“O maior erro é a pressa antes do tempo e a lentidão ante a oportunidade” (Provérbio popular árabe)
Nos debates sobre o futuro da esquerda há muitas localizações diferentes. Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista. Entre elas estão opiniões intermediárias, com maiores ou menores nuances e matizes.
Mas existem, grosso modo, três posições sobre o destino da esquerda brasileira:
(a) existem aqueles partidos, como o PT e PCdoB, que apostam na estratégia da Frente Ampla, que está ancorada na tática de um crescimento econômico ininterrupto até 2026, para garantir a derrota do bolsonarismo, e na vigência do lulismo por um futuro indefinido, apoiados na expectativa de vitória em 2026.
(b) No extremo oposto, existem partidos, como o PSTU e o PCBR, entre outros, que se situam na oposição de esquerda ao governo Lula e consideram que, pelo menos um enfraquecimento do lulismo é inexorável, e apostam na abertura de um espaço à esquerda para uma disputa de influência de massas em torno de um programa revolucionário.
(c) Existe um terceiro campo, onde se situa o Psol, mas também vários movimentos sociais combativos e lideranças em dissidência que avaliam que há um risco muito grave de que os limites do governo favoreçam um ainda maior fortalecimento da extrema-direita, e não excluem a possibilidade de uma derrota histórica, mas apostam que uma reorganização depende de deslocamentos à esquerda de correntes que se construíram durante o ciclo de hegemonia do PT.
Um pouco de perspectiva histórica pode ser útil para a compreensão dos desafios do presente. Quando consideramos a longa duração reconhecemos cinco ciclos na direção da esquerda no Brasil:
(i) ciclo anarco-sindicalista se inicia nas primeiras décadas do século XX, atinge um auge de influência na greve geral de 1917 em São Paulo, e encerra com a fundação do PCB e o tenentismo, condenando as correntes libertárias à marginalidade;
(ii) o ciclo getulista se abre com a revolução de trinta, sua influência dá um salto na década dos cinquenta pela hegemonia trabalhista no movimento sindical, papel de Brizola e expectativas no governo Jango, e encerra com a derrota histórica de 1964.
(iii) O ciclo do PCB se abre em 1945, em grande medida em função do prestígio da URSS pela vitória sobre o nazifascismo, atravessa os difíceis anos cinquenta, quando se reposiciona diante do varguismo, e encerra, também, diante do golpe que instaura a ditadura militar;
(iv) o ciclo guerrilheiro, em que os sujeitos políticos foram, essencialmente, as variadas organizações que surgiram de rupturas do PCB, se abre pelo impacto da vitória da revolução cubana, atinge seu auge entre 1968/70, e encerra com a implacável repressão da ditadura militar.
(v) O último ciclo pode ser dividido em duas etapas porque há uma primeira que se abre com o ascenso operário-sindical de 1978/79 e passa pela conquista de hegemonia entre os trabalhadores organizados pelo PT e pela CUT e se estende até 2002, quando Lula vence as eleições presidenciais, pela primeira vez, e uma segunda etapa em que o lulismo conquista hegemonia entre as massas populares a partir de políticas públicas ou reformas.
As determinações de processos tão complexos são muitas. Mas se dividem, essencialmente, em objetivas e subjetivas. As objetivas são aquelas impostas pela força de acontecimentos que, para o fundamental, independem da iniciativa das diferentes correntes da esquerda. Entre os fatores objetivos se destacam dois tipos de fenômenos. As oscilações do capitalismo com suas crises recorrentes e suas refrações no Brasil, e as vitórias e derrotas na luta de classes na dimensão nacional e internacional. Mas, há um padrão. Todos os ciclos em que prevaleceu uma nova direção se abriram com uma onda de mobilização de massas, e se encerraram com uma derrota. Ondas de dimensões diferentes, derrotas distintas.
Mas sempre o mesmo padrão:
(a) as condições de superexploração da classe operária industrial, em um país agroexportador dependente, agravadas pelas pressões da Primeira Guerra Mundial, estão na raiz da audiência da militância anarquista na greve geral de 1917;
(b) o impacto da vitória da revolução russa teve importância crucial para que o jovem PCB conquistasse hegemonia na vanguarda sindical e intelectual a partir de meados dos anos vinte.
(c) A decadência da República Velha explica o deslocamento para a oposição da maioria da classe média urbana e sua refração militar, o tenentismo, e os desdobramentos da revolução de 1930, quando a classe dominante se dividiu até o limite, pela única vez na história, de uma guerra civil contra a oligarquia paulista, o fenômeno duradouro do nacional-desenvolvimentista varguista;
(d) a ascensão democrática, após a derrota do nazifascismo em 1945, projetou o PCB como um partido com alguma influência de massas em torno da liderança de Prestes.
