A aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) com o segundo grupo de repatriados do Líbano chegou ao Aeroporto Internacional de Guarulhos às 6h58 desta terça-feira (8). No total, desembarcaram 227 pessoas, sendo 49 crianças, e três animais de estimação.
O avião KC-30 decolou de Beirute, no Líbano, às 12h30 (no horário de Brasília) desta segunda-feira (7) e fez uma escala em Lisboa, em Portugal, para reabastecimento.
A expectativa é que sejam repatriados 500 brasileiros por semana, de acordo com o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Marcelo Kanitz Damasceno, no âmbito da Operação Raízes do Cedro, coordenada pelo Itamaraty e pelo Ministério da Defesa.
Há uma estimativa de que 20 mil brasileiros morem no Líbano, dos quais três mil já manifestaram o desejo de deixar o território em meio aos ataques do governo israelense na região. A maioria mora no Vale do Bekaa e na capital, Beirute, onde os ataques são intensos.
A gente não podia mais voltar para casa
Apesar de já estar em território brasileiro, os traumas causados pelos ataques israelenses ao Líbano ainda são perceptíveis em alguns repatriados. Samara Keshin, que teve de fugir às pressas de sua casa ao lado dos pais, parou de falar por um momento ao ouvir o ronco dos motores dos aviões decolando e pousando em Guarulhos. “Eu não consigo ouvir esses barulhos”, disse mesmo a 10 mil quilômetros de distância do Líbano.
Keshin conta que Israel bombardeou a cidade em que ela vivia coma família, o que os obrigou a fugir para uma cidade próxima. “A gente começou a escutar os mísseis passando por cima da gente. Todo mundo ficou apavorado. Em menos de uma hora a cidade inteira estava vazia”, conta. “A gente não podia mais voltar para casa e ficou tudo ali. Eu só peguei o passaporte quando fugi.”
Antes dos bombardeios, que começaram há cerca de duas semanas, o barulho dos aviões de combate israelenses já anunciava o que estava por vir, abalando as estruturas das casas, tamanho o estampido dos motores. “O tempo todo os caças quebravam a barreira do som e faziam um estrondo que tremia a casa toda. As casas todas ali na cidade começaram a rachar o tempo inteiro. Eles mandavam caças, quebraram a barreira do som e era um estrondo muito forte e assustador”, conta Keshin.
Os barulhos dos aviões só não foram mais ensurdecedores do que as bombas, que, ao tocarem o chão, deixavam um rastro de destruição e mortes. “Ao lado da casa da minha tia, uma casa foi bombardeada e foi para o chão. Os vidros todos na casa da minha tia quebraram. A cidade está toda destruída. Até mesmo os rapazes que trabalham com as ambulâncias de resgate foram bombardeados e morreram. Sete rapazes morreram de uma vez só.”
“A gente estava vivendo esse terror o tempo todo. A gente escutava os bombardeios. Mesmo longe, a terra treme toda embaixo de você. A pressão do ar pressiona como se tivesse uma rocha batendo na janela. Eles estão fazendo o terror e destruindo tudo. Eles não estão poupando nada nem ninguém”, relatou a brasileira repatriada.
Mesmo no caminho do local onde estava abrigada até o aeroporto, era possível escutar e ver os bombardeios, o que fez o trajeto se tornar “aterrorizante” em suas palavras. O perigo se tornou tão iminente que o taxista que levou Keshin e sua família até a base aérea de Beirute fez um caminho mais longo para escapar das bombas.
No Brasil, Keshin e seus pais foram recepcionados pelos irmãos. O restante de sua família, no entanto, continua no Líbano, como sua irmã, sobrinhos, tios e primos. “Minha irmã não quer deixar o marido sozinho, porque tem a família dele lá. Mas cada vez mais tem a ameaça de que a guerra vai se espalhar por todo o país e não vai tem mais para onde fugir”, afirma.
A brasileira ainda afirmou que está “orgulhosa” do governo brasileiro pelo apoio ao Líbano e pelas condenações ao “genocídio” que Israel está “fazendo tanto na Palestina quanto no Líbano”.
O tempo não espera
Entre os familiares que esperavam os repatriados, o clima era de ansiedade e alívio. Hamza Haymour, que chegou do Líbano no primeiro grupo de brasileiros, no domingo (6), foi para o aeroporto para recepcionar sua avó, tios e primos, que estavam no país há 24 anos.
Nascido no Brasil e filho de pai libanês e mãe brasileira, Haymour afirmou que a situação no território libanês é “bem difícil”, mas agradeceu a Deus e ao presidente Lula por ter chegado ao seu país de origem.
“A gente agradece. Eu acho que se não fosse ele [Lula], a gente não estaria aqui, eu não estaria. Não teria chegado no domingo. Eu tenho certeza de que vão trazer todo mundo e até que não é brasileiro e que quiser vir, eles vão trazer também. Mas espero que seja um pouco mais rápido, porque o tempo não espera”, afirmou ao Brasil de Fato na base de recepção aos repatriados do Aeroporto de Guarulhos.
