Em um novo capítulo das disputas legislativas que envolvem o Supremo Tribunal Federal (STF), a Comissão da Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados conseguiu agilizar a tramitação de duas propostas de emenda constitucional (PECs) e dois projetos de lei (PLs) que miram a Corte, reduzindo poderes dos ministros. Em todas as votações do dia, desenroladas ao longo de mais de oito horas ininterruptas de sessão, o campo reacionário conseguiu obter um placar com ampla margem de votos.
Primeiro item a ser avaliado, a PEC 8/2021, que estipula limites para decisões monocráticas – deliberações dadas por um único magistrado –, foi chancelada por 39 votos favoráveis e 18 contrários. O texto aprovado é o parecer do deputado Marcel Van Hatten (Novo-RS) sobre a proposta, que já foi analisada e aprovada pelo Senado em 2023. Também recebeu sinal verde a PEC 28/2024, que altera a Constituição Federal para criar a hipótese de suspensão de decisão do STF por parte do Congresso Nacional. O placar da votação foi de 38 votos a 12.
Outro ponto da pauta, o PL 658/2022, de autoria do deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), foi chancelado por 36 votos a 12. O texto encurta o rito de processos de impeachment ao proibir o Senado de "realizar novo juízo de admissibilidade da acusação contra o presidente da República após sua admissão pela Câmara", além de estabelecer uma nova hipótese de crime de responsabilidade por parte de ministros do STF.
Hoje, a Lei n° 1.079/1950 prevê cinco situações em que os membros da Corte podem ser enquadrados nesse tipo de acusação. São elas: alterar decisão ou voto já proferido em sessão do tribunal; participar de julgamentos de cujo objeto seja suspeito; exercer atividade político-partidária; agir de forma negligente nos deveres do cargo; e "proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções".
O PL 658/2022 acrescenta a esse trecho da lei a previsão de crime de responsabilidade para o ministro que "manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais ou sobre as atividades dos outros Poderes da República, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério".
Já o PL 4754/2016, quarto ponto aprovado, tipifica como crime de responsabilidade de ministro do STF aquilo que o autor, Sóstenes Cavalcante (PSD-RJ), chama de "usurpação de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo". Na justificativa do PL, o deputado afirma que a proposta seria para combater o "ativismo judiciário", um dos principais argumentos da ala bolsonarista ao dirigir críticas à Corte.
Contexto
Tendo vivido seu auge durante o governo Bolsonaro, os ataques ao STF por parte de bolsonaristas ganharam novo fôlego nos últimos tempos após decisões da Corte que incomodaram o segmento, como a prisão dos manifestantes que invadiram os prédios dos três Poderes em Brasília (DF), em 8 de janeiro do ano passado. O episódio tem sido tema frequente de ataques ao STF por parte da extrema direita, que atualmente controla os trabalhos na CCJ da Câmara, comandada pela deputada Caroline de Toni (PL-SC). O grupo faz críticas frequentes também a decisões da Corte que derrubam leis ou outras decisões tomadas pelo Legislativo, argumentando que seria uma invasão de competência.
É nesse embalo que o colegiado tem se destacado pela imposição de um regime de prioridade política não só para o combo anti-STF, mas também para pautas de caráter antiambiental e medidas que criam embaraços jurídicos para movimentos populares, ambas itens do kit de ataques ao governo Lula.
O deputado Patrus Ananias (PT-MG), integrante titular da CCJ, ressalta que a sessão desta quarta (9) selou mais um capítulo dessa ofensiva. Ele avalia que a CCJ falha no método escolhido para abordar tais pautas, especialmente as que atingem o STF.
"Faço uma leitura de uma tentativa deles de apontarem uma perspectiva até mesmo de um golpe. O que tivemos hoje aqui foi uma tarde anti-STF, anti-Judiciário e, portanto, uma tarde antidemocrática, com tudo pensado para cercear e penalizar os integrantes do STF. Claro que nós também queremos um Judiciário mais ágil, mas isso tem que ser discutido democraticamente, inclusive com a presença do Ministério Público, de juízes, ministros, etc.", argumenta o petista.
O deputado diz reconhecer que, para além dos redutos da extrema direita, diferentes parlamentares têm críticas ao STF, mas Ananias defende que a Câmara precisa escolher vias "mais democráticas" de discussão do assunto.
