Precisamos de uma política energética que coloque a vida das pessoas acima do mercado
Mais de dois milhões de residências ficaram sem energia em São Paulo por quase uma semana após a forte tempestade que atingiu a cidade na última sexta-feira (11). O apagão, que afetou tanto a capital quanto a região metropolitana, expôs a fragilidade do sistema elétrico brasileiro e a postura evasiva do prefeito Ricardo Nunes (MDB) na gestão da crise e na adoção de medidas preventivas ao longo de seu mandato. Segundo José Genoíno, ex-presidente do PT e comentarista do podcast Três Por Quatro, "o prefeito de São Paulo é o exemplo da omissão".
O episódio desta sexta-feira (18) do podcast produzido pelo Brasil de Fato e apresentado pelos jornalistas Igor Carvalho e Nara Lacerda, traz uma análise dos recentes apagões em São Paulo e da fragilidade do setor energético no país. Com a participação de Cássio Cardoso Carvalho, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o programa discute os impactos e as responsabilidades dessa crise energética.
A concessionária responsável, Enel, tem sido alvo de duras críticas. Enquanto o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, e o governador Tarcísio de Freitas tentam transferir a responsabilidade para o governo federal, especialistas destacam que tanto a empresa quanto as gestões locais têm uma parcela significativa de culpa. "Há uma simbiose entre as mudanças climáticas e a ineficiência do setor privado. O poder público falha ao não realizar a devida zeladoria da cidade", afirma Cássio Carvalho, do Inesc.
Sete dias após as tempestades que atingiram a capital e a região metropolitana, a cidade ainda contabiliza prejuízos e carece de uma resposta concreta, tanto por parte do prefeito quanto da Enel, responsável pelo fornecimento de energia. Segundo Guilherme Lencastre, presidente da Enel, a situação já está dentro da normalidade e indenização para os milhares de moradores afetados será tratada caso a caso.
Entretanto, o desempenho da Enel tem se mostrado insatisfatório em vários aspectos, desde a qualidade dos serviços, especialmente em momentos de crise, até os valores cobrados da população. "Desde julho estamos pagando bandeira vermelha patamar um, e no início deste mês passamos a pagar patamar dois", destaca Carvalho, apontando o aumento constante nas contas de luz em São Paulo.
Diante do cenário de crise e das respostas evasivas do prefeito Ricardo Nunes, José Genoíno ressalta que "o gestor de uma cidade é responsável por tudo que acontece nela. Seja para agir, cobrar, exigir ou fiscalizar". Ele critica a falta de fiscalização e o descaso de Nunes frente às intempéries climáticas, cada vez mais frequentes, agravadas pela ineficiência de uma gestão incapaz de lidar com os desafios de uma cidade da magnitude de São Paulo.
Este é o segundo apagão em menos de um ano em São Paulo. Em novembro de 2023, 3,7 milhões de residências ficaram sem energia por três dias. Desta vez, além da falta de luz, muitas casas também ficaram sem água, e o prejuízo econômico para o comércio já alcança R$ 1,65 bilhão, segundo o último levantamento da FecomercioSP.
"Estamos diante de um sistema de distribuição de energia incapaz de lidar com eventos climáticos extremos, que estão se tornando cada vez mais frequentes. A infraestrutura está sucateada", alerta Cássio Carvalho.
Apagão na gestão
Durante os quase sete dias sem energia, a população paulista afetada, além de não receber uma previsão exata de restabelecimento, testemunhou uma troca de acusações na mídia. O prefeito Ricardo Nunes atacou a distribuidora de energia, que, por sua vez, culpou a prefeitura, enquanto esta tentou transferir a responsabilidade para o governo federal. No meio desse jogo de empurra, os cidadãos "permanecem às cegas", enfrentando os efeitos da privatização.
Cássio Carvalho reforça que "um serviço, um setor estratégico, importante e salutar para a sociedade não deve estar nas mãos do setor privado". Da mesma forma, José Genoíno ressalta que "direitos sociais cuja função é o serviço público não podem ser privatizados. Saúde, educação, meio ambiente, água, luz e segurança são direitos essenciais".