(e) A onda de mobilização das camadas médias e de setores mais concentrados do proletariado, em 1968, no contexto de uma onda revolucionária internacional, explicam o respeito e até autoridade política conquistada pelas organizações que decidiram ir para a luta armada;
(f) a onda de mobilização de 1978/79 foi decisiva para abrir o caminho para a construção do PT/CUT//MST, e seu lugar na fase final da luta contra a ditadura, disputado a hegemonia com o MDB e Brizola nas “Diretas Já” e depois no “Fora Collor” de 1992;
(g) a onda aberta em 1999, quando da manifestação dos cem mil contra FHC abriu o caminho para a vitória eleitoral de Lula em 2002.
(h) A última grande onda que o país conheceu foi 2013, uma das mais massivas, profundas, e perturbadoras, porque a partir dela ganharam audiência de massas novos movimentos sociais com audiência de massas, como o de moradia popular do MTST, que projetou a liderança de Boulos, os movimentos feministas, negros, LGBT’s, ambientais e indígenas, mas também surgiram movimentos que estiveram na liderança das mobilizações contrarrevolucionárias de milhões quando do golpe institucional em 2016, e depois do bolsonarismo.
Os fatores subjetivos, ou seja, as qualidades e limites das organizações e lideranças também contam, quando se abrem oportunidades históricas e consideramos o desafio das conflituadas mudanças de ciclo. A substituição de uma liderança por uma nova é um processo de intensa luta política. Mas nunca é tudo ou nada. As mudanças acontecem em um movimento de negação da organização anterior, mas também conservação do que se acumulou de melhor:
(i) a combatividade classista e audácia da geração de lideranças anarco-sindicalistas foi decisiva para a entrada em cena da classe trabalhadora em 1917, e foi herdada pelos fundadores do PCB.
(ii) A coragem tenentista, que teve na Coluna Vargas um momento épico, foi um fator chave para que uma fração das oligarquias regionais, liderada por Vargas, decidisse derrubar a República Velha, e explica, também, a presença de uma corrente nacionalista nas Forças Armadas nos anos cinquenta.
(iii) O papel de Getúlio, até o limite trágico do suicídio, a ousadia de Brizola, em 1961, usando o cargo de governador que pegou nas armas para construir uma rede de defesa da legalidade que garantiu a posse de Jango, foram chaves para que o projeto de nacional-desenvolvimentismo conquistasse uma audiência de massas numa forma de “populismo”, lideranças burguesas de movimentos populares, cristalizado numa fração sindical burocrática, que se apoiava nas conquistas sociais da formalização das condições de trabalho, mas explica também a força do movimento sindical nos anos oitenta.
(iv) O prestígio da URSS e de Prestes, mas também a militância de milhares de lutadores do PCB explica, apesar de desastres políticos incontornáveis, uma autoridade que se manteve durante duas décadas; (v) o heroísmo abnegado das organizações da luta armada definiu o destino de uma geração, em que os melhores entre os melhores, pagaram com a vida pelos seus erros, mas deixaram um exemplo imortal de grandeza humana.
(vi) A lucidez do projeto de construção do PT em 1980, liderado pelo gigantismo da personalidade de Lula explica uma hegemonia que já tem quatro décadas, mas apesar dos limites dos governos de conciliação, explica também por que somente Lula poderia ter derrotado Jair Bolsonaro em 2022.
Quando pensamos a experiência do lulismo podemos identificar três etapas no longo intervalo 2003/ 2024: (a) o apogeu da influência, apesar de oscilações, como a crise do “mensalão”, entre 2003/2013; (b) a inversão aberta pelo golpe institucional em 2016, e a abertura da situação reacionária, em que toda a esquerda ficou isolada, e o PT e até o próprio Lula perderam apoio; (c) a recuperação de influência durante os quatro anos de governo Bolsonaro, e a etapa aberta pelo governo Lula 3 após a apertada vitória eleitoral de 2002.
Três hipóteses estão colocadas diante do futuro. São exploratórias porque o processo está em curso e não decantou. Há muitas variáveis indefinidas. As duas mais importantes são indissociáveis, e nos remetem ao centro do enigma: se a esquerda será capaz de derrotar a extrema-direita e, se nesse processo, assistiremos ou não a uma onda de luta dos trabalhadores e oprimidos. Essas são as duas questões centrais.
O que a história nos ensina, é que não há como abrir um ciclo superior ao lulismo sem a derrota do bolsonarismo, e sem uma ascensão da luta de massas. Se o que prevalecer for uma derrota, continuaremos a ver as divisões, rachas e dispersão na esquerda. E teremos um intervalo histórico como foi depois de 1964, oxalá não tão grande. Mas socialistas devem manter confiança que, mais cedo do que tarde, os trabalhadores irão se levantar.
Nesse contexto, três hipóteses são possíveis, sem que se possa responder, por enquanto:
(i) a primeira é considerar se o pós-lulismo será ou não por dentro do PT, provavelmente com um giro programático ainda mais moderado, e quem seriam as lideranças dessa transição;
(ii) a segunda é calcular se o pós-lulismo será um processo de luta, essencialmente, contra o PT;
(iii) a terceira é avaliar se o futuro da esquerda será um processo de mediações entre o “velho” e o “novo”, em grande medida, apesar do PT, mas não necessariamente renegando a herança do lulismo.
*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
Edição: Rodrigo Gomes