Cultura tradicional na Amazônia, a tipografia colorida e cheia de personalidade enfeita os barcos e rios que percorrem comunidades ribeirinhas e atracam nas cidades: essa é a arte dos abridores de letras, artistas que pintam os barcos e que agora passam a contar com o Instituto Letras que Flutuam, o primeiro do Brasil dedicado a essa cultura ribeirinha.
Com mais de 1,7 mil rios, o transporte fluvial é a principal forma de deslocamento de comunidades da Amazônia. Ao longo dos anos, os ribeirinhos passaram a dar nomes aos seus barcos com letras simples, que foram se tornando cada vez mais elaboradas, coloridas e diversificadas, dando origem à cultura tradicional e também profissão dos chamados abridores de letras.
"A abertura de letras, assim como o carimbó, assim como o tacacá, é parte da cultura ribeirinha, que é o estofo da cultura amazônica, por conta disso também precisa ser defendida, valorizada, e principalmente nesse cenário de COP30, entender que se esse valor, se esse saber empresta significado amazônico, significado cultural para empresas, iniciativas e governos, os detentores desse saber devem ser beneficiados por isso", explica Fernanda Martins, Diretora do Instituto.
O instituto é fruto de 15 anos de pesquisa e mapeamento de abridores de letras na Amazônia, por meio do Projeto Letras que Flutuam, que dá nome à entidade. Já foram mapeados mais de 70 artistas e 30 deles estão associados e fazem parte do conselho do instituto, que tem entre os desafios ampliar o mapeamento e pensar políticas públicas de preservação e fortalecimento do saber.
"A gente também quer trazer outros saberes associados, outras atividades que podem estar relacionadas à abertura de letras para trazer mulheres e também os jovens, pois sabemos que com a evolução do tempo, é fatal que os barcos de madeiras vão desaparecer, pois os barcos de metal são mais rápidos, eficientes e menos custosos, então vamos procurar outras políticas públicas que valorizem esse saber, para que eles continuem exercendo independente da tecnologia naval", complementa Fernanda.
Em cada embarcação, uma identidade própria, em cada abridor de letras, um estilo diferente e é assim que as embarcações colorem os rios com diversidade.
"Da minha família mesmo, ninguém era pintor. Meu pai era pescador, minha mãe costureira, e só eu mesmo saí no meio da parte de arte. Eu sempre fazia aquelas letras pequenas, depois eu fui passando para canoas grandes, embarcações grandes, até navios mesmo, fazendo paisagens dentro, abrindo nomes. A gente faz por exemplo o nome do barco, o slogan que eles gostam, os proprietários e a gente desenha algumas paisagens lá dentro, o que eles pedem", relembra Odir Lima, abridor de letras.
Odir atua junto ao Projeto Letras que Flutuam desde 2004 e hoje é um dos conselheiros do instituto.
"Eu quero um futuro para todos, por exemplo meu filho, outros que venham, eles vão vendo aquela arte e acredito que daí podem entrar no instituto também, é progresso para eles, para serem bons profissionais", conta.
O Ecomuseu da Amazônia, localizado em Belém e parte integrante da Fundação Escola Bosque é um dos parceiros do instituto e levou alunos de artes a uma oficina com os próprios abridores de letras.
"Essa relação que essas letras trazem, acionam a nossa memória afetiva para a configuração da nossa identidade amazônica, então é super importante ter essa conexão da escola com o projeto, aproximar os abridores de letras da sala de aula, principalmente do ensino de arte, é fundamental para garantir a valorização da cultura e esse sentimento de pertença da cultura amazônica", explica Murilo Rodrigues, professor e coordenador do Ecomuseu da Amazônia.
O instituto tem como desafio a inserção de mulheres e jovens para a manutenção da cultura, mas a abertura de letras já encanta muitos olhares, como é o caso do jovem Donielson Leal, de Muaná, município da Ilha do Marajó.
"Por onde a gente vai andando, a gente vai vendo o brilho das letras nos barcos e eu particularmente aprendi a fazer as letras me espelhando, vendo os barcos passar nos rios com todo aquele enfeite e encantou meu coração. Busquei conhecimentos, vim para Belém e estou me aperfeiçoando nas letras. Nós oferecemos oficinas para alunos de colégios, estamos trocando conhecimento, um buscando com o outro e é isso aí, o Letras que Flutuam veio para melhorar a nossa capacitação também na pintura dos barcos".
Integrante do Letras que Flutuam, Donielson ministra oficinas e se orgulha de manter viva a tradição e compartilhar os saberes.
"Eu lembro que antes papai me falava: 'meu filho, em Belém pintura dá dinheiro'. Mas eu não me imaginava um dia estar em um nível desse, estar em um instituto, passando meu conhecimento, meu saber para outras pessoas de outros colégios, então para mim é muito gratificante, é como estar realizando um sonho".
Edição: Thalita Pires