"Sabemos que temos desafios permanentes para o Estado democrático de direito. Essas questões devem ser discutidas. Tenho críticas democráticas ao STF e a toda a organização do Poder Judiciário, mas também tenho críticas ao trabalho da Câmara. O STF tem posições que nós também questionamos, mas isso acontece no mundo inteiro. Temos que pensar o aperfeiçoamento das instituições democráticas do Brasil, sim, mas de uma forma integrada, onde nós, parlamentares, também possamos fazer o nosso exame de autocrítica", acrescentou.
Centrão
A agenda anti-STF é originalmente de autoria de parlamentares que orbitam mais nas proximidades do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mas a aprovação dessas propostas na CCJ foi possível graças ao alinhamento também de parlamentares do centrão à pauta. O grupo se engajou na agenda especialmente após a Corte suspender, em agosto, as emendas parlamentares impositivas – a decisão se dá no âmbito dos questionamentos jurídicos sobre o orçamento secreto. A questão foi admitida pela presidenta da comissão em entrevista concedida ao portal O Antagonista no final do mês passado.
"Com o apoio dos partidos de centro, por conta das emendas, nós tivemos a felicidade de não ter a retirada de pauta desses projetos. E, se continuar nesse sentido, nós acreditamos que teremos votos suficientes para aprovar. Já passou da hora de o Congresso se manifestar sobre os excessos e abusos do Poder Judiciário, de alguns de seus membros", afirmou Caroline de Toni, na ocasião.
Arthur Lira
O episódio da suspensão das emendas também atiçou o apetite do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que colocou as pautas anti-STF para andarem na Casa. Agora, o cenário abriu um conjunto de interrogações sobre o destino das quatro propostas aprovadas nesta quarta pela CCJ. Não se sabe ao certo se o pepista pretende acelerar os próximos capítulos de tramitação dessas propostas ou se irá deixá-las em banho-maria para tê-las como carta na manga e colocá-las em votação em momento que lhe seja mais oportuno para amedrontar o STF.
As dúvidas são alimentadas por um fator já bastante comentado nos bastidores da Câmara: Lira encerra o mandato de presidente em fevereiro de 2025 e, depois disso, terá que lidar ou não com o eventual avanço de investigações que lhe afetam direta ou indiretamente, a depender das decisões que os ministros vierem a tomar.
Em setembro do ano passado, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes arquivou investigações sobre supostos desvios na compra de kits de robótica para municípios de Alagoas, processo que envolvia aliados de Arthur Lira. Por outro lado, no mês passado, a Segunda Turma da Corte negou pedidos feitos por investigados no caso que pleiteavam a devolução de mais de R$ 3 milhões de reais apreendidos pela Polícia Federal no âmbito das investigações.
"O Lira ganhou, então, mais um trunfo. Ele é um jogador de xadrez: está avaliando tudo, está com dificuldades em relação à escolha do seu possível sucessor aqui na Casa, então, tem todo um jogo. Tem um subtexto aí, no qual entram anistia aos golpistas, sucessão na Câmara, a dinâmica política nacional, o resultado final do segundo turno das eleições. O Lira é muito poderoso, inegavelmente, e é claro que agora ele está com quatro trunfos na mão, que são pautar os PLs e criar as comissões das PECs. O que ele vai fazer com isso é algo tão misterioso quanto cada ordem do dia aqui na rotina da Câmara, que a gente só fica sabendo na última hora", afirma Chico Alencar (Psol-RJ), um dos titulares da CCJ.
Trâmite
Pelas regras, o mérito das PECs precisa ser avaliado por uma comissão especial e, depois, pelo plenário, onde a pauta deve ainda ser votada em dois turnos diferentes, precisando de ao menos 308 votos favoráveis para prosperar. O despacho de criação de uma comissão do tipo depende do presidente da Casa, que tem a prerrogativa de agilizar ou dilatar o processo. No caso dos PLs em geral, há tramitações previstas para as comissões permanentes da Câmara, mas é comum os grupos majoritários aprovarem requerimentos de urgência para reduzirem o rito de tramitação e levarem as pautas direto ao plenário quando há conveniência política para o segmento.
Edição: Nicolau Soares