A gestão PSDB/MDB limitou-se a fazer o fácil e o bonito em termos de expansão de ciclovias
*por Rogério Viduedo
Uma vã filosofia na música, As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor é certeira: tem gente que passa a vida inteira travando a inútil luta com os galhos, sem saber que é lá no tronco que está o coringa do baralho. A frase traduz bem o momento da mobilidade por bicicletas da cidade de São Paulo.
Tem muito ativista que está parado em meio às folhas, preocupado com o varejinho provincial e deixou de ver a grande fotografia do retrocesso nas políticas cicloviárias apresentado nos quase oito anos de administrações de João Doria, Bruno Covas e Ricardo Nunes. Desde que eles assumiram em 2017, não se vê mais nos jornais locais as notícias de ciclistas parando as ruas para protestar pela falta de execução dos planos de mobilidade e programas de metas que têm levado ao aumento dos sinistros de trânsito envolvendo ciclistas.
Como não há mais cicloativistas que ocupam as ruas da cidade botando pressão, pois o movimento Massa Crítica morreu e as instâncias de participação popular como o Conselho Municipal de Trânsito e Transporte e a Câmara Temática de Bicicleta foram esvaziadas pelo executivo e esquecidas por especialistas da mobilidade, a prefeitura faz o que quer em relação à política de mobilidade da bicicleta.
Aqui está o tronco da música do Raul. A gestão PSDB/MDB que agora se finda limitou-se a fazer o fácil e o bonito em termos de expansão de ciclovias. O que importa é sair bem na foto e, por favor, não prejudicar a fluidez dos carros e motos, cujos proprietários são mais importantes do que os outros pobres coitades que precisam se locomover nessa babilônia e não têm motores.
O Nunes saiu-se muito bem nesse quesito. Está colocando R$ 43 milhões na construção acelerada da Ciclopassarela Bernardo Goldfarb, que deverá ser renomeada Jornalista Erika Sallum quando for inaugurada. Ela faz parte do pacote de obras eleitoreiras do atual mandatário em reeleição. Ao contrário de outras concorrências, essa não teve interferência do Tribunal de Contas do Município. Correu tranquila, vencida pela Concrejato, empreiteira carioca que trabalha em três turnos para cumprir com a entrega prevista para final de janeiro de 2025.
A obra está ao lado da ponte Eusébio Matoso. Quem passar sobre ela é só olhar na direção noroeste, sentido Rio Tietê, e ver que os grandes pilares de concreto já foram fincados nas margens de cada lado do canal e já sustentam a parte metálica. Não digo que ela não é importante. Vai, por exemplo, dar chance de trabalhadores das zonas Sul e Oeste acessarem Pinheiros e Butantã, bairros com o primeiro e oitavo melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade, respectivamente, com a ciclovia da margem do Rio Pinheiros.
Facilitará sobretudo quem vem das periferias para fazer entregas nessas regiões. Só que seria lindo também estarem construindo as outras estruturas que igualmente fazem parta das contrapartidas que têm dinheiro reservado da Operação Urbana Consorciada Faria Lima. A ciclopassarela HIS Panorama é uma delas, a três quilômetros ao sul. A outra é a ciclovia Ponte do Jaguaré, três quilômetros ao norte, sob o mesmo rio. É sério. Existe dinheiro específico para elas depositado no Fundo de Urbanização da cidade, o Fundurb. Têm projetos prontos e até concorrência realizada. São parte das transposições necessárias do Plano de Mobilidade da cidade. Com as obras prontas, a demanda de ciclistas aumentará bastante e quem mora fora do centro poderá acessar a cidade com mais conforto e segurança.
Mas os chefes da Secretaria de Mobilidade não querem. No caso da Panorama, tem a ver com a comunidade do Real Parque, uma favela em urbanização com baixo IDH que vai se interligar ao bairro classe média do Brooklyn. E, na ponte do Jaguaré, além das pessoas mais próximas da ciclovia a serem beneficiadas também morarem numa favela, existe a desculpa de que precisam colocar uma faixa de motos, mas a verdade é que não querem atrair fluxo de bicicletas para a “operação faixa reversível”, na qual nos horários de pico, a CET cede uma faixa do fluxo contrário para dar vazão ao trânsito de carros.
É triste ver que ninguém se dispõe a brigar pela conclusão de outras ciclovias já contratadas e em alguns casos executadas pela metade em contratos que foram assinados quase três anos atrás, como já se brigou pela ciclovia da Avenida Paulista. Há casos já denunciados no Jornal Bicicleta que representam um desperdício de dinheiro público. A do Jaguaré é uma delas. Já se pagou R$ 1 milhão de reais para fazer trechos na avenida Queiroz Filho, que se liga à ponte, mas que são inúteis sem o restante dela. Querem nos empurrar ali um arremedo, um passeio ora usado para manutenção elétrica que não atende ao mínimo exigido pelo manual de implantação de ciclovias usado pela cidade e oferece risco real de queda do ciclista no rio ou na pista da marginal. Há outras que também já receberam dinheiro, mas foram concluídas parcialmente, sem atender às prioridades elencadas por ciclistas em auditorias promovidas pelo município em 2019.
Todas estão nos contratos gerados em concorrências de 2022 com a Habitem Incorporação e foram prorrogados até o final do ano. São as ciclovias da rua Alvarenga e ponte Freguesia do Ó e avenidas Mutinga, Radial Leste, Ordem e Progresso e João Batista Conti. Tem ainda aquelas que sequer foram iniciadas como avenidas Nagib Farah Maluf e Carlos Caldeira Filho. São todas conexões tão importantes quanto a passarela Goldfarb/Sallum para cumprirmos a meta de chegar no ano 2030 com 4% das viagens de bicicleta, já assumidos no Plano de Ação Climática do Município de São Paulo.
A partir de janeiro do próximo ano teremos em São Paulo a primeira representante cicloativista na Câmara dos Vereadores. A arquiteta Renata Falzoni de 71 anos foi eleita domingo passado pelo Partido Socialista Brasileiro com 30.206 votos. Espero vê-la atuando para que o PlanMob seja concluído. Disse que será dura na defesa da mobilidade ativa no legislativo municipal. Vai somar forças nesse sentido com outras representantes de ciclistas que se elegeram, como Luna Zarattini e Nabil Bonduki, ambos do PT. Todes são fundamentais para tirar a cidade do ocaso da mobilidade ativa em que o Ricardo nos colocou.
*Rogério Viduedo é jornalista de São Paulo e integrante do Programa de Jornalismo de Segurança Viária da Organização Mundial da Saúde. Cobre as áreas de segurança viária a mobilidade sustentável desde 2016. Em 2018, criou o site Jornal Bicicleta para cobrar autoridades por soluções eficientes para deslocamento da população. Recebeu o Prêmio Abraciclo em 2021 com a reportagem, "Cultura da bicicleta se aprende na escola".
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca