Perspectiva que desvincula mãe e filho termina por romper vínculos e interditar maternidades
Patricia Beretta Costa*, Caroline Silveira Sarmento** e Taniele Rui***
No último dia 12 de outubro foi comemorado o dia das crianças no Brasil, uma celebração que busca simbolizar a importância dos cuidados e da defesa dos interesses e direitos das crianças. Se em muitos lares, este é um dia bastante festivo, temos que considerar que não é assim em todos os lugares; existem diferentes infâncias em nosso país, assim como também existem diferentes maternidades em diversos contextos e com distintas histórias.
Especificamente em relação ao tema de pesquisa que nos agrega, as maternidades de mulheres com trajetória de rua e seus filhos, a data é um convite a refletir sobre as desigualdades expressas nas diferentes possibilidades de ter e de cuidar de um filho e nas diversas maneiras de ser criança.
Falamos aqui de mães que passam pela experiência de em algum momento da vida habitar as ruas, seja como moradia ou como subsistência, desempenhando alguma atividade de geração de renda. Falamos aqui de mulheres, em sua maioria pobres e negras, para as quais a rua representou um escape do doméstico. Falamos aqui de mulheres que vieram grávidas ou que ficaram grávidas enquanto estavam em situação de rua e que, por essa razão, tiveram que lidar com o difícil dilema de conciliar a maternidade com a vida nas ruas.
A realidade nos mostra que as mães com trajetória de rua vivenciam desafios e situações complexas, influenciadas por diferentes fatores, o que nos leva à necessidade de pensarmos de forma profunda não apenas as políticas públicas e práticas institucionais, mas também o sofrimento vivenciado por essas mulheres, suas difíceis decisões.
Enfocamos especialmente a separação, muitas vezes forçada, de seus filhos.
Essa retirada traumática pode acontecer já na maternidade, iniciando um processo que frequentemente pode terminar com a destituição do poder familiar, isto é, com a perda da guarda da criança, e com o completo desconhecimento de seu destino. Trata-se de uma prática comum no campo jurídico brasileiro e normalmente justificada com base em percepções de vulnerabilidade e risco, construídas a partir de discursos sociais que constroem um papel ideal da mãe e da mulher, e que também marca um ideal de infância e de família.
Nos cabe perguntar como celebrar uma data que valoriza e ressalta os direitos das crianças quando não preservamos o direito dessas crianças de terem suas mães.
Violeta, Rosa, Andrielli e tantas mais….
Histórias de mulheres que passam pelo processo de perda do poder familiar são recorrentes e marcam a discussão sobre quem tem o direito de ter e ser mãe no Brasil. Como um fenômeno que se repete entre famílias pobres, o uso de crack adicionou uma nova camada de complexidade, apontando a dimensão moral da expectativa da “boa mãe” e de como uma mulher deve se comportar. O “pânico moral” em torno do crack, visto como uma droga que transforma seus usuários, que cria “zumbis”, sujeitos sem subjetividade, mobiliza as mídias e as ações estatais, espraiando-se pelo tecido social como um todo.
Se de modo geral há todo um imaginário moralizante sobre posturas ditas femininas, imagine para aquelas mulheres que vivem ou viveram nas ruas?
É como se fosse um efeito cascata: além de serem mulheres, elas “ousam” escapar do estereótipo e passam a viver sua vida privada em um espaço público. Elas enfrentam, por isso, um conjunto de instituições estatais hostis ao mesmo tempo em que fazem resistência a essas práticas, exercendo arranjos complexos para se cuidarem enquanto cuidam de suas crianças, apesar das condições materiais desfavoráveis.
Ao pensar nisso, relembramos o caso de Violeta, acompanhada pelo Coletivo Casa Aberta, que oferece atendimento psicológico às mães em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo. Violeta foi separada de sua filha ainda na maternidade. Ela relata que na época estava vivendo nas ruas da cidade e sem endereço fixo, tinha histórico de uso de crack e assim, após o nascimento de sua bebê, o hospital encaminhou o caso para a Vara da Infância. Alguns meses depois, teve destituído o poder familiar e não teve mais notícias da criança. Ela já estava separada de sua filha há cinco anos, mas toda vez que contava sua história mostrava uma roupinha de bebê e dizia “Esse foi o único presente que pude comprar para a minha filha, sei que não poderei mais comprar um presente para ela, e que ela nem saberá quem sou, mas ela sempre será minha filha”.
Também merece atenção o caso de Rosa, que foi separada de sua filha após ser denunciada por negligência. O que se passou, entretanto, era de outra ordem: ela tinha um histórico de vivência na rua e trabalhava como catadora de papel. Ao se perceber sem rede de apoio e alternativa, Rosa passou a levar sua filha para o trabalho com ela, e entendia essa ação como um cuidado, dizendo “não vou deixá-la com qualquer um”.
