entre o lençol e elas, um projetor. O menino, que acha que “a vida às vezes parece um sonho”, passou o dia cuidando da irmã. A casa estava sem energia elétrica e a mãe foi trabalhar. “Se eu te contar um segredo, cê promete que não conta pra ninguém?”, pergunta ele. “Ah, eu vou tentar, né. Às vezes escapole”, explica a menina. “É que eu peguei o cinema lá da escola”.
O cinema lá da escola. “No cinema, a gente ri e chora juntos”, diz ele. “Ah, o cinema é igual nós então, a gente ri e chora junto”, responde ela. O menino queria dar um presente de aniversário para a irmã, mas estava sem dinheiro. Ele deu a ela o Cinema. No final do curta 4 Bilhões de Infinitos, a irmã e o irmão estão sentados na frente daquela tela em branco, numa partilha silenciosa de imenso afeto, nesta que pode estar, tranquilamente, entre as cenas mais lindas do cinema brasileiro contemporâneo.
Dirigido por Marco Antônio Pereira, o filme foi realizado em Cordisburgo, interior de Minas Gerais, e arrebatou plateias nos festivais por onde passou nos anos de transição entre a experiência solitária das telas domésticas do confinamento e o momento em que finalmente pudemos estar, presencialmente, de volta à experiência coletiva de ver filmes.
Marco Antônio é um cineasta negro. Ele é uma entre várias outras pessoas negras que fazem filmes a partir de seu arredor, do território conhecido onde cresceu e em que passou a vida a observar os tempos, os saberes, as formas de existir e de se imaginar no mundo. Junto de tantas outras pessoas, ele faz parte de uma coletividade que, espalhada pelo país, acredita nas possibilidades das histórias contadas em imagens e sons e das múltiplas formas de se trabalhar com e no audiovisual. Essas pessoas vivem, e fazem seu trabalho em municípios – pequenos, médios e grandes – espalhados em todas as regiões do país. O audiovisual negro brasileiro é feito a partir das cidades e precisa das políticas públicas municipais, com Ações Afirmativas, para se firmar como uma possibilidade real de trabalho, de renda, de desenvolvimento econômico para as pessoas que se dedicam a ele e para as próprias cidades que o abrigam.
Em 26 de setembro deste 2024, a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) lançou a Carta do Audiovisual Negro às Candidaturas Antirracistas destinada a postulantes de cargos no Executivo e Legislativo as eleições municipais. A carta reúne um conjunto de análises e proposições a partir do atual contexto nacional de retomada dos processos democráticos e reconstruções para a Cultura, considerando os necessários avanços nas políticas afirmativas e na Reparação Histórica para a população negra.
Inicialmente destinada às candidaturas, o que está articulado no texto faz dele um documento vivo, aberto, para proporcionar diálogos nestes últimos meses de 2024 e a partir do novo ano. As suas proposições são direcionadas a todo espectro político-ideológico, com a prerrogativa óbvia do compromisso com o enfrentamento ao racismo e com o desenvolvimento da Cultura nos territórios. O documento não traz propostas concretas, porque elaborar essas propostas é função de quem está no poder público. A carta funciona como um manifesto aberto para quem está na política institucional, mas também para quem lida com políticas públicas a partir da sociedade civil e quem está em agentes econômicos do mercado audiovisual, porque além de trazer proposições, fazemos um diagnóstico na perspectiva dos avanços que possibilitaram o aumento da presença de pessoas negras nesse setor. E ela é, sobretudo, uma construção coletiva que vocaliza os interesses de profissionais do audiovisual negro.
Entre as indicações para gestores públicos e legisladores municipais, está a necessidade de implementação ou aprimoramento de Políticas Afirmativas e Empresas Vocacionadas para o Audiovisual Negro; atenção às especificidades de Orçamento e Gestão; estratégias e ações de Formação, Difusão e Preservação.
Estimulamos também fazedores de cultura e de audiovisual a se apropriarem da carta, para o fortalecimento de demandas locais. O objetivo é o desenvolvimento e/ou ampliação de políticas públicas municipais que considerem as especificidades regionais e a necessária articulação do pacto federativo, compreendendo as oportunidades de desenvolvimento a partir de políticas articuladas com o Ministério da Cultura, Secretarias Estaduais e outros órgãos da administração pública e da iniciativa privada.
As recentes iniciativas da Lei Paulo Gustavo (LPG), a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) e a recém-anunciada retomada dos anunciados Arranjos Regionais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) são alguns dos exemplos de possível articulação entre os entes federados que trazem impactos positivos para os municípios.
A LPG representou o maior volume de recursos financeiros já distribuídos com capilaridade para o audiovisual brasileiro. Foram R$2,5 bilhões direcionados aos 98% municípios que se cadastraram para o recebimento. A Lei emergencial se transformou num imenso indutor, ainda que episódico, para a reestruturação e o desenvolvimento da cultura nos territórios. Em breve, esperamos ver dados dos impactos em pequenas e médias cidades, incluindo os desdobramentos das Ações Afirmativas que, pela primeira vez, tiveram um direcionamento explícito de verba por meio de uma Instrução Normativa para uma política desse alcance.
A Apan realiza um levantamento, ainda em curso, voltado para a compreensão dessa aplicação de Ações Afirmativas na LPG. Os dados preliminares já apontam a necessidade de grande parte dos municípios brasileiros estarem preparados para a lida tanto com com o audiovisual quanto - e principalmente - com as Ações Afirmativas na Política Pública. A formação de legisladores e gestores municipais com consciência dos processos e implicações políticas e econômicas dessas ações para a Reparação Histórica é urgente.
Estudos recentes do Observatório do Itaú Cultural e da Fundação Getúlio Vargas reiteram o que já se sabe em relação ao audiovisual: o setor movimenta a economia local e amplifica os valores destinados a ele, retornando em emprego, renda e tributos os investimentos nos municípios. O estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), sobre os impactos econômicos da Lei Paulo Gustavo no Rio de Janeiro divulgado em julho deste ano, por exemplo, aponta que em 2023 os R$ 139 milhões destinados ao estado para projetos na área cultural tiveram como resultado um total de R$ 852,2 milhões em retorno local, com impactos positivos tanto sociais quanto na geração de tributos. Ou seja, o impacto para a economia estadual foi de R$6,51 para cada R$1,00 investido. Nesse contexto, foram gerados mais de 11 mil postos de trabalho - 75,4% diretos e 24,6% indiretos. Além disso, houve uma maior movimentação em micro e pequenas empresas no setor de serviços.
Esses inegáveis avanços apontam para uma bem sucedida parceria entre os entes federados, mas os municípios - sobretudo os médios e pequenos - precisam desenvolver e consolidar suas próprias políticas públicas, a partir de suas especificidades e por meio de escuta atenta e democrática, respeitando a pluralidade da população brasileira. No Brasil, a chamada Economia Criativa representa 3,1% do PIB – à frente da indústria de automóveis. Sem políticas para a Reparação Histórica, a partir dos municípios, o risco que corremos é vermos se repetir a exclusão de pessoas negras da participação econômica num momento de crescimento para o audiovisual brasileiro.
Edição: Thalita Pires