“Estive por um mês e meio no Líbano. Era para voltar numa terça-feira, mas um dia antes já não tinha mais o voo. Era tudo perto da gente. A gente escutava as bombas, a gente conseguia ver tudo. A gente não chora por quem morreu. A gente chora por quem está lá e que não está conseguindo sair ainda”, disse.
Haymour também criticou o governo israelense pelos ataques à Faixa de Gaza e ao Líbano. “Eu não falo que o que o Hamas fez foi certo. Mas, passado um ano, a gente vê que em Gaza morreram até agora quase 43 mil pessoas e no Líbano, em 2 semanas, já morreram mais de 2 mil pessoas, entre eles muitas crianças e mulheres”, lamentou.
“Um país, um governo mentiroso, que diz que está a atacar lugares onde tem armas, e só morrem crianças e mulheres. Aí não tenho que fazer mais, você guerreando contra pessoas. São covardes.”
A gente está sem chão
Zainab Abdallah também estava esperando por familiares que estavam há 15 anos no Líbano. Daqui do Brasil, ela ligava todos os dias para saber como estavam, o que ela classificou como o “mínimo” que podia fazer.
“A gente está sem chão, a gente não dorme, a gente fica o tempo todo pendurado no celular e sempre esperando o pior, porque sempre as coisas pioram e a gente fica com essa angústia, sem poder fazer nada. O mínimo que a gente faz é ligar perguntando se está todo mundo bem. O nosso medo é ouvir uma má notícia, como a gente está ouvindo de outras pessoas, de outras famílias. Esse é o nosso medo”, disse ao Brasil de Fato.
Apesar de ter nascido no Brasil, toda a sua família é libanesa, o que a faz a acompanhar a escalada da violência na região com olhos atentos e coração apertado. “Na verdade, a gente está em 7 de outubro há muitos anos. Agora foi só uma fase nova, mas a gente está nisso há muitos anos. Eu só quero a empatia das pessoas que estão falando mal do povo libanês ou do povo palestino. As pessoas estão nas ruas passando fome”, lamentou a brasileira.
Ela também agradeceu ao governo Lula pela repatriação e pela diplomacia que o governo estabelece com os países árabes. “A gente agradece quem está sendo solidário com a gente. Sem palavras, sem palavras para o presidente Lula. Ele sempre teve essa postura. Não foi nada novo para a gente. Está sendo muito rápido. Eu acho que com essa rapidez nenhum governo teve essa iniciativa. A gente agradece muito. A gente está com Lula”, disse.
Primeiro grupo
O primeiro grupo, com 229 brasileiros, chegou por volta das 10h30 da manhã de domingo (6) na Base Aérea de São Paulo, recepcionados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na ocasião, o petista criticou o governo israelense por "matar inocentes, mulheres e crianças, sem nenhum respeito pela vida humana".
"O Brasil é um país generoso e não tem contencioso com nenhum país do mundo porque a gente não deseja guerra. A guerra só destrói. O que constrói é a paz", disse o presidente. “Espero que vocês encontrem no Brasil a felicidade que tiraram de vocês com esse bombardeio. E que a gente possa reconstruir a nossa vida em paz aqui no Brasil.”
Receptivo e acolhimento
A tripulação do KC-30 é formada por uma equipe multidisciplinar com três médicos, dois enfermeiros e dois psicólogos para atender aos repatriados em quaisquer necessidades. No Aeroporto de Guarulhos, também foi montada uma outra equipe com profissionais ligados aos ministérios da Justiça e Segurança Pública, da Saúde, dos Direitos Humanos, das Relações Exteriores e do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome estava a postos.
"Tem atendimento de urgência e emergência, de acolhimento, para ver os primeiros sinais e sintomas de algum agravo, de alguma doença crônica agudizada. E tem os primeiros cuidados psicológicos, fazer a abordagem para ver se o que eles estão sentindo está esperado dentro da normalidade, ou se é há alguma intervenção que precisamos fazer", explicou Renato Oliveira Santos, da Força Nacional do SUS.
"É importante dizer que as equipes foram divididas entre homens e mulheres que falam português, árabe ou francês. São equipes mistas para a gente conseguir ter uma comunicação fluida", completou Debora Noal, que trabalha com saúde mental e atenção psicossocial na Força Nacional do SUS.
Escalada do conflito
Pelo menos duas mil pessoas foram mortas na recente série de ataques israelenses ao Líbano, incluindo 127 crianças, segundo o Ministério da Saúde do país. Os ataques começaram devido ao apoio do grupo político e paramilitar libanês Hezbollah ao Hamas, da Faixa de Gaza, onde Israel já matou pelo menos 42 mil pessoas em um ano, sendo 17 mil crianças e 12 mil mulheres, de acordo com a comunicação oficial de Gaza.
O massacre começou depois que o Hamas fez um ataque surpresa em território israelense em resposta aos constantes ataques de Israel aos palestinos, que já duram décadas.
Depois que o Hezbollah entrou na defesa de Gaza, o Irã também iniciou ataques contra Israel enviando cerca de 200 mísseis contra o território israelense na semana passada. Todos foram interceptados pelos chamados “domos de ferro”, uma tecnologia avançada que consegue destruir os mísseis antes que toquem no solo.
Edição: Nathallia Fonseca