As aprovações na CCJC da Câmara não são fruto da necessidade de discutir o processo judicial
As votações ocorridas na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, no último dia 9 de outubro, é a continuidade do embate que coloca de um lado o Congresso Nacional, e de outro o Supremo Tribunal Federal (STF), e vem se arrastando desde o início de 2023 com a composição da nova legislatura e os acontecimentos que têm acarretado uma atuação mais veemente da Corte.
No final de novembro de 2023, o Senado Federal aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 8, de 2021, que reduz as possibilidades de decisões monocráticas no Supremo Tribunal Federal (STF) e em outros tribunais superiores, e as proíbe para suspender a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos poderes Executivo e Legislativo.
O texto também limita as decisões individuais durante o recesso do Judiciário aos casos de grave urgência ou risco de dano irreparável, com prazo de 30 dias para o julgamento colegiado após o fim do recesso, e estabelece o prazo de seis meses para o julgamento de ação que peça declaração de inconstitucionalidade de lei após o deferimento de medida cautelar, prazo depois do qual ela passará a ter prioridade na pauta do STF.
A CCJC da Câmara não apenas aprovou a admissibilidade da PEC 8/21 – que é atribuição da Comissão – como avançou em outras propostas.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 28, de 2024, também aprovada por maioria na Comissão, originária da própria Câmara, permite ao Congresso Nacional suspender decisões do Supremo pelo prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por mais dois anos, por meio do voto de dois terços dos integrantes de cada uma de suas casas legislativas, se o Congresso considerar que o STF ultrapassou “o exercício adequado de sua função de guarda da Constituição”.
Além das propostas de emenda à Constituição, a CCJC também aprovou um projeto de lei que permite ao Congresso Nacional instaurar processo de impeachment de ministros do STF que supostamente “usurparem” a competência das casas legislativas, prevendo possibilidade de recurso da decisão do presidente do Senado que rejeitar os pedidos. E outro projeto que cria cinco novas hipóteses de crime de responsabilidade de ministros do STF, aumentando as possibilidades de justificar um pedido de impeachment de magistrados da Corte.
Discutir o conteúdo das propostas importa, claro. Sobretudo no caso da PEC 8/2021, em que há aspectos positivos como o prazo para que o Plenário do STF decida sobre as cautelares que suspendem eficácia de leis. A demora nunca será uma condição positiva para o bom exercício das instituições e, nesse aspecto, a proposta não compromete a separação de poderes.
A questão é que as propostas são assumidas por um conjunto de parlamentares ligados à extrema direita, como forma de emparedar e limitar poderes do Supremo Tribunal Federal, por sua postura adotada em defesa do processo eleitoral e contra a tentativa de golpe ocorrida no dia 8 de janeiro de 2023. Os projetos são chamados, corretamente, de “pacote anti-STF”.
Conforme já acentuei em vários artigos, o Poder Judiciário não é imune a críticas, e já emitiu diversas decisões invadindo competências de outros poderes, algumas delas que tiveram o condão de mudar o curso da História do país, a recordar sempre que foi uma liminar de um ministro do STF que cassou a nomeação do presidente Lula a ministro da Casa Civil em 2016. Uma decisão arbitrária e com motivação não-jurídica. As idas e vindas sobre a possibilidade de prisão em segunda instância são outro ponto merecedor de anotação, por ter causado grande instabilidade jurídica e ebulição política durante a demora em sua conclusão.
No entanto, as aprovações ocorridas na CCJC da Câmara dos Deputados não são fruto de aprofundamento da necessidade de discutir o processo judicial de forma madura. São apenas demonstração de força política, em uma contenda que vem não apenas se exacerbando, mas ganhando contornos de uma verdadeira disputa de poder, que desconsidera totalmente a ideia de repartição de competências – em seu sentido de garantir o equilíbrio na autorregulação do Estado - colocando em xeque a harmonia entre os três poderes. Lembrando que Executivo, Legislativo e Judiciário existem para propiciar maior segurança aos cidadãos quanto aos interesses coletivos da sociedade.
O desenho institucional de nossa Constituição Federal é – dito de forma muito simples e objetiva – aquele da teoria da separação de poderes que surgiu com a formação do Estado liberal: o Legislativo faz as leis, o Judiciário as analisa e o Executivo as aplica. O que não significa dizer que os demais poderes não possuam funções legislativas, executivas ou de julgamento, cada um dentro de limites impostos pelas normas reguladoras de suas atividades.
Se existem, como dito, pontos positivos na PEC 8/2021, o mesmo não pode ser dito em relação à PEC 28/2024. A possibilidade de revisão de decisões do Supremo Tribunal Federal pelo Congresso Nacional tal como nela posta é claramente inconstitucional, haja vista que a palavra final sobre a constitucionalidade leis no Brasil é do Supremo Tribunal Federal. O Poder Executivo e o Legislativo detêm controles prévios à vigência da norma, como, por exemplo, o veto presidencial e a análise durante a tramitação legislativa, seja em comissões temáticas ou plenário. Quando normas entram em vigor, cabe aos juízes e tribunais a verificação se são ou não compatíveis com a Constituição Federal.
É evidente a violação à separação de poderes submeter a atividade constitucional do Supremo Tribunal Federal ao crivo do Congresso Nacional.
Por seu turno, a proposta que amplia o rol de crimes de responsabilidade pelos ministros do STF peca pela amplitude dos comandos sem objetividade como “violar a imunidade parlamentar” e “usurpar, mediante decisão, sentença, voto, acórdão ou interpretação analógica, as competências do Poder Legislativo”. E o projeto que cria possibilidade de recurso quando os pedidos de impeachment contra os membros da Corte são inadmitidos apenas evidencia que se trata de uma peleja para acuar os membros do Tribunal.
A imunidade parlamentar visa resguardar o livre exercício do mandato e a própria democracia. Não é direito absoluto, como nenhum outro previsto na Constituição da República e, desse modo, não pode servir de proteção para ofensas pessoais sem relação com as funções parlamentares, menos ainda para a prática de crimes, lembrando que o direito à preservação da intimidade, da imagem e da honra são direitos fundamentais de toda pessoa, com previsão de reparação material e moral. Nenhum parlamentar pode alegar imunidade para ofender a honra e a imagem de uma pessoa fora do escopo de sua atuação parlamentar.
Desse modo, o comando é altamente subjetivo e genérico para constar em uma norma como crime de responsabilidade. O mesmo pode ser dito sobre “usurpação” das competências do Poder Legislativo, diante do já argumentado.
Em tempos mais tranquilos, fora dessa busca de holofotes, de mostrar superioridade e impor derrotas em cenário conflagrado, o aprimoramento institucional de regramentos para o processo judicial é possível e bem-vindo. Mas como posto, o “pacote anti-STF” presta um desserviço à democracia, distante de qualquer razoabilidade ao alterar regras constitucionais e infraconstitucionais para proteger parlamentares do cometimento de crimes, sob o falso uso do princípio da liberdade de expressão, e para acossar ministros do Supremo Tribunal Federal, em uma espécie de revanchismo por sua posição sobre fatos jurídicos recentes em defesa das instituições de nossa República.
* Tânia Maria de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB (GCcrim/UnB) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Compõe a equipe do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Governo Federal.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Nathallia Fonseca