Quem pedala por horas a fio precisa de certezas; são estreitas as margens de erro
*por Rogério Viduedo
Vejo em cada uma das mulheres cicloativistas uma amiga, uma irmã. Rita está entre as de primeira hora. Italianinha radicada no Brasil, desenhista talentosa e mecânica de bicicletas, se encontrou no movimento ativista e por ele vai deixando as pegadas de alegria e carinho toda vez que exibe aquele sorriso expressivo que torna os olhinhos marrons ainda mais miúdos por trás das lentes grossas dos óculos redondos em aros pretos.
Rita está deslizando de bicicleta por alguma estrada do Brasil para encontrar o amor que veio a conhecer durante um encontro de ativistas na capital federal e talvez isso seja apenas mais uma história de pessoas que tentam prolongar as paixões de verão. E eu sou apaixonado por essas histórias, que sempre inspiram boas crônicas.
Diz um ditado paulistano: amor de verão não sobe a serra. Aqui no Planalto Paulista é comum os amores de veraneio morrerem ao fim das férias, pois só o são por causa delas. Já os vivi, em Santos ou na Praia Grande, e já tentei fazê-los subir as rodovias Anchieta e Imigrantes sem êxito: não suportaram as condições de tempo e temperatura e esvaíram-se na serração da rodovia ainda na vizinha São Bernardo do Campo.
Só que a Rita não é paulistana, não estava em Santos e seu amor não começou nas férias. Ela é uma mulher em bici, pedalando de Brasília à Recife, em meio ao barulho dos caminhões, ao inclemente calor tropical, à fumaça das queimadas que engolfa boa parte do Brasil, com vários objetivos a serem cumpridos e tarefas a serem executadas diariamente nesta jornada de descer ao Recife para prolongar o amor de verão "que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure", como já disse o poetinha Vinicius de Moraes.
Há toda uma rotina diária a ser cumprida para enfrentar as quilometragens, avançando pelo asfaltou ou por terra batida, metro por metro, sentada em um banquinho de exíguos 15 centímetros na parte mais larga.
Amor é bom, mas atender às prioridades da estrada é vital. E elas são diferentes das pessoas viajantes que usam motores. E, sobretudo, para mulheres, tendo como exemplo o caso de Julieta Hernandez, artista, palhaça cicloviajera venezuelana, vítima de feminicídio no final de 2023 em Presidente Figueiredo, cidade do interior do Amazonas, quando voltava para seu país.
Quem pedala por horas a fio precisa de certezas; são estreitas as margens de erro. De carro, se podem comer besteiras para enganar o estômago até chegar a outra parada. Já a viajante de bicicleta precisa ter tudo sob controle antes de botar a magrela em movimento e enfrentar 100 quilômetros em 12 horas de pedal. O combustível? Um bom prato de comida.
E tem outros aspectos como prever reabastecimento de água e certificar-se de não pegar uma entrada errada que te meta em apuros desnecessários, como trafegar de noite, cansada ou na chuva.
Do pouco que conheço a Rita, das experiências que tivemos juntes, sei que ela vai tirar de letra esses dois mil quilômetros que a separam da capital de Pernambuco e torço para que sejam os mais alegres da sua existência. Um dia após o outro, procurando os caminhos mais agradáveis, que passem por lugares onde ela possa espalhar a confiança e empatia que lhe é própria. Que encontre boas sombras, olhares amigos e pousos seguros. O destino é só parte do processo.
*Rogério Viduedo é jornalista de São Paulo e integrante do Programa de Jornalismo de Segurança Viária da Organização Mundial da Saúde. Cobre as áreas de segurança viária a mobilidade sustentável desde 2016. Em 2018, criou o site Jornal Bicicleta para cobrar autoridades por soluções eficientes para deslocamento da população. Recebeu o Prêmio Abraciclo em 2021 com a reportagem, "Cultura da bicicleta se aprende na escola".
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nicolau Soares