Rio de Janeiro

Coluna

João do Rio e Lima Barreto: cronistas marginalizados de um Brasil inconveniente

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João do Rio à esquerda e Lima Barreto à direita - Foto: Reprodução
Os escritores expuseram, sem filtros, o Brasil das ruas, das janelas e das contradições urbanas

João do Rio, ou Paulo Barreto (1881-1921), será homenageado na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (RJ), a Flip, que ocorre de 9 a 13 deste mês. Esse cronista das esquinas, vielas e janelas, que transformou o Rio de Janeiro em um personagem vivo em suas obras, compartilha uma conexão profunda com Lima Barreto, outro gigante das letras cariocas. Ambos negros, críticos e cronistas marginais, viveram em uma época em que ser um escritor "de cor" e pobre significava desafiar uma sociedade que preferia “varrer para debaixo do tapete” as vozes incômodas.

João e Lima se recusaram a pintar um Brasil idealizado. João, com sua crônica-reportagem, mergulhava nas ruas e retratava, com empatia, a vida dos trabalhadores, mendigos e prostitutas, além de explorar a diversidade espiritual da cidade. Lima, por sua vez, não poupava críticas, expondo a hipocrisia e o racismo da elite que preferia “tirar o corpo fora”. Em "A Alma Encantadora das Ruas", João nos revela o mosaico humano das ruas; já Lima, em "Triste Fim de Policarpo Quaresma" e "Clara dos Anjos", usa sua pena para escancarar as injustiças que corroem o Brasil.

A literatura de João e Lima nos alerta e acusa: o passado, mesmo o nosso próprio passado, não deveria soar como um país estrangeiro, onde tudo parece distante, regido por outras regras e ritmos.

Suas obras são testemunhos de um Brasil que muitos prefeririam esquecer, mas que teima em se manifestar no presente. Em cada linha, seja no olhar minucioso de João ou na ironia feroz de Lima, encontramos ecos dessas verdades incômodas.

O pseudônimo “João do Rio” foi uma escolha calculada. Inspirado nos franceses Jean Lorrain e Jean de Paris, Paulo Barreto vestiu a cidade como quem veste a própria pele. E, em tempos de um jornalismo “certinho”, ele preferiu relatar o cotidiano pulsante das ruas. Combinando humor, crítica e um estilo marcante, João “não deixava barato” e sabia rir dos poderosos. Se João foi o primeiro a pintar o Rio com humanidade, Lima Barreto desnudou o país de suas ilusões.

Ambos, cada um à sua maneira, desafiaram a sociedade ao serem críticos e negros — um ato de resistência em si.

Essas vozes nos lembram que o passado está sempre em negociação. Reedições e homenagens em feiras literárias não existem para “fazer justiça” a autores mortos, mas porque suas obras são parte de nossa história, uma oportunidade de redescobrir o que é valioso em outro tempo. João e Lima anteciparam debates ainda urgentes hoje: a luta por direitos, o feminismo, o racismo estrutural. São autores que pedem mais do que uma leitura; eles nos desafiam a olhar o Brasil sem “passar o pano”.

João do Rio morreu jovem e abruptamente, nas ruas que tanto amava, vítima de um infarto enquanto cruzava o Rio em um táxi. Lima, desgastado pelo alcoolismo e pela solidão, também partiu cedo, deixando uma literatura que jamais se renderia. Ambos escreveram suas crônicas como quem constrói pontes entre o ontem e o agora, mostrando que “águas passadas ainda movem moinhos”. Suas histórias não eram feitas para agradar, mas para incomodar e refletir o que muitos evitavam. Hoje, esses cronistas marginais de um Brasil inconveniente continuam vivos nos becos e vielas, prontos para dialogar com leitores dispostos a enxergar as verdades que eles, corajosamente, narraram.

*Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Jaqueline Deister