A cidade de São Paulo enfrenta desde sexta-feira (11) mais um apagão, que já deixou milhões de pessoas sem luz. A nova crise energética começou após uma tempestade atingir a capital paulista. Para o engenheiro eletricista Ikaro Chaves, no entanto, ela não tem a ver com questões climáticas.
Chaves afirmou ao Brasil de Fato que o problema que afeta São Paulo é estrutural. Também atinge outras cidades. Tem a ver com a falência do sistema elétrico baseado na privatização e na regulação via agências.
“Estamos vendo a falência do modelo do setor elétrico brasileiro gestado lá nos anos 90, quando começou o processo de privatização”, disse.
Chaves acompanha esse processo há anos. Era funcionário da Eletrobras até ela ser privatizada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Integrou a equipe de transição do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Avisou que os apagões têm tudo para se tornar mais frequentes no Brasil. Indicou ainda caminhos para que o país possa superar o problema.
“O governo precisa voltar a atuar diretamente no setor elétrico, nas áreas de distribuição, de geração e de transmissão”, afirmou, em entrevista ao Bdf.
Confira os principais pontos da conversa:
Brasil de Fato: O que aconteceu na sexta-feira (11) em São Paulo?
Ikaro Chaves: A rede de distribuição de energia das cidades é aérea. Por ser aérea, está sujeita a intempéries. Quando você tem árvores caindo sobre a rede aérea, falta luz. É normal. Agora, em São Paulo, não houve preparação para eventos como este. Não há vias alternativas para garantir o fluxo de energia. Por isso, a queda de uma árvore afeta tanta gente.
O que chama atenção em São Paulo é o tempo para a solução desses problemas que seriam normais. Por quê?
O principal fator é a questão da mão de obra, questão humana. E este é um ponto importante na discussão. Há muita gente defendendo investimento, compra de equipamentos. Agora, a manutenção é feita por pessoas.
Por que faltam pessoas?
Há uma lógica no setor elétrico brasileiro, hoje dominado por empresas privadas: é a busca pelo aumento do lucro das empresas. A receita, o que eles recebem mensalmente, é praticamente fixa. A única maneira que as empresas têm de aumentar a margem de lucro é cortando o pessoal.
Esse problema não acontece só em São Paulo, então?
Não. Estamos vendo a falência de um modelo do setor elétrico brasileiro, que foi gestado lá nos anos 90, quando começou o processo de privatização. Está provado. São 30 anos desde as privatizações. A energia fica cada vez mais cara e há cada vez mais problemas de abastecimento.
Por que não funciona?
Temos empresas privadas prestando um serviço regulado. A agência reguladora, a Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], autoriza aumentos da conta da luz e tem que fiscalizar o serviço. Mas esse modelo não funcionou. Há objetivos antagônicos e inconciliáveis nessa relação. A empresa quer aumentar seu lucro. O Poder Público quer a satisfação do cliente e preços baixos.
A qualidade do serviço não é considerada?
Ela é medida por indicadores sobre a frequência de quedas de energia e duração dessas quedas. A empresa precisa atingir parâmetros estabelecidos. Só que há o que a regra chama de expurgos. São ocorrências retiradas das medições de qualidade porque, teoricamente, são excepcionais. Hoje, você imagina que a Enel vai ter um nota de qualidade baixíssima por conta do que tem ocorrido em São Paulo. Mas não vai, porque ela vai colocar um evento como o do final de semana como algo extraordinário, causado por uma força da natureza fora do normal. As empresas usam desses expedientes para manter índices dentro do exigido.
Com as mudanças climáticas, esses eventos extraordinários devem se tornar cada vez mais recorrentes. Isso precisa ser considerado, não?
Estamos vivendo mudanças climáticas, sim, mas é bom lembrar que não houve um furacão em São Paulo. Mais gente ficou sem luz em São Paulo do que na Flórida, onde, sim, ocorreu um furacão. As mudanças climáticas não podem servir de desculpa para as empresas. Não estou negando a realidade. Mas São Paulo passou por uma tempestade. E tempestades sempre ocorreram. O sistema deveria estar preparado para isso. E não só em São Paulo.
Onde problemas de abastecimento de energia também são constantes?
No estado de Goiás, a privatização da companhia de energia aconteceu em 2016. A situação ali é terrível. Há cidades inteiras que ficaram vários dias sem energia elétrica. Caldas Novas ficou cinco dias sem energia. No Rio de Janeiro, isso acontece também. Há apagões frequentes na Ilha do Governador. Não é um incômodo. É um problema para doentes que precisam de aparelhos, para o dono da sorveteria, do açougue, do supermercado, da padaria.
Qual a solução para isso?
É preciso rediscutir o modelo de concessões do setor elétrico.
E isso está sendo feito?
Não. O sistema elétrico é uma responsabilidade do governo federal. Os contratos de concessão vigentes no Brasil inteiro começam a vencer no ano que vem. É uma oportunidade de rever esses contratos. Mas o governo já editou um decreto encaminhando a renovação das concessões de 20 distribuidoras, inclusive da Enel. Lula esteve na Itália e lá já disse que o contrato da Enel vai ser renovado.
Mas se o governo não renova o contrato, quem presta o serviço?
Quando termina o prazo de concessão, a concessão volta para o poder concedente, que é o governo federal. O governo pode renovar, pode relicitar ou tomar para si essa concessão, assumir o serviço, como foi feito em vários lugares. Por exemplo, na Alemanha isso aconteceu. Venceu a concessão e o governo entendeu que era melhor voltar a prestar o serviço, reestatizar. Mais de 300 distribuidoras foram reestatizadas quando vencerem as concessões.
Isso é viável hoje no Brasil?
Não acho viável reestatizar todo o sistema, em todos os estados. Mas eu não tenho dúvida nenhuma de que, se o Brasil tivesse uma empresa federal de distribuição, principalmente num estado como São Paulo, essa empresa poderia servir de referência para as outras. Como uma “sombra” para elas e uma “ameaça”. Se a concessão não estiver funcionando num local, essa empresa estaria pronta para assumir o contrato, o que criaria uma pressão econômica. Isso acontecia no setor de geração de energia com a Eletrobras. Nos leilões de energia, a Eletrobras sempre serviu para pressionar a tarifa para baixo.
Você fez parte da equipe de transição do governo Lula. Sugeriu isso?
Apontei. Fiz um levantamento de todas as concessões que iriam vencer. Mas o governo abriu mão de travar o debate. O setor elétrico, baseado na privatização e regulação faliu. É preciso achar alternativas. O governo precisa voltar a atuar diretamente no setor elétrico, nas áreas de distribuição, de geração e de transmissão. O caso da Enel é uma oportunidade. Abre uma janela legal e política para isso.
Edição: Nathallia Fonseca