Quanto à atuação de Ricardo Nunes, criticado pela falta de preparação da cidade para enfrentar tempestades, Carvalho recorda o histórico problemático da gestão de energia em São Paulo, que se agrava a cada mandato conservador.
"Nós temos a Enel de um lado e temos o senhor Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, também responsável, principalmente por não realizar a zeladoria adequada. Ele não dialoga com a empresa para resolver preventivamente os problemas, e também temos o papel da Aneel, que, em muitos casos, passa um pano para o descompromisso e a má atuação dessas empresas, prejudicando a vida da população e colocando em risco a soberania alimentar e a saúde de quem depende de energia elétrica para sobreviver."
A omissão de Nunes, aliada à inação das concessionárias, revela o despreparo para enfrentar crises dessa magnitude. "O prefeito deveria ser o primeiro a se antecipar a essas tragédias. No entanto, sua administração foi lenta e ineficaz, mostrando que, em São Paulo, estamos à mercê de uma gestão que reage tarde demais", conclui Carvalho.
O contrato de concessão da Enel se encerra em 2028. No entanto, em casos de descumprimento ou negligência por parte da concessionária, o contrato pode ser suspenso ou até encerrado antes do prazo. Com isso, somado à queda nas intenções de voto do "prefeito do apagão", como ironiza Genoíno, "São Paulo pode se aproximar de uma nova gestão no setor de energia".
Uma crise nacional
O problema em São Paulo não é um caso isolado. O apagão, que afetou a capital, a região metropolitana e o interior do estado, expôs a fragilidade do sistema elétrico brasileiro. “O problema é estrutural [...] Estamos falando de um sistema que, em nível nacional, se mostra frágil diante de qualquer evento climático extremo. O apagão não afeta apenas a rotina das famílias, mas também a economia de forma geral”, reforça o assessor do Inesc.
As privatizações, iniciadas na década de 1990 sob o governo de Fernando Henrique Cardoso e culminando com a venda da Eletrobras durante a gestão de Jair Bolsonaro, são apontadas como uma das principais causas da crise. “Ao longo dos governos Lula e Dilma, resistimos à privatização da Eletrobras, mas o processo foi retomado e intensificado. Hoje, pagamos o preço de um sistema privatizado que coloca o lucro acima do serviço público”, explica o especialista.
O assessor do Inesc relembra o apagão no Amapá em 2020, que durou 22 dias e deixou 800 mil pessoas sem luz. “A empresa privada responsável não realizou a manutenção adequada, o que levou à falha no sistema. Quem teve que intervir foi a Eletronorte, uma estatal, mostrando que o setor privado não está preparado para lidar com crises”, ressalta.
O papel das agências reguladoras
Outro ponto que agrava a crise é a atuação das agências reguladoras, como a Aneel, que têm sido acusadas de leniência com as concessionárias. “A agência não cumpre seu papel de fiscalização. Está capturada pelo mercado, funcionando como um balcão de negócios em vez de proteger os interesses da população”, critica o engenheiro. Ele destaca que, durante o governo Bolsonaro, todos os diretores da Aneel foram nomeados por aliados do então presidente, o que enfraqueceu ainda mais a autonomia da agência.
O especialista aponta que, em diversos países, como França e Estados Unidos, a gestão do setor elétrico permanece sob controle do Estado. “No Brasil, seguimos na contramão. Precisamos urgentemente reestatizar o setor e garantir que a gestão da energia leve em consideração o interesse público, e não o lucro das empresas privadas”, afirma.
Enquanto isso, a população continua sofrendo com os efeitos de um sistema ineficaz e privatizado. “Não é só uma questão de São Paulo. O que estamos vendo é um reflexo de como o Brasil lida com o setor elétrico como um todo. Precisamos de uma política energética que coloque a vida das pessoas acima do mercado”, conclui Carvalho.
Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.
Edição: Nathallia Fonseca