Interessante que durante o acompanhamento de Rosa, uma das psicólogas da equipe levava junto seu filho para a praça em que aconteciam os atendimentos, também pela falta de rede de apoio. Ao pensarmos nas duas cenas, nas duas mães que levam seus filhos ao trabalho, nos questionamos como atravessamentos de raça e classe marcam discursos que desqualificam certas maternidades e fomentam intervenções de separação entre mães e crianças, perpetuando uma série de preconceitos e violações de direitos.
Vale ainda mencionar um caso que repercutiu como denúncia nos meios de comunicação, o de Andrielli. Mulher negra de 21 anos, ela teve sua filha retirada ainda no nascimento, em Florianópolis (SC) em 2021, sob o argumento de trajetória de rua e uso de drogas anos antes. Impedida de amamentar e de permanecer com sua filha após o nascimento, Andrielli ainda foi submetida à laqueadura tubária sem o seu consentimento. Tal fato se caracteriza como esterilização forçada e, somado ao impedimento da amamentação, reforça a situação de violência obstétrica, agravante da violência institucional. Chamamos atenção para os direitos reprodutivos, violados por uma perspectiva moralizante, que tem um quê de criminalização da pobreza.
Histórias como essas são comuns às mulheres em situação de rua, infelizmente.
Certas práticas manicomiais também são produzidas com a justificativa de “proteger” o bebê, como a internação compulsória de gestantes. Tal medida não deveria ocorrer ou então apenas em última e urgente circunstância, porém, a falta de políticas públicas focadas no cuidado de mães e filhos, e na garantia do vínculo entre eles, faz com que a excepcionalidade ganhe ares de usual. Assim, se sentindo sob ameaça da perda dos filhos, muitas mulheres não realizam o pré-natal (ou não o realizam por completo), procuram outras cidades para o parto ou até mesmo têm seus bebês nas ruas com receio de serem “capturadas” pelos serviços de saúde.
Eis o dilema: de um lado, as mulheres promovem estratégias e diferentes arranjos de cuidado (de si e da prole) e, de outro, os agentes estatais (trabalhadores da saúde, assistência social e judiciário) desenvolvem práticas que visam o cuidado com as crianças de modo desassociado ao cuidado com as mães e as famílias. Essa perspectiva que desvincula mãe e filho, ambos sujeitos de direitos, termina por romper vínculos, desfazer famílias, interditar maternidades e interromper projetos de vida, além de acentuar vulnerabilidades - fragilizando as mães que ficam e os filhos que vão.
Maternidades e infâncias Destituídas
A separação compulsória, também nomeada retirada e sequestro por defensores de direito, ganhou atenção em estudos acadêmicos nos últimos anos, consolidando o campo de pesquisa ao qual nos dedicamos. Trata-se de um campo efervescente com pesquisas que atuam com documentos de estado e junto a essas mulheres.
Em torno da Rede Transnacional de pesquisas sobre Maternidades destituídas, violadas e violentadas (REMA), enfocamos o caráter de destituição que constitui a experiência de muitas mulheres com trajetória de rua, refletindo as diferentes singularidades e contextos de cada maternidade. Sobretudo realizamos esforços no sentido de demonstrar a celeridade da destituição. Se pouco é oferecido às mães, devemos lembrar que as crianças pequenas são extremamente valoradas no mercado da adoção.
Retomando o dia das crianças de modo crítico, nossa reflexão não pretende naturalizar a rua como um lugar saudável para crianças viverem. Ao contrário, sabemos que a rua pode ser um espaço hostil às crianças e suas mães, e um fator que dificulta o exercício da maternidade.
Utilizamos, por isso, a palavra “trajetória” em vez de “situação” de rua, pois temos acompanhado uma série de histórias de mulheres cuja passagem pelas ruas engaja outros trajetos e formas de abrigamento, se empenhando para receber o filho que está a caminho. No entanto, nesse percurso, tais mulheres se deparam com inúmeras dificuldades e, pior, com políticas públicas pouco atentas às suas demandas e desejos. Os laços feitos e desfeitos pela situação de rua deixam marcas perenes nas trajetórias de mulheres e crianças.
Com este artigo, no mês dedicado a comemorar a infância, buscamos observar o avesso da relação mãe-criança, idealizada no tecido social. As mães e filhos que aqui enfocamos sentem na carne como opera a desigualdade social, racial e de gênero que impera em nosso país.
*Patrícia Beretta Costa é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do laboratório de psicanálise, política e sociedade da Usp e da REMA, coordenadora do coletivo Casa Aberta
**Caroline Silveira Sarmento é doutoranda e mestra em Antropologia Social (UFRGS), pesquisadora da REMA e da Anthera - Rede Internacional de Pesquisa sobre Família e Parentesco. Colaboradora-militante do Jornal Boca de Rua.
***Taniele Rui é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, autora de Nas Tramas do crack: etnografia da abjeção (Antropologia Hoje/FAPESP